O que você pensa quando pensa em morte? Não tanto a palavra, mas especialmente o que ela implica enquanto força e gesto, é motivo de angústia para mim. Feito uma mola colorida, essa angústia se estica e se recolhe numa cadência que me atravessa. Às vezes muda de cor. Ainda pequeno, com cinco anos, soube […]
Não tanto a palavra, mas especialmente o que ela implica enquanto força e gesto, é motivo de angústia para mim. Feito uma mola colorida, essa angústia se estica e se recolhe numa cadência que me atravessa. Às vezes muda de cor.
Ainda pequeno, com cinco anos, soube da morte de uma bisavó centenária, com quem tive brevíssimo contato. Para espanto da família, chorei com a notícia. Foi a primeira vez que ouvi sobre ela, a tal pálida morte. Lá, na hoje longe infância, entendia o momento-despedida como algo melancólico, o ponto final imposto em vida, um nunca-mais-vou-te-ver, uma ausência que antes era presença. A morte só deixa o antes como consolo. O antes é muito pouco. Talvez por isso o choro. Embora algumas religiões busquem redimensionar a falta, a morte, mesmo certa, se mantém como a mais indesejada das visitas. “Não é que eu tenha medo de morrer. É que não quero estar lá na hora que isso acontecer”, disse Woody Allen, bem-humorado. Santo Agostinho, por sua vez, escreveu: “A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo”.
Insisto: o que você pensa quando pensa em morte? O exercício proposto em Cinco convites é tentar compreender os ganhos que a perda proporciona. Para aqueles acostumados a notar apenas os tons sombrios da morte, ou os que ainda tentam superar a perda de alguém próximo, talvez seja mais difícil enxergá-la como “a professora escondida à vista de todos e que nos ajuda a perceber o que realmente importa”. Essa é a provocação de Frank Ostaseski, autor do livro. Ele nos diz que a morte pode ser triste, cruel, confusa, linda ou misteriosa, mas é inevitável. Não está certo? Se negá-la é um desperdício, por que não aprender com ela? “Abrir a mente e estar disposto a fazer perguntas desconfortáveis a nós mesmos pode ajudar a descobrir quem realmente somos”, ele reforça. A fragilidade da nossa jornada nos dá uma perspectiva. Diante dela, viver a vida plenamente é o que importa.
Ensinamentos da morte = mudanças de vida
Dor + Resistência = sofrimento
Os cinco convites foram pensados a partir da experiência profissional de Ostaseski, professor de budismo e acompanhante de pacientes terminais – ele também é cofundador do Zen Hospice Project, o primeiro asilo budista da América. As histórias de pacientes são resgatadas no texto com as dores e as descobertas experimentadas quando a vida fez uma curva irreversível, direcionando-se para um fim. Para muitos, um fim é também um meio, um meio de transformação. Os relatos do livro mostram como a morte se desdobra, apesar da solidão de quem parte. Perdão, libertação das amarras dos sentimentos ruins e autoconsciência pontuam a caminho de muitos daqueles que se encaminham para o desfecho da vida como a conhecemos. O resto é mistério.
“Como é comum ao ser humano, nós vamos muito além do que nos julgamos capazes, e romper esse limite nos leva à transformação. Alguém certa vez disse: ‘A morte não chega para você, mas para outra pessoa a quem os deuses já prepararam’. Para mim, isso é verdade. A pessoa que eu sou hoje, vivendo esta história, não é a mesma que vai partir um dia. Vida e morte vão me modificar. Serei diferente. Para que algo novo surja dentro de nós, precisamos estar dispostos a mudar”
A trajetória de mudanças de Ostasesk está exposta no livro. Numa das passagens, ele conta que foi sistematicamente abusado por um padre. “Ele mandou que eu abaixasse as calças e me deitasse seminu em seus joelhos. Eu fiquei assustado, me senti vulnerável e fraco. Ele tinha todo o poder e o usou para me molestar”, relata. Como consequência, ele se afastou da religião formal e foi engolido pela ignorância que mistura pedofilia a homossexualidade. Conhecer Stephen Levine, orientador espiritual pioneiro na área de morte consciente, foi importante para se libertar da raiva reprimida e dos preconceitos. Pouco tempo depois, ele se cadastrou como agente de saúde para atender em domicílio homens gays com aids. “Cuidar dos outros se tornou um modo de cuidar de mim mesmo”, recorda ele, que conclui; “Quando permitimos que a dor apareça, muitas vezes descobrimos o silêncio, até mesmo a tranquilidade, bem no meio do sofrimento”.
Como uma professora atenta e esforçada, “a morte tem muito a ensinar a quem se orienta por ela”. Os convites são também janelas de ensinamento, um esforço para que a gente enxergue algo diferente na habitual paisagem, repensando valores e ressignificando a vida. Ao invés da desolação e do enclausuramento, uma chance de crescimento e aprendizado.
O que você pensa quando pensa em morte? Abaixo, cinco convites à reflexão.
O primeiro convite: não espere
“Não espere. Não espere até o leito da morte para perdoar quem o magoou os aqueles que sofreram alguma injustiça de sua parte. Permita que a natureza frágil da vida mostre o que é mais importante… e então aja. É muito doloroso manter alguém, ou nós mesmos, fora de nosso coração”.
O segundo convite: aceite tudo, não rejeite nada
“Quando estamos abertos e receptivos, temos opções. Somos livres para descobrir, investigar e aprender como responder a tudo que encontramos. Não podemos ser livres rejeitando alguma parte de nossa existência. A receptividade traz a capacidade de lidar com circunstâncias agradáveis e desagradáveis. Aos poucos, com a prática, descobrimos que nosso bem-estar não depende apenas do que acontece no mundo: ele vem de dentro
O terceiro convite: traga tudo de si para a experiência
“Todos nós gostamos de parecer bem. Desejamos ser vistos como pessoas capazes, fortes, inteligentes, sensíveis, espiritualizadas ou, ao menos, centradas. Nós projetamos uma autoimagem positiva. Quem quer ser conhecido por seu medo, impotência, raiva ou ignorância? Qual de nós gostaria que os outros soubessem que às vezes nos sentimos mais confusos do que admitimos. No entanto, mais de uma vez descobri que era justamente algum aspecto ‘indesejável’ de mim mesmo – que eu mantinha escondido por haver me envergonhado antes – que me permitia entender o sofrimento do outro com compaixão em vez de medo ou pena”.
O quarto convite: encontre um lugar de descanso no meio de tudo
“Muitas vezes pensamos no descanso como algo que acontecerá quando tudo o mais em nossa vida estiver completo. Imaginamos que só podemos descansar se mudarem as circunstâncias. O quarto convite nos ensina que podemos encontrar um lugar de descanso dentro de nós. Esse lugar de descanso está sempre disponível. Podemos senti-lo quando direcionamos toda a atenção, sem distrações, para a atividade do agora, para o momento em questão. Com a verdadeira prática, depois de algum tempo, podemos fazer dessa vastidão parte da nossa vida. Ela se manifesta como um aspecto de nós que nunca fica doente, que não nasce nem morre”.
O quinto convite: cultive o não saber
“O não saber não é limitado por agendas, papéis e expectativas. Ele é livre para descobrir. Quando estamos plenos de conhecimento e a cabeça está cheia, o pensamento fica restrito e a capacidade de ver o quadro mais amplo se limita, bem como a habilidade de agir. Só vemos o que o conhecimento nos permite ver. A pessoa sábia é ao mesmo tempo compassiva e humilde, além de ciente do que não sabe. O não saber é um convite a entrar na vida com olhos renovados, a esvaziar a mente e abrir o coração”.