CAPÍTULO 1
Que Deus nos ajude
Londres
Sob o olhar vigilante do almirante lorde Nelson, postado no alto de uma coluna de pedra no centro de Londres, a Sra. Odette Sansom caminhava apressada para chegar a tempo a seu compromisso no Departamento de Guerra. O caolho e maneta herói da Batalha de Trafalgar estava sendo castigado pela chuva – um monumento de bronze que lembrava os dias gloriosos da Pax Britannica, já tão distante da Londres do dia 10 de julho de 1942, marcado por conflitos sangrentos. Era o dia 1.043 da pior guerra de todos os tempos.
Grande parte da cidade estava em ruínas. Os vãos entre os edifícios lembravam o sorriso banguela de uma criança. Odette baixou o chapéu para se proteger da chuva fina que teimava em cair e passou às pressas pelos leões de cobre junto à base da coluna, como se dependesse somente de si mesma colocar ordem na capital e fazer a cidade voltar a sorrir.
Odette deslumbrava os londrinos com seu ar gaulês, sua essência francesa. Ela era mais bonita do que suas colegas inglesas e sabia disso: grandes olhos castanhos, um “biotipo suave” e um rosto em formato de coração emoldurado por cabelos escuros presos num rabo de cavalo com alguns fios soltos na nuca. Seu casaco leve, preso por um cinto, era a única cor na paisagem chuvosa e sem graça de Londres, inundada por uniformes de soldados, marinheiros e aviadores. O mundo inteiro estava cinzento. Embora tivesse vivido na Inglaterra durante a maior parte da vida adulta, Odette mantinha vivo seu ar continental e se orgulhava disso; a gélida Grã-Bretanha lhe parecia indiferente ao sexo e às mulheres. Dotada de um enorme talento teatral, Odette se exibia com graça e os militares se derretiam. Diziam entre si que ela até mesmo sorria em francês.
O Victoria Hotel, requisitado pelos militares para centro administrativo do Departamento de Guerra, recendia a naftalina. Não havia ninguém na porta para receber Odette. Os cintilantes lustres haviam sido guardados em local seguro e o prédio estava sombrio e funcional, como praticamente todo o resto. Nenhum dândi fumava seu cigarro no saguão de mármore rosa como outrora. O local estava movimentado, é verdade, mas por burocratas e sargentos, por homens à paisana recém-chegados do front, por velhos, inválidos, homens sem chances de ir para o combate e por aqueles que eram úteis demais para ser sacrificados – afinal, a guerra precisava ser comandada por alguém…
Odette estava lá por ter recebido um convite datilografado – o segundo enviado pelo Departamento de Guerra:
Prezada senhora,
Foi-me informado que a senhora possui qualificações e informações potencialmente valiosas nesta fase dos esforços de guerra.
Se estiver disponível para uma entrevista, terei o maior prazer em recebê-la no endereço acima na sexta-feira, dia 10 de julho, às 11h.
Peço-lhe a gentileza de confirmar seu comparecimento.
Atenciosamente,
Selwyn Jepson
Capitão
Era o terceiro ano de guerra e, para uma mulher infeliz no casamento, aquela carta em papel timbrado do governo dava grandes esperanças. No mínimo, a ida até lá lhe proporcionaria uma tarde só para ela. Um filme estava estreando na Leicester Square, Rosa de esperança4 – uma história sobre como as donas de casa inglesas contribuíam para o esforço de guerra, de como as matriarcas moviam montanhas enquanto seus homens estavam no front. Havia também muitas vitrines para ver, embora, como em toda a Europa, muito pouco pudesse ser comprado: eram tempos de racionamento e o ordenado dos maridos em combate era baixo. Na pior das hipóteses, a carta significaria uma boa mudança na vida de Odette, pois as “qualificações e informações” que o Exército desejava deveriam estar relacionadas à sua habilidade nativa na língua francesa. Talvez o Departamento de Guerra estivesse procurando tradutores. Ou secretárias. Ela não estava tão enferrujada, ainda conseguia datilografar de forma rápida.5 Ou talvez fosse escrever cartas para prisioneiros de guerra na França. Seria um serviço bastante digno.
Odette não sabia o que lhe seria pedido e a carta do capitão informava muito pouco. Em todo caso, se o Departamento de Guerra tivesse algo em que ela pudesse ajudar, estava disposta a ser útil.
Odette morava na alagada região rural de Somerset. Com apenas 30 anos, cuidava sozinha de três meninas de menos de 6 anos – Lily, Françoise e Marianne –, enquanto o marido, Roy, servia na luta contra Hitler. Roy era filho do soldado inglês que havia se alojado na casa da família dela durante a Primeira Guerra. Odette se casou com ele ainda jovem – muito jovem –, aos 18 anos, praticamente uma criança, ela admitia, ainda tão boba e adolescente que, na noite de núpcias, entrou em pânico e se recusou a partir para a lua de mel. Em vez disso, arrastou a mãe e a sogra para o cinema.
Toda a juventude de Odette fora marcada pela guerra. Tinha apenas 4 anos quando seu pai foi morto na Batalha de Verdun, poucos dias antes do armistício que encerrou a Primeira Guerra. Havia sido um dos 300 mil mortos, uma vergonhosa e dolorosa perda. As crianças do período entre guerras atingiram a maioridade em uma Europa atormentada, que ainda sangrava as feridas de Flandres e do Somme. A França se sentia mutilada pela brutalidade alemã; a Alemanha fora humilhada com as punições impostas pelos vizinhos. Odette, órfã de pai, foi criada na casa dos avós e seus domingos eram uma procissão sem fim de visitas obrigatórias ao túmulo e oferendas para a igreja acompanhada por sua mãe viúva. Como as tantas filhas da Primeira Guerra, aquele trauma transformou Odette: tornou-a, ao mesmo tempo, delicada e forte, vulnerável e feroz.
Já adulta, casada mas sozinha, sendo mãe na Inglaterra, Odette foi obrigada pela Blitz a trocar a agitação da vida na cidade pela segurança dos campos verdes e ermos. Entre 1940 e 1941, as noites de Londres eram recortadas pelas explosões das bombas e pela luz dos holofotes. Havia um espetáculo diário no céu: clarões e labaredas brilhavam como fogos de artifício. Se ela tivesse ficado, teria se tornado mais fluente em inglês; por outro lado, teria aprendido a distinguir entre os sons de uma mina lançada de paraquedas e de um canhão antiaéreo, e as crianças teriam precisado usar máscara de gás. Não. Somerset seria melhor para as meninas.
Os dias de Odette eram agora uma série interminável de afazeres típicos do campo: ficar na fila na padaria, contar cupons de racionamento, remendar roupas quando era impossível conseguir tecido. Cartazes de propaganda exaltavam o exercício da frugalidade: “Sou o mais patriota que posso ser – e o racionamento não me faz temer!” A mensagem chegava a lhe causar mal-estar. “Reveja o seu guarda-roupa. Seja criativo, reaproveite o que você tem.” Antes da guerra, Odette estava sempre na moda, uma costureira capaz de fazer pregas e plissados e acrescentar um toque de uh-lá-lá a qualquer traje, mas agora, naquele exílio rural, não havia ninguém para quem ficar bonita. “Roupas austeras para o quarto ano de guerra!”, exclamavam os semanários femininos; blazers sem enfeites e “saias livres de pecado” ganhavam aplausos. Odette ansiava pela emoção de Londres, pelo prazer da companhia dos amigos e por atenção. A maternidade no campo e a reclusão não combinavam nada com ela. Era uma vida insossa para uma mulher tão cheia de vida quanto ela.
O capitão Selwyn Jepson estava sentado à sua mesa no Departamento de Guerra, sala 055a – no que antes era o quarto 238 do Victoria Hotel –, um cômodo tão pequeno que deveria servir apenas para guardar vassouras. Despojado de qualquer decoração luxuosa por questões de praticidade, o espaço continha apenas uma pia, uma mesa de madeira do Exército e duas cadeiras simples. A escassez era proposital, a mando do capitão, que ordenou que aquela sala de entrevistas fosse esvaziada de qualquer coisa que pudesse sugerir autoridade ou conforto. Ele não estava ali para bater papo nem para se proteger dos visitantes atrás de uma mesa enorme. Não queria que nada atrapalhasse a relação de confiança pura e simples: nada de divisão, status nem patente – a menos, é claro, que estivesse entrevistando um militar, momento em que vestia o uniforme por respeito.
O capitão Jepson olhou para baixo, em direção ao arquivo diante de si.
A Sra. Sansom não tinha nenhum vínculo aparente com o inimigo; nada questionável fora encontrado pelo governo de Sua Majestade: “Nada consta contra ela.” Em outras palavras, ela não tinha ficha criminal. Aparentemente, a Scotland Yard e o MI5 haviam concluído que era uma candidata apta para entrevista. Entretanto, isso definitivamente não era o bastante para os padrões dele. Se houvesse quaisquer impedimentos, ele os encontraria.
Nome de batismo: Odette Marie Céline
Nacionalidade adquirida: Britânica
Nacionalidade nata: Francesa
Após o casamento, Odette passou a ser inglesa graças à coverture, um conceito jurídico segundo o qual ela perdia os direitos legais e o marido podia controlar sua vida. Passara a fazer parte dele como a mão fazia parte do corpo.
O arquivo de Odette estava ali porque ela podia colaborar com a guerra. Em março de 1942 o noticiário noturno da BBC fizera um chamado urgente: a Marinha queria fotografias da costa francesa. Nas transmissões das seis e das nove da noite, intercaladas pelos concertos dos Proms e pelo noticiário em norueguês, o locutor anunciou que qualquer foto serviria, mesmo as mais corriqueiras poderiam ajudar no esforço de guerra e a virar o jogo na Europa e, por conseguinte, no restante do mundo. Aquele foi apenas um dos muitos chamados para servir à pátria naquele ano; na manhã seguinte os britânicos responderam com cerca de 30 mil envelopes contendo 10 milhões de fotos de férias.
Odette também respondeu à solicitação do governo. Ela doou seus retratos de família, uma coleção de fotos de si mesma ainda menina nas extensas praias perto de Amiens, sua cidade natal, de piqueniques e guarda-sóis, castelos de areia, e de seu irmão, sua mãe, seus avós, até mesmo de um pai que ela nunca conheceu – lembranças simples e comuns de verões havia muito vividos.
Na maior guerra do mundo, os detalhes faziam diferença. Um departamento ultrassecreto de Oxford estava, naquele momento, elaborando um mapa detalhado da costa francesa. Por mais que a Inglaterra tivesse muitas informações sobre a França – mapas do Guia Michelin, descrições de todas as vilas de pescadores do Guia Baedeker e cartas náuticas que esmiuçavam cada centímetro das águas –, o Almirantado requisitava material mais especializado de inteligência. Para planejar uma invasão, a Marinha teria que fazer uma representação do país a partir da altura das ondas, da proa de uma lancha de desembarque. O Departamento Interno de Topografia (ISTD) estava elaborando um retrato detalhado de toda a costa francesa e da região dos Países Baixos. A Marinha precisava saber como eram os portos e as praias, o grau de inclinação de cada duna, cada estrada sinuosa, cada curso d’água, qualquer característica da paisagem que pudesse fornecer informações sobre abastecimento de água, pontos cegos e atracações. Tal mapa não podia ser produzido por um pequeno grupo de elite nem por meio de fotografias aéreas; a única maneira de obter uma representação elaborada seria remendando as memórias dos britânicos de suas viagens de férias antes da guerra. Um grupo de pesquisadores da Biblioteca Bodleiana se debruçou sobre os inúmeros álbuns, tirando foto das fotos e, em seguida, devolvendo-os aos seus legítimos proprietários, que não sabiam quais imagens haviam sido catalogadas nem por quê. O ISTD construiu um mosaico, uma montagem a partir de memórias de família, e costurou tudo numa panorâmica para formar uma colcha topográfica colossal. Essa foi a plataforma para o plano de invasão dos Aliados na Europa. A Inglaterra estava em guerra e o derradeiro campo de batalha seria a França.
As fotografias de Odette não tinham nenhum valor militar. As polaroides de sua infância nem mesmo chegaram à Biblioteca Naval de Guerra. Ao ouvir o chamado na BBC, Odette enviou suas fotos para o Departamento de Guerra, e não para o ISTD; era uma falante não nativa de inglês, por isso não entendeu a diferença entre um e outro. Suas poucas fotos de família acabaram sendo enviadas para o serviço errado.
As engrenagens da administração militar, no entanto, se puseram em movimento. Os funcionários dos correios encaminharam sua carta oferecendo auxílio a um escritório central, que redirecionou apropriadamente as informações, por mais que estas não fossem muito claras, até chegar ao capitão Jepson.
Quando Odette entrou no gabinete do capitão, ele se levantou, como um homem versado na cortesia. As janelas estavam emolduradas por pesadas cortinas de blecaute, fazendo com que a sala fechada parecesse ainda mais apertada; a luz que caía sobre eles era dura e artificial.
O capitão Jepson era um homem delicado de 42 anos, vestia um terno escuro e tinha uma voz estridente, como se estivesse na puberdade. Em tempos de paz era um jornalista ativo e um escritor mediano de romances de mistério; na guerra, um homem cínico firmemente apegado ao que se passava em sua mente um tanto sombria. Com olhos cor de café e cabelo liso e escuro, sua expressão desconfiada passava a impressão de que estava sempre com prisão de ventre.
O capitão tinha um sotaque aguçado e aprimorado na St. Paul’s School, uma instituição exclusiva para herdeiros e aristocratas. Ele começou a entrevista com a pergunta que fazia a todos que entravam em seu gabinete: o que Odette achava dos alemães?
Ela odiava Hitler com todas as suas forças.
Detestava o que havia acontecido com a França. Sua mãe fora retirada de casa; seu irmão, gravemente ferido na Blitzkrieg, estava se recuperando no hospital militar Val-de-Grâce numa Paris ocupada. Foi o que ela respondeu. Seu país tinha sido violado.
Ah, ela achava que até era capaz de sentir compaixão pelo povo alemão; quanto aos militares, não sentia nada além de desprezo.
O capitão sabia que a hostilidade francesa aos alemães que ela havia herdado perdia apenas para a inimizade gaulesa em relação aos ingleses. Como indicava a carta, naquele momento era seu trabalho selecionar, em meio ao pequeno subconjunto daqueles que ele considerava cidadãos britânicos normais, comuns e medianos, alguns candidatos específicos que falassem um francês impecável, que pudessem se passar por franceses e que fossem, para todos os efeitos, razoavelmente franceses.
– Você jamais saberia como essas coisas acontecem – começou o capitão, com a pasta de Odette sobre a mesa diante dele. – Fizemos uma investigação sobre você aqui e na França e estamos muito satisfeitos com o que encontramos.
O drama e o exagero eram comportamentos naturais para Odette, tanto quanto falar a própria língua. Por isso, tão logo ouviu o capitão, em menos de um segundo sua postura recatada e elegante se transformou em ressentimento e indignação.
– Como assim? Por que vocês me investigaram?
Numa Inglaterra em guerra, Odette era uma suspeita natural por causa de sua origem. Havia ressentimento entre os britânicos: os franceses tinham se rendido absurdamente depressa em 1940; o Exército francês desabou diante do avanço das divisões Panzer; a Linha Maginot foi a cereja do bolo, uma piada; os navios de Vichy, no norte da África, estavam naquele momento enfrentando as frotas dos Aliados; as fábricas francesas haviam produzido armas para os nazistas, que matavam ingleses no Egito.
A lealdade de Odette poderia se tornar um componente essencial da luta pela Europa. O capitão estava recrutando soldados secretos para uma guerra clandestina em território nazista, mas mulheres como Odette só eram inglesas por casamento; esposas de britânicos nascidas no estrangeiro eram consideradas inimigas, forasteiras.
Ela reagiu à insinuação com um ímpeto capaz de reviver a Batalha de Hastings. Num acesso de raiva, Odette elencou, uma a uma, todas as suas credenciais patrióticas: era uma boa mãe para suas filhas inglesas, a esposa fiel de um soldado britânico que defendia o rei e a nação, levava uma vida tranquila, não havia feito nada ilegal nem cometido nenhuma traição e era uma inglesa tão honesta quanto qualquer um nascido em solo britânico.
– Afinal, o que você pensa que eu sou?
Naquele momento, o capitão tomou uma decisão: estava disposto a arriscar a vida de Odette.
Sem fornecer os detalhes do trabalho para o qual a estava recrutando, nem mesmo o nome do empregador, o capitão Jepson ofereceu a Odette a oportunidade de ir à França em nome do governo de Sua Majestade por 300 libras por ano. Ela aceitava se candidatar?
– Espere um minuto – O capitão hesitou. – Como é sua situação em casa? As informações sobre a vida de Odette estavam todas reunidas no arquivo diante dele, mas ele não enviaria à guerra uma mulher que ficaria sofrendo por ter deixado suas filhas na Inglaterra. Suas chances de voltar com vida não passavam de 50%, até menos.
Para o capitão, ela parecia não estar preocupada com as filhas. “Ah, elas vão ficar bem”, ele se lembraria, mais tarde, da resposta que ela lhe dera.
Odette estava imersa nos próprios pensamentos. Traduziu a nebulosa oferta de emprego para a linguagem de uma mãe. “Devo aceitar o sacrifício que os outros estão fazendo sem eu mesma erguer um dedo?”, pensou. O que seria de suas meninas se a França e a Inglaterra se rendessem a Hitler? Talvez ela não fosse útil aos olhos daquele homem minúsculo, Jepson; talvez não tivesse nenhuma competência para ajudar. Mas ainda assim estava determinada a pelo menos tentar, em nome de Lily, Françoise e Marianne.
Com apenas uma vaga ideia do que o trabalho envolvia, Odette disse:
– Quero partir para o treinamento.
O capitão se levantou e a acompanhou nos dois curtos passos até a soleira da porta, onde eles trocaram um aperto de mão. Odette tinha uma personalidade extremamente forte e talvez não estivesse disposta a seguir ordens; era muito intensa. Mesmo assim, atendia a todas as qualificações: francês fluente, cidadania britânica. Os Aliados precisavam de algo capaz de mudar o mundo: mulheres como Odette.
Ele voltou ao arquivo sobre sua mesa e fez uma anotação rápida na margem de um dos documentos, a avaliação profissional de sua mais recente contratação:
Que Deus tenha piedade dos alemães se conseguirmos fazê-la se aproximar deles. Ou quem sabe Deus nos ajude ao longo do caminho.