Capítulo 1
Desista, menino!
Era a chance da minha vida. Eu tinha feito a “lição de casa”, me preparado, criado a oportunidade. No meu quarto, montei uma pasta com a seleção dos meus melhores trabalhos. Eram ilustrações, desenhos de pessoas, animais e paisagens, pôsteres, cartazes para o comércio, até projeto industrial de cafeteira. Aos 19 anos, peguei o bonde na Penha, bairro paulistano em que morava, desci na praça da Sé e fui a pé até a alameda Barão de Limeira, endereço da redação dos jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite, que anos mais tarde seriam fundidos e dariam origem à Folha de S.Paulo.
Chegando à recepção, anunciei, na cara e na coragem, que queria falar com o chefe de arte da Folha da Manhã. Nem sabia que o homem era um dos maiores ilustradores do país, uma estrela do mercado editorial. Na verdade, eu era muito ingênuo, mal sabia como o mundo funcionava. Talvez por sorte de principiante, me mandaram subir. Peguei o elevador, cheguei ao quarto andar e me espantei com a redação do jornal. Nunca tinha visto um ambiente tão estranho, um salão inteiro tomado por pessoas, mesas e cadeiras, barulho incessante de vozes, telefones tocando, máquinas de escrever sendo utilizadas.
Eu estava confiante, meus desenhos caprichados mostravam que eu podia fazer bem-feito o que me pedissem. Meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha avó, toda a família elogiava. Colegas e vizinhos apreciavam minhas historinhas. As garotas da escola me enxergavam com outros olhos quando eu lhes dedicava meus desenhos. Não podia dar errado.
O vento tinha que mudar e agora soprar a favor. Fazia mais de um ano que nós – eu, minha mãe e meus irmãos – tínhamos nos mudado de Mogi das Cruzes para tentar a sorte em São Paulo. As coisas não estavam dando certo em Mogi. Meus pais tinham se separado, eu vinha tendo problemas sérios na escola, as perspectivas não eram animadoras. Mesmo na capital as coisas ainda não tinham melhorado muito.
Minha estreia no mercado de trabalho de São Paulo, em 1953, foi bombástica. Aos 18 anos, fui contratado como datilógrafo numa empresa de cobrança cujo dono aplicava golpes no mercado. A polícia descobriu a malandragem, baixou no escritório num final de expediente e levou todo mundo preso. Argumentei que eu não sabia de nada, mal tinha começado a trabalhar ali, mas não teve jeito.
Passei a noite na carceragem da primeira delegacia, na praça do Colégio, no centro de São Paulo, e só consegui ser solto no final do dia seguinte, após a intervenção providencial de minha mãe. Ela fez um enorme escarcéu, dizendo que não tinha cabimento prender um menino honesto e trabalhador. O discurso indignado deu certo.
No meu segundo emprego, fiquei pouco menos de um ano fazendo contas, calculando receitas e despesas no setor de faturamento da gravadora Odeon, na época do disco de vinil. Não era a minha praia. Com frequência eu passava a hora do almoço procurando outro emprego. Um dia me deu um estalo: poxa, aquilo era uma fábrica de discos, todo disco tinha capa e capas podiam ter ilustrações.
Pedi uma oportunidade ao responsável pela arte visual e ele concordou em cedê-la, contanto que a própria chance já fosse pagamento suficiente. Fiz então, de graça, ilustrações para algumas capas de disco. Pena que isso se perdeu, inclusive porque não me lembro de quais artistas eram aqueles discos. Como não assinei nem recebi crédito pelo trabalho, fica quase impossível de resgatar. De qualquer forma, mesmo perdidas no tempo, as capas foram boas para que eu treinasse a mão. Só que eu não ia sair do lugar com aquilo. Precisava acertar o passo na direção correta.
Onde, em meados da década de 1950, haveria alguém interessado em empregar um candidato a desenhista? Em jornal, agência de publicidade e olhe lá. Meu pai lia a Folha da Manhã. Ele era bem informado, cheio de opiniões, e, por essa lógica, eu achava que o jornal devia ter influência e prestígio. Parecia um bom começo. Foi por isso que, naquela manhã de 1954, cheio de esperança, peguei um bonde na Penha e fui parar na redação da Folha da Manhã.
Andei pela redação barulhenta até a sala envidraçada do chefe de arte. Ele estava sentado à mesa, de cabeça baixa. Parei à porta, pedi licença, cumprimentei-o, disse meu nome, de onde vinha, expliquei que estava em busca de uma oportunidade. Ele se levantou, sem fazer nenhuma menção de me convidar a entrar. Andou até mim e parou na minha frente. Situação estranha.
Ali mesmo, debaixo do umbral da porta, mal me olhando, estendeu a mão e pegou a pasta com meus trabalhos. Com ar displicente, deu uma folheada rápida, passando os olhos em dois ou três desenhos. Em seguida me devolveu a pasta e só aí pareceu ter realmente percebido a presença do rapaz de 19 anos, o moço do interior diante da pessoa influente da capital, o jovem tímido, baixinho, meio atarracado, vestido com sua melhor roupa de domingo, sapatos lustrados.
Achei que o chefe de arte ia fazer algum comentário sobre meu trabalho, um elogio ou um reparo, uma observação, alguma crítica, mas nada, nem tocou no assunto. A única coisa que disse, com ar meio professoral, meio zombeteiro, foi isto:
– Desista, menino. Desenho não dá dinheiro nem futuro para ninguém. Vá fazer outra coisa da vida.
Faz mais de 60 anos que ouvi isso. Na época, foi certamente a frase mais desmotivadora que já tinha ouvido. Mas, com o passar do tempo, ela me influenciaria de maneira positiva, funcionaria como a alavanca que me impulsiona em momentos de dificuldade.
Desde muito cedo eu sonhava em ser desenhista de histórias em quadrinhos, mas tudo jogava contra. O Brasil não tinha tradição nessa área, as tiras de sucesso eram basicamente estrangeiras e não se tinha notícia de um único ilustrador nacional que vivesse apenas de suas criações. Além disso, padres e educadores acreditavam que gibis eram uma ameaça para os jovens. Achavam que as crianças, por lerem histórias de crime e suspense, se tornariam psicopatas e assassinas. Se dependesse dos críticos, os gibis seriam riscados do mapa. Mas eu nem desconfiava desse cenário. Só queria desenhar. Então como aquele cara podia decretar o fim do meu sonho dizendo que era impossível viver de desenho?!
A história do mundo está cheia de “nãos” que podiam fazer sentido para quem os disse, mas que depois se revelaram estupendas bolas fora. A gravadora Decca recusou os Beatles por julgar que eles nunca teriam futuro na música e muito menos aceitação do público. Criadora do bruxo Harry Potter, J. K. Rowling levou mais de 10 nãos antes de encontrar a editora que publicaria seu primeiro livro. Walt Disney foi demitido de um jornal sob a alegação de ter pouca imaginação e nenhuma ideia original. Mesmo batendo no muro, nenhum deles desistiu.
Em 1954, meus sonhos eram feitos basicamente de esperança. Claro que tinham uma pitada de ambição, mas eu não sonhava em ser rico ou coisa parecida. Eu só queria um dia pagar minhas contas, sustentar a família com meus desenhos, ter reconhecimento profissional. Podia não conhecer os percalços dos Beatles e as adversidades de Walt Disney, mas já sabia que as viradas faziam parte do jogo e que, se eu não transformasse o negativo em positivo, ninguém faria isso por mim.
Aquele “Desista, menino” se tornou uma espécie de pedra fundamental que usei como base para construir o futuro. Em vez de derrubar o sonho, aquilo o reforçou. Por índole, formação ou influência dos meus pais, a palavra impossível não constava do meu dicionário. De certa forma, é assim com toda pessoa. Crianças são destemidas, acham que podem tudo, jovens querem mudar o mundo, mas aí, à medida que crescem, a realidade vai mostrando que não é bem assim em centenas de situações. Algumas coisas são mesmo impraticáveis, porém outras não, mesmo que pareçam ser em certo momento.
Quando eu era menino, diziam que eu era teimoso. Aí cresci e me chamaram de teimoso e também de cabeça-dura, principalmente quando eu insistia que minha turminha um dia cairia no gosto das crianças. Muitas pessoas riam, gargalhavam de descrédito. Só quando tudo deu certo é que mudaram o tom e passaram a dizer que eu não era teimoso, e sim determinado e perseverante. A crítica virou elogio sem que eu nunca tenha mudado meu comportamento.
Reconheço que, na hora em que o chefe de arte me mandou fazer outra coisa da vida, senti o baque. Saí da sala cabisbaixo, com ar de quem foi derrotado por um soco no estômago. Fui andando lentamente pelas mesas da redação, sem encarar nada nem ninguém, pasta debaixo do braço, olhar no chão, a própria imagem do desalento. Minha tristeza deve ter sido tão evidente que chamei a atenção.
Ao passar pela mesa de um jornalista, Mário Cartaxo, ele me parou e perguntou o que tinha acontecido. Contei minha história. Mais do que interessado, ele pareceu sensibilizado com a minha narrativa. Deu-se então o inesperado. Ele fez uma pergunta, dando início a uma conversa que mostra como as coisas eram mais simples antigamente:
– Você sabe escrever bem? Tem uma vaga de copidesque aqui no jornal. Se quiser, ela é sua. Interessa?
– Sei sim. Gosto de ler e escrever. O que faz um copidesque?
– Corrige erros, melhora o texto dos outros, essas coisas.
– Interessa.
– Ótimo. Olha, você é muito jovem, vai aprender um monte de coisas e ainda terá tempo livre para aprimorar sua técnica. Dá para ver que tem talento, mas seus desenhos ainda estão meio crus. Vai praticando, melhorando. O importante é que já estará aqui dentro. Quando achar que os desenhos atingiram outro nível, peça outra chance para a chefia de arte ou a quem possa te ajudar. Aí não estará mostrando seus desenhos para estranhos, e sim para amigos.
A chama reacendeu. Fui contratado. Ainda não tinha marcado o gol, mas estava chegando mais perto da área. Não precisei de muito tempo para perceber que levava jeito para a coisa. Eu passava o dia melhorando textos, cortando frases, trocando palavras. Gostava daquilo. Sempre tive apreço pelas letras.
Poucos meses depois, num começo de tarde, Mário Cartaxo me parou novamente quando passei pela mesa dele. Mais uma vez, tinha uma proposta:
– Mauricio, abriram duas vagas de repórter aqui no jornal, uma na coluna social, outra na reportagem policial. Precisa fazer uns testes e escrever um texto, mas tenho certeza de que você irá se sair bem. Se inscreve, capricha. Pode ser bom para você. Topa?
Topei. Seria uma bela chance de ganhar mais. Eu gostava de ler e escrever, estava indo bem como copidesque, então fiquei na dúvida: virar repórter? Eu não entendia nada daquilo, não fazia ideia do trabalho, não sabia entrevistar e, acima de tudo, era extremamente tímido. Bem, mas isso seria um problema para depois. Primeiro eu teria que me sair bem no teste e fazer muitos pontos nas provas de conhecimentos gerais. Havia uns 200 candidatos para as duas vagas, muito pior do que vestibular para medicina. Na hora da inscrição, a pessoa optava por trabalhar na coluna social ou na reportagem policial.
Na verdade, não fazia muita diferença. As duas áreas eram absolutamente estranhas para mim. Até então, minha experiência com a polícia se resumia aos dois dias que eu passara na cadeia. Mas achei que o mundo das festas e celebridades era mais distante ainda da minha realidade. Não conseguia me enxergar em casamentos de famosos e festas de black tie. Optei pela outra vaga. E passei. Ótimo, excelente, mas e agora?
Saí de Mogi sonhando em desenhar histórias em quadrinhos na capital e, de repente, tinha me tornado repórter policial da Folha da Manhã. Logo eu, que desmaiava quando via sangue. E agora teria que conviver com desastres, perseguições e tragédias, acompanharia a investigação de crimes como roubo e assassinato, conversaria com policiais, suspeitos, marginais, viveria momentos de mistério e suspense. Pareciam bons ingredientes para histórias em quadrinhos, mas aquela não era uma tarefa natural para um moço tímido do interior.
Naquele tempo, meados da década de 1950, usava-se muito um ditado popular que diz: “A roupa faz o homem.” Os homens não se sentiam mais imponentes num belo terno e as mulheres, mais bonitas em vestidos elegantes? Pois então. Para enfrentar a situação, mascarar a timidez e também estrear em grande estilo, criei um dos meus primeiros personagens. Ou melhor, eu me transformei num personagem. Não deixava de ser um jeito de unir os quadrinhos com a reportagem policial, a realidade com o meu sonho.
Numa loja do largo do Arouche, no centro da cidade, comprei uma capa e um chapéu. Quando os vesti e me olhei no espelho, me senti destemido, uma versão nacional do famoso detetive criado pelo cartunista americano Chester Gould em 1931. Na minha cabeça, o rapaz tímido do interior tinha se transformado. Agora eu era o próprio Dick Tracy. Estava pronto para a aventura.