Ichigo-ichie e a valorização do momento: o que estamos vivendo agora não se repetirá nunca mais | Sextante
Ichigo-ichie e a valorização do momento: o que estamos vivendo agora não se repetirá nunca mais
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Ichigo-ichie e a valorização do momento: o que estamos vivendo agora não se repetirá nunca mais

Livro resgata prática japonesa secular e mostra como suas lições se mantêm atuais, especialmente numa época marcada pela dispersão, pela instantaneidade e pela falta de escuta

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Livro resgata prática japonesa secular e mostra como suas lições se mantêm atuais, especialmente numa época marcada pela dispersão, pela instantaneidade e pela falta de escuta

Ichigo-ichie. A língua enrola, mas não demora a desenrolar. Caso demore, não faça caso, porque, para além da pronúncia, importa mais o significado. Ichigo-ichie, cuja origem é japonesa, representa a valorização do momento, noção cristalizada na seguinte frase: “o que estamos vivendo agora não se repetirá nunca mais”. Lançamento da Sextante, o livro estampa o nome complicado como título, mas descomplica logo nas primeiras páginas. “Ichigo-ichie”, escrito por Francesc Miralles e Héctor García, apresenta o conceito e destaca como é possível fazer as pazes com a atenção e a harmonia diante de tempos de uma dispersão tão profunda.

Há duas traduções sugeridas para o termo: “uma vez, um encontro” ou “neste momento, uma oportunidade”. As mãos se entregam ao mesmo abraço, que é a preciosidade contida em cada instante da vida. O que se deixa escapar, provavelmente se perderá para sempre. Afinal, a vida é efêmera e, como diz o ditado, só se vive uma vez. “Isso é algo que todos nós, como seres humanos, sabemos, mas acabamos esquecendo quando nos deixamos consumir pelos afazeres e pelas preocupações do dia a dia”, explicam os autores. A filosofia traz ecos do famoso pensamento de Heráclito: “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, porque tudo muda, no rio e em quem se banha”. A consciência da mudança nos torna mais atentos. E a atenção nos permite usufruir o melhor de cada vão momento.

Segundo Miralles e García, o primeiro registro escrito do Ichigo-ichie foi encontrado num caderno de anotações do mestre do chá Yamanoue Soji, em 1588, no qual se lia: “Deverá tratar teu anfitrião como se o encontro só ocorresse uma única vez durante tua vida”. É importante lembrar que a cerimônia do chá é um costume arraigado à cultura do país há séculos, com influência do budismo. A filosofia é ressaltada em uma fala atribuída a Ii Naosuke, um senhor de terras japonês e entusiasta dos tais encontros: “Cada cerimônia do chá implica grande atenção aos detalhes, porque é Ichigo-ichie, ou seja, um encontro único no tempo. Mesmo que o anfitrião e os convidados se vejam todos os dias, o momento que viverão nunca se repetirá”.

Embora historicamente associada às cerimônias, a prática se desprende da origem ao iluminar um caminho de atenção numa época “da dispersão absoluta, da cultura do instantâneo, da falta de escuta e da superficialidade”, como endossam os escritores. Viver o Ichigo-ichie é também renovar a consciência em relação a como (nos) sentimos o mundo. Assim, o livro propõe um reconhecimentos dos nossos cinco sentidos.

A arte de escutar

Ela é essencial para “vivermos momentos de Ichigo-ichie”. Para isso, é necessários frear os impulsos de pré-julgamentos e preconceitos em relação àquele que fala. Os autores lembram que o bebê, ainda dentro da barriga da mãe, é capaz de acompanhar as batidas do coração e outros sons produzidos dentro do corpo. A partir do sexto mês, consegue escutar o que acontece fora do corpo materno. São as distrações externas, evidentes à medida que crescemos, que mimam a nossa capacidade de perceber o que acontece ao redor.

Para uma escuta realmente atenta, portanto, é imprescindível procurar um lugar adequado, longe da poluição sonora, olhar o interlocutor nos olhos, apagar as interferências mentais, perguntar sem interromper e não dar conselhos que não foram pedidos. “Pode ser difícil não sugerir soluções quando alguém nos conta um problema, mas geralmente o que a outra pessoa quer é ser escutada, e não que lhe digam o que fazer”, analisam.

A arte de olhar

Vemos, mas o que, de fato, enxergamos? A pergunta vem a calhar num livro que faz um convite à atenção, ainda mais levando em conta que a visão é o sentido mais desenvolvido do ser humano. Atualmente, os olhos estão mais voltados para telas do que para outros olhos. “Para viver experiências Ichigo-ichie, é necessário recuperar a capacidade de voltar a ver a vida com os olhos”, afirma a dupla, engatilhando algumas iniciativas para afiar essa ferramenta tão importante. Caminhar na natureza, prestando atenção às mais diversas espécies de árvores, por exemplo. E, ao encontrar com outras pessoas, observar os gestos delas..

A arte de tocar

O tato é aquele sentido que não costumamos valorizar, mas sua importância científica é recorrentemente sublinhada. Hoje não é mais mera especulação o poder de um abraço – ele reduz o  nível de cortisol, hormônio do estresse. O contato saudável com outras pessoas por meio do tato também ajuda no relaxamento do organismo e alivia enxaqueca; transmite confiança e intimidade; fortalece a relação e favorece o êxito; e melhora o ânimo. Por que não usamos mais o tato a nosso favor para ampliar nossa experiência no mundo?

“Caminhe descalço em superfícies que não oferecem risco de ferimentos – madeira, grama, terra limpa –, para despertar também a sensibilidade da sola dos pés. Sinta neles o peso do corpo e os movimentos que fazem para manter você equilibrado”, sugerem Miralles e García.

A arte de saborear

A gastronomia ajudou a popularizar o paladar, mas esse sentido encontra sabores para além das refeições diárias. Uma pesquisa de 2015 mostrou como o humor influencia o paladar: quando estamos satisfeitos a tendência é apreciarmos sabores que antes não nos agradavam.

No Japão, o termo Umami identifica o que seria o quinto sabor, que é aquele que sentimos quando comemos produtos fermentados. Os outros quatro são o doce, o amargo, o ácido e o salgado. “Embora os japoneses tenham descoberto esse sabor nas algas kombu e katsubushi, o umami também está presente na sopa de missô e no molho de soja. Quando sentimos que um alimento não é doce, ácido, amargo nem salgado, mas está delicioso… é Umami”, explicam.

A arte de cheirar

Miralles e García contam que nós conseguimos reconhecer dez mil cheiros diferentes, mas a maioria das pessoas não tem mais de dez adjetivos para defini-los. Talvez por isso seja o olfato (um par do paladar) seja o sentido mais misterioso, invisível, conectado à memória. Uma máquina do tempo, como defendem os escritores, que sugerem a criação de um diário de odores: “Toda vez que um aroma o transportar a determinado momento e lugar, anote-o em um caderno. Com o tempo, você formará uma “agência de viagens” de bolso: para pegar a passagem, você só precisará inspirar o aroma indicado, fechar os olhos e se deixar levar”.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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