Filipe Isensee | Sextante
“Em busca da alma brasileira”: curiosidades sobre a vida e a obra de Mário de Andrade
BIOGRAFIA

“Em busca da alma brasileira”: curiosidades sobre a vida e a obra de Mário de Andrade

Biografia escrita por Jason Tércio reconstrói a trajetória do pensador modernista e corrige imprecisões sobre sua vida e a carreira. O escritor define Mário de Andrade como “um enigma para muitos que o conheceram e para si próprio”

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Biografia escrita por Jason Tércio reconstrói a trajetória do pensador modernista e corrige imprecisões sobre sua vida e a carreira. O escritor define Mário de Andrade como “um enigma para muitos que o conheceram e para si próprio”

Quem foi Mário de Andrade?

Historicamente, seu nome está abotoado ao movimento modernista brasileiro. Mas Mário tem um antes e um depois, afora o potente durante, partes fascinantes de um todo misterioso. De pronto, o jornalista Jason Tércio o define como “um enigma para muitos que o conheceram e para si próprio” para adiante costurar paradoxos. Ousado e tímido. Modesto e vaidoso. Singular e plural. É essa capacidade de ser uma coisa e seu contrário um dos aspectos que definem sua persona. “Em busca da alma brasileira”, lançamento do selo Estação Brasil, aproxima os extremos do intelectual que ajudou a redefinir como o brasileiro se percebe e se manifesta. Quase 75 anos após sua morte – em fevereiro de 1945 -, o homem múltiplo deixa um rastro de sabedorias e vivências que ajudam a compreender o país do qual foi (ou melhor, ainda é) cidadão ilustre. “Muitos dos problemas, indagações e reflexões que ele discutiu continuam presentes no Brasil de hoje”, acrescenta Tércio. 

Mário de Andrade nasceu em São Paulo em 1893. Escritor, viajante, descobridor, conhecedor de muitos Brasis, ele tem a vida reconstruída nessa biografia de mais de 500 páginas. A revelação dos nós do enigma que ele é faz deste um livro essencial. Escrito com rigor e cuidado histórico, “Em busca da alma brasileira” se destaca também por apresentar diversos ângulos deste personagem brasileiro, do nascimento à morte. Entre os destaques, um poema até então desconhecido. Aqui, você conhece detalhes da vida do autor de “Pauliceia Desvairada”, “Amar, verbo intransitivo” e “Macunaíma”

1 – No conto autobiográfico “Tempo de camisolinha”, Mário de Andrade revelou uma das lembranças mais remotas e amargas da infância, quando o pai resolveu cortar seus longos cabelos pela primeira vez desde o nascimento. Ele tinha entre 3 e 4 anos. Ficou emburrado por dias, inconformado com a atitude do pai. Para Tércio, o episódio revela uma característica do intelectual: “A reação insubmissa do menino diante da autoridade paterna pode ser considerada o primeiro ato de rebeldia de Mário contra uma convenção social. Prenúncio de um temperamento inconformista que, pelos anos afora, o levaria a transgredir outras convenções: artísticas, religiosas e morais”. Precoce, não? De qualquer forma, a relação com o pai, Carlos Augusto, pode ser considerada fria, com pouco afeto verbal ou físico, mas sem agressividade.

2 – O interesse de Mário de Andrade pela diversidade cultural brasileira é, em parte, resultado de sua própria história familiar. Ele era neto de duas avós mulatas, ambas de origem pobre, mas que tiveram uma ascensão social. O escritor sempre teve consciência dessa miscigenação. 

3-  Em 1904, Mário começou a estudar no Ginásio de Nossa Senhora do Carmo, uma escola localizada num casarão anexo à igreja. É curioso pensar que um dos homens mais inteligentes de sua época teve dificuldade de passar em todas as matérias, mas foi o que aconteceu. Nas provas finais, ele tirou nota baixa em Francês e ficou em “segunda época” (uma espécie de recuperação) em Aritmética, uma decepção para ele e para a família. A música, contudo, era uma paixão. E Mário era muito talentoso. Aos 17 anos, decidiu seguir carreira como pianista. Mais tarde, matriculou-se também num curso de canto para aprimorar a técnica vocal. 

4 – As características físicas do escritor o diferenciavam dos outros membros da família. Ele tinha 1,87, ombros largos, lábios grossos, dentes pequenos numa boca que ficava maior quando gargalhava. Tércio o define como um grandalhão de personalidade frágil, o que ficou evidente quando enfrentou a primeira morte na família, em 1913. O irmão Renato morreu durante uma disputa de bola na escola, aos 14 anos. Era ele seu companheiro de conversas musicais e com quem dividia o piano. Após o falecimento, Mário passou dias sem comer, teve uma depressão que se tornou neurastenia. Ele se afastou de casa e, ao voltar, notou que estava com um leve tremor nas mãos, o que contribuiu para que desistisse do sonho de ser concertista. 

5 – Na companhia dos amigos mais próximos, o intelectual gostava de ir a festas, ao cinema (na juventude do escritor, a cidade tinha seis), ainda com filmes mudos acompanhados de pequena orquestra. Em fins de semana ou feriados, era comum fazerem piqueniques em fazendas ou chácaras das famílias de colegas, acompanhados de namoradas e amigas. Mário não gostava de futebol, mas era ótimo no pingue-pongue

6 –  “Em busca da alma brasileira” conserta informações equivocadas sobre a vida de Mário. É o caso do encontro do intelectual com Oswald de Andrade, outro personagem fundamental do modernismo brasileiro. A versão mais reproduzida é que ambos se conheceram em 1917, mas Tércio explica que Oswald já conhecia o irmão de Mário e, além disso, frequentava o mesmo Conservatório onde o escritor estudava. 

7 – Outra retificação diz respeito à sexualidade. Alguns autores, a partir da análise de textos, apontaram a possibilidade de Mário ser homossexual. No livro, o autor lembra que “literatura não reflete necessariamente a vivência do autor” e, em seguida, após pinçar outros escritos, provoca: “Pode-se inferir que Mário era pansexual, andrógino, bissexual, não um homossexual, como se tenta enquadrá-lo”. Ou seja, aqui também ele escapa a uma simples definição.

8 – Obviamente, os personagens da Semana de Arte Moderna, além do evento em si, ganham destaque na biografia. Em uma passagem, o autor afirma tudo foi preparado em um mês, tempo que provavelmente jamais seria alcançado nos dias atuais. Mário e Oswald ficaram incumbidos de escrever artigos nos jornais para acender o debate em torno da Semana, realizada em fevereiro de 1922. As primeiras notícias começaram a circular no fim de janeiro. O jornal O Estado de São Paulo, divulgou o seguinte: “Por iniciativa do festejado escritor, sr. Graça Aranha, da Academia Brasileira de Letras, haverá em S. Paulo uma ‘Semana da Arte Moderna’, em que tomarão parte os artistas que, em nosso meio, representam as mais modernas correntes artísticas”. Na noite de estreia, dia 13, todos os lugares do Theatro Municipal estavam ocupados por um público eclético, incluindo Washington Luís, o então governador. Mário estava sentado na primeira fileira da plateia e dali viu apresentações de nomes como o compositor Villa-Lobos. De forma geral, a grande imprensa de São Paulo não reagiu bem à primeira noite. Os jornais do Rio trataram de forma morna o evento.

9 – Na segunda noite, antes de se apresentar, Mário de Andrade foi anunciado como “o maior poeta de São Paulo”. O escritor leu dois poemas de “Pauliceia desvairada”. Houve aplausos e pedidos de bis, que se misturaram a uma algazarra. “Mário não conseguiu entender nada e ergueu o braço pedindo calma ao público. Alguns fizeram sshhhh, os amigos sorriram, Mário ameaçou parar, pediram que continuasse, ele retomou a leitura, mas quando o público se aquietou completamente, Mário brincou: ‘Se não tiver vaia, eu não falo mais’. Entre risos e vaias, ele prosseguiu”, relata Tércio. Segundo o autor da biografia, a  Semana teve dois efeitos imediatos: reforçou a coesão do grupo modernista e injetou uma nova dinâmica no cenário cultural de São Paulo. 10 – Mais de duas décadas após a Semana, Mário de Andrade morreu aos 51 anos, no dia 25 de fevereiro de 1945. Há versões sobre a causa, se um infarto ou se uma miocardite – inflamação do miocárdio. Entre os amigos, contudo, há um consenso que a morte foi precipitada pela depressão resultante de sua saída inopinada do Departamento de Cultura da cidade São Paulo, no qual trabalhava como diretor. O excesso de trabalho fez a saúde do escritor, que nunca foi boa, piorar. No dia seguinte, o jornal vespertino Diário da Noite grafou assim a morte do intelectual: “Desapareceu ontem, em São Paulo, a maior expressão do movimento modernista brasileiro”. 

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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