“Imbecis: é isso que nos tornamos quando acreditamos no engodo do suposto e seletivo combate à corrupção da política como solução das nossas mazelas” Escrito pelo sociólogo Jessé Souza, “A elite do atraso” ganhou ressonância por propor a quebra de certos alicerces que sustentam a história do Brasil como a conhecemos. A tentativa de mudança […]
Escrito pelo sociólogo Jessé Souza, “A elite do atraso” ganhou ressonância por propor a quebra de certos alicerces que sustentam a história do Brasil como a conhecemos. A tentativa de mudança de paradigma pode soar como um exercício quixotesco, mas a própria repercussão da obra, cuja primeira edição foi lançada em 2017, mostra que as palavras do autor encontraram um espaço de apreciação e questionamento.
Não se trata de um livro de aceitação unânime e certamente Souza jamais imaginou que seria. Ao contrário. Se existe, a vocação de “A elite do atraso” é ser um ponto de reflexão e incômodo, que assume uma narrativa ligada historicamente à esquerda, embora não a exclua de críticas. A nova versão, revista e ampliada, traça um panorama que ressalta a escravidão como elemento catalisador da nossa desigualdade e parte dela para compreender o país às voltas com a Lava Jato e comandado por Jair Bolsonaro.
Estado x Mercado
O livro foi uma das referência para a construção do desfile questionador da Paraíso do Tuiuti no Carnaval do ano passado, quando paneleiros, fantoches e um vampiro com a faixa presidencial ocuparam a Marquês de Sapucaí – a escola de samba, aclamada pelo público, ficou em segundo lugar na disputa e atravessou novamente a avenida como uma das campeãs de 2018.
A inspiração em “A elite do atraso” mostra como as ideias de Souza não estão distantes da população. Isso é um dado importante. Trata-se mesmo de um livro acessível, que rasga cânones determinantes para a noção que temos do que é ser brasileiro. O sociólogo critica e problematiza “Raízes do Brasil”, escrito por Sérgio Buarque de Holanda, chamando a atenção para o fato de a obra, lançada na década de 1930 e de enorme influência entre intelectuais, ter ajudado a legitimar o liberalismo conservador brasileiro, cuja raiz remonta á ideia do brasileiro como vira-lata.
Souza vai além e sintetiza a herança de Buarque:
“Buarque, ao localizar a ‘elite maldita’ no Estado, torna literalmente invisível a verdadeira elite de rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por oligopólios e atravessadores financeiros. Como a elite que vampiriza a sociedade está, segundo ele, no Estado, abre-se caminho (…) para uma concepção de mercado que é o oposto do Estado corrupto. Com isso, não só o poder real, do mercado e dos endinheirados, é tornado invisível, como o Estado é tornado o suspeito preferido – como os mordomos nos filmes policiais – de todos os malfeitos. Essa ideia favorece os golpes de Estado baseados no pretexto da corrupção seletiva, mote que sempre é levado à baila quando o Estado hospeda integrantes não palatáveis pelo mercado ávido de capturá-lo apenas para si. Não existe ideologia melhor para os interesses da elite econômica”.
O Brasil atual
Como deixa claro no trecho destacado, Souza questiona a constante vilanização do Estado, visto como um monolito de corruptores, marca que se estende aos dias de hoje e que vem à tona nas recorrente ameaças de privatizações de empresas estatais (a Petrobras, por exemplo, é um alvo constante).
Para Souza, esse pensamento renovado e reforçado por outros pensadores se transforma numa cortina que impede boa parte da população de não compreender os reais problemas brasileiros, oriundos das engrenagens perversas do mercado. Ao longo dos subcapítulos, Souza aprofunda a linha de raciocínio e, ao final, analisa como outros setores (a grande imprensa entre eles) contribui para a dominação simbólica da sociedade. O livro apresenta as consequências desse pensamento e chega às eleições de outubro de 2018.
“O que explicaria o fato de a maioria da nossa sociedade, sob o pretexto de evitar a chegada de um suposto ladrão à presidência, votar num candidato que faz apologia do assassinato e da tortura de opositores? (…) A verdadeira elite brasileira, que é a do dinheiro, que manda no mercado e que ‘compra’ as outras elites que lhe são subalternas, criou o bode expiatório da corrupção disfarçada de legalidade. Toda a sociedade tomou doses diárias desse veneno destilado pela mídia, pelas escolas e pela universidade e viu, imbecilizada, como não poderia deixar de ser, uma meia dúzia de estrangeiros e seus capangas brasileiros tomarem seu petróleo, sua água, suas terras, seus recursos. Em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo suposto ‘bem do povo brasileiro’, roubaram tudo o que puderam e nos deixaram muito mais pobres”.
O desdobramento da tese de Souza, como foi destacado no início, é ancorado num movimento que retira da corrupção o status de maior problema nacional e aponta a escravidão como a raiz da desigualdade brasileira. Uma desigualdade atualizada no atual contexto, em que o escravo é substituído pelo pobre. Consequentemente, o ódio ao escravo é agora destinado ao pobre, frisa o sociólogo.
Enquanto a população mais vulnerável era sugada pela crise, os bancos registraram lucros estratosféricos, lembra o autor. É apenas a ponta do iceberg, que inclui as isenções fiscais bilionárias e a incessante engorda da dívida pública. Diante do retrato que pinta do Brasil, Souza arremata: “Imbecis: é isso que nos tornamos quando acreditamos no engodo do suposto e seletivo combate à corrupção da política como solução das nossas mazelas”.
E você, caro brasileiro, o que pensa disso?