Prólogo
Parte do duradouro apelo e da ampla influência de Epicteto deve-se ao fato de ele não ter feito distinção entre filósofos profissionais e pessoas comuns. Expressava sua mensagem com clareza e dedicação a todos os que estivessem interessados em viver uma vida moralmente consciente.
Mesmo assim, Epicteto acreditava firmemente na necessidade de treinamento para o refinamento gradual do caráter e do comportamento individuais. O progresso moral não é um privilégio natural das elites nem é adquirido por acaso ou por sorte, mas através do esforço diário para se autoaperfeiçoar.
Epicteto teria demonstrado pouca paciência com as agressivas tomadas de posição, defesas e malabarismos verbais que infelizmente às vezes passam por se “fazer” filosofia nas universidades de hoje. Um mestre das explicações sucintas, teria também desconfiado da obscura verborragia que encontramos em escritos acadêmicos, filosóficos e outros textos áridos. Pelo fato de condenar enfaticamente a exibição gratuita de inteligência e conhecimentos, fazia questão de falar, sem ares de superioridade ou condescendência, sobre ideias úteis para se viver bem. Considerava-se bem-sucedido quando suas ideias eram apreendidas com rapidez e postas em uso na vida real por alguém, quando podiam efetivamente fazer algum bem ao enobrecer o caráter daquela pessoa.
Procurando se manter fiel ao espírito democrático e despojado da doutrina de Epicteto, este livro resume as ideias-chave do grande filósofo do Estoicismo e utiliza linguagem e imagens simples apropriadas aos dias de hoje. Para apresentar os ensinamentos de Epicteto da maneira mais direta e proveitosa possível, selecionei, interpretei e improvisei a partir das ideias contidas no Enchiridion e nos Discursos, os únicos documentos ainda existentes que resumem sua filosofia. Meu objetivo foi transmitir o espírito autêntico – e não necessariamente o texto literal – de Epicteto. Para tanto, consultei as diversas traduções de seus ensinamentos e em seguida dei livre expressão ao que acho que ele teria dito hoje.
Epicteto compreendia muito bem o valor da eloquência da ação. Exortava seus alunos a deixarem de lado a mera teorização inteligente em favor de aplicar seus ensinamentos de maneira ativa às circunstâncias concretas da vida de todos os dias. Da mesma forma, procurei expressar a essência do pensamento de Epicteto de maneira instigante e moderna, capaz de inspirar nos leitores o desejo não só de refletir como de realizar as pequenas e sucessivas mudanças que culminam em dignidade pessoal e uma vida com significado, uma vida íntegra.
O espírito de Epicteto
Como viver uma vida plena e feliz? Como ser uma pessoa com qualidades morais?
Responder a essas duas perguntas fundamentais foi a única paixão de Epicteto, o grande filósofo do Estoicismo. Embora suas obras sejam menos conhecidas hoje em função do declínio do ensino da cultura clássica, tiveram enorme influência sobre as ideias dos principais pensadores da arte de viver durante quase dois mil anos.
Epicteto nasceu escravo por volta do ano 55 d.C. em Hierápolis, Frígia, no extremo oriental do Império Romano. Seu mestre foi Epafrodito, o secretário administrativo de Nero. Desde cedo, Epicteto demonstrou um talento intelectual incomum e Epafrodito ficou tão impressionado que enviou o jovem a Roma para estudar com o famoso professor estoico Caio Musônio Rufo. As obras de Musônio Rufo, que, escritas em grego, ficaram preservadas, contêm argumentos a favor da educação igual para mulheres e homens e contra o critério moral que permitia mais liberdade sexual ao homem do que à mulher no casamento; e o famoso espírito igualitário de Epicteto pode ter sido alimentado pelas ideias de seu mestre naquele período. Epicteto tornou-se o mais aclamado de todos os alunos de Musônio Rufo e acabou sendo libertado da escravidão.
Epicteto ensinou em Roma até o ano 94 d.C., quando o imperador Domiciano, ameaçado pela crescente influência dos filósofos, baniu-o de lá. Passou o resto da vida no exílio em Nicópolis, na costa noroeste da Grécia. Ali, fundou uma escola filosófica e passou seus dias fazendo palestras sobre como viver com maior dignidade e tranquilidade. Entre seus mais ilustres alunos estava o jovem Marco Aurélio Antonino, que mais tarde governou o Império Romano e foi também o autor das famosas Meditações, cujas raízes estoicas vinham da doutrina moral de Epicteto.
Apesar de ser um brilhante mestre da lógica e do debate, Epicteto não alardeava suas excepcionais habilidades retóricas. Sua atitude era a de um professor sereno e humilde estimulando os alunos a encararem com muita seriedade a arte de viver com sabedoria. Epicteto praticava o que pregava: vivia modestamente numa pequena cabana e não tinha qualquer interesse em adquirir fama, fortuna ou poder. Morreu por volta de 135 d.C. em Nicópolis.
Epicteto acreditava que a meta principal da filosofia é ajudar as pessoas comuns a enfrentar positivamente os desafios cotidianos e a lidar com as inevitáveis perdas, decepções e mágoas da vida. Seu estilo é revelado por ensinamentos morais despojados de sentimentalismo, falsa devoção religiosa ou mistificações metafóricas. O que resulta é o primeiro e mais admirável manual escrito no Ocidente para se viver a melhor vida possível.
Quando muitos leitores começaram a se voltar para o Oriente em busca de rumos espirituais não sectários, o Ocidente já possuía um tesouro clássico, vital, embora negligenciado durante todo o tempo. Um dos mais brilhantes mestres que jamais existiram, Epicteto é o autor de ensinamentos que equivalem aos contidos nas maiores obras de sabedoria que a civilização humana produziu. Os Discursos podem ser considerados a resposta do Ocidente ao Dhammapada budista ou ao Tao Te Ching de Lao-Tsé. Os que acusam a filosofia ocidental de ser excessivamente cerebral, de tratar de forma inadequada as dimensões não racionais da vida, provavelmente terão a surpresa de descobrir que A arte de viver é de fato uma filosofia de liberdade e de tranquilidade interiores, um modo de viver cujo propósito é tornar nossa alma mais leve.
Uma inesperada mistura de Oriente e Ocidente dá sabor a esta leitura. Por um lado, seu estilo é irrefutavelmente ocidental: exalta a razão e é repleto de sérias e rigorosas diretrizes morais. Por outro, uma suave brisa oriental parece soprar quando Epicteto discute a natureza do Universo. Sua descrição da Realidade Suprema, por exemplo, que ele equipara à própria natureza, é notavelmente fluida e elusiva, lembrando o Tao de maneira surpreendente.
Para Epicteto, vida feliz e vida virtuosa são sinônimos. Felicidade e realização pessoal são consequências naturais de atitudes corretas. Ao contrário de muitos filósofos de sua época, ele estava menos preocupado em procurar compreender o mundo do que em identificar os passos específicos que são necessários para se chegar à excelência moral. Parte de sua genialidade é enfatizar mais o progresso moral do que a busca de perfeição moral. Com uma aguda percepção de quão facilmente nos desviamos de nossos princípios mais elevados no decorrer da vida, ele nos exorta a encarar a vida filosófica como uma progressão de etapas que, pouco a pouco, nos aproxima de nossos mais caros ideais.
Sua noção de uma boa vida, contudo, não é seguir uma lista de preceitos, mas levar nossas ações e desejos a se harmonizarem com a natureza. A questão não é agir bem para conquistar os favores dos deuses ou a admiração dos outros, mas adquirir serenidade interior e, consequentemente, uma liberdade pessoal duradoura. Excelência moral é um empreendimento com oportunidades iguais, disponível a todos em qualquer ocasião, ricos ou pobres, instruídos ou não. Não é território exclusivo dos “profissionais espirituais”, como os monges, os santos e os ascetas.
Epicteto desenvolveu uma concepção de virtude que é simples, corriqueira e cotidiana em sua expressão. Era favorável a uma vida vivida firmemente de acordo com a vontade divina e não caracterizada por manifestações extraordinárias, flagrantes ou heroicas de bons sentimentos. Sua receita para uma boa vida concentrava-se em três temas principais: dominar os desejos, desempenhar as obrigações e aprender a pensar com clareza a respeito de si mesmo e de seu relacionamento com o restante da comunidade humana.
Epicteto admitia que a vida cotidiana é sempre repleta de dificuldades dos mais variados graus. Ele passou a própria vida delineando um caminho para a felicidade, a realização pessoal e a tranquilidade, qualquer que fosse a situação da pessoa que quisesse segui-lo. Seus ensinamentos, quando despojados de seus traços culturais antigos, têm uma relevância contemporânea incomum. Às vezes, sua filosofia soa como o que há de melhor na psicologia contemporânea. A Prece da Serenidade, que sintetiza o movimento de recuperação – “Concedei-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, a coragem para mudar o que posso e a sabedoria para reconhecer a diferença” –, poderia facilmente ser uma frase de seu livro. Na realidade, o pensamento de Epicteto é um dos fundamentos da moderna psicologia da autogerência.
Em outros aspectos importantes, contudo, Epicteto é muito tradicional e pouco contemporâneo. Ao mesmo tempo que nossa sociedade (na prática, mas nem sempre abertamente) encara a realização profissional, a riqueza, o poder e a fama como desejáveis e admiráveis, ele vê tudo isso como incidental e irrelevante para a verdadeira felicidade. O que importa de fato é o tipo de pessoa em que nos transformamos, o tipo de vida que vivemos.