Prefácio
Por Philip Zimbardo, Ph.D.*
Numa primavera, a convite do psiquiatra-chefe da Marinha dos Estados Unidos, a Dra. Edith Eva Eger embarcou num avião de combate sem janelas para um dos maiores navios de guerra do mundo, o porta-aviões USS Nimitz, fundeado ao largo da costa da Califórnia. O avião desceu em direção a uma pista curta de 150 metros e aterrissou com o solavanco do gancho de retenção da cauda se encaixando no cabo de travamento, que
o impediu de cair no oceano. Única mulher a bordo, a Dra. Eger foi acomodada na cabine do capitão. Qual era sua missão? Ela estava lá para ensinar cinco mil jovens marinheiros a lidar com a adversidade, o trauma e o caos da guerra.
Em incontáveis ocasiões, a Dra. Eger foi a especialista clínica designada para tratar dos soldados, incluindo os das Forças de Operações Especiais, que sofriam de transtorno de estresse pós-traumático e lesões cerebrais.
Antes de conhecer a Dra. Eger pessoalmente, telefonei para convidá-la a fazer uma palestra no curso de Psicologia do Controle da Mente ministrado por mim em Stanford. Sua idade e seu tom de voz me levaram a imaginar uma vovozinha do Velho Mundo com um lenço amarrado na cabeça por um laçarote embaixo do queixo. Quando ela se dirigiu a meus alunos, percebi seu poder de cura. Com um sorriso radiante, brincos brilhantes, cabelos dourados, vestindo Chanel da cabeça aos pés (conforme minha esposa me contou depois), ela descreveu tenebrosas e angustiantes histórias de sobrevivência nos campos de extermínio nazistas de maneira bem-humorada, exalando uma presença que só consigo descrever como pura luz.
A vida da Dra. Eger foi pontuada por tragédias. Ela foi presa em
Auschwitz quando era apenas uma adolescente. Apesar da tortura, da fome e da constante ameaça de morte, conservou a liberdade mental e espiritual. Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência. Na realidade, sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu.
Ela é capaz de ajudar outras pessoas a se recuperar porque conseguiu passar sozinha do trauma à vitória. Ela descobriu como usar sua experiência com a crueldade humana para levar aos outros a chance de encontrar a própria luz. Seus ensinamentos já ajudaram militares (como aqueles a bordo do USS Nimitz), casais tentando reencontrar a intimidade, pessoas que foram negligenciadas, agredidas, que são viciadas ou doentes, que perderam entes queridos ou simplesmente a esperança. E podem ajudar a todos nós que enfrentamos diariamente as decepções e os desafios da vida. Sua mensagem nos inspira a fazer nossas próprias escolhas e a nos libertar do sofrimento.
No fim da palestra, todos os meus trezentos alunos se levantaram espontaneamente para aplaudir. Depois, pelo menos cem jovens lotaram o pequeno palco, esperando sua vez para agradecer e abraçar essa mulher extraordinária. Em todas as minhas décadas como professor, nunca vi um grupo de estudantes tão entusiasmado.
Ao longo dos vinte anos em que eu e Edie trabalhamos e viajamos juntos, essa é a reação que me acostumei a testemunhar de cada público ao qual ela se dirige. Desde um encontro motivacional em uma cidade de Michigan, nos Estados Unidos, quando conversamos com um grupo de jovens que enfrenta pobreza, desemprego e um conflito racial crescente, até Budapeste, na Hungria, local em que muitos de seus parentes morreram e onde ela falou para centenas de pessoas que tentavam se recuperar de um passado doloroso, eu vi isso acontecer repetidas vezes: as pessoas se transformam na presença de Edie.
Neste livro, a Dra. Eger mistura histórias de transformação dos pacientes com sua marcante experiência em Auschwitz. Mas não foi apenas sua história dramática e arrebatadora que me fez querer compartilhar este livro com o mundo. Foi, sim, o fato de Edie usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade. Nesse sentido, seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto, por mais importantes que esses relatos sejam para relembrarmos o passado. Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente. De certa forma, todos somos prisioneiros, e a missão de Edie é nos ajudar a entender que, assim como agimos como nossos próprios carcereiros, também podemos nos tornar nossos próprios libertadores.
Quando é apresentada ao público jovem, muitas vezes Edie é chamada de a “Anne Frank que não morreu”, porque ambas tinham origem e idade parecidas quando foram deportadas para os campos de concentração. As duas jovens encarnam a inocência e a solidariedade que nos fazem acreditar na bondade intrínseca do ser humano, a despeito da crueldade e da perseguição a que foram submetidas. Obviamente, no momento em que Anne Frank escreveu seu diário, ela ainda não tinha passado pela dureza dos campos, o que torna as observações de Edie como sobrevivente e psicóloga clínica (e ótima avó!) especialmente emocionantes
e convincentes.
Assim como outros livros importantes sobre o Holocausto, este mostra tanto o poder da maldade quanto a força indomável do espírito humano diante dela. Mas ele vai além. Talvez o melhor livro para comparar com o de Edie seja outra memória do Holocausto, o brilhante clássico de Viktor Frankl, Em busca de sentido. A Dra. Eger compartilha o profundo conhecimento da humanidade de Frankl, mas acrescenta o entusiasmo e a intimidade de uma vida como psicóloga clínica. Frankl apresentou a psicologia dos prisioneiros que estavam com ele em Auschwitz. A Dr. Eger nos oferece a psicologia da liberdade.
Em meu trabalho, estudei por muito tempo os fundamentos psicológicos das formas negativas de influência do meio social sobre o indivíduo. Procurei entender os mecanismos através dos quais nos conformamos, obedecemos e resistimos em situações em que a paz e a justiça só podem ser atingidas se escolhermos o caminho da ação heroica. Edie me ajudou a descobrir que o heroísmo não é privilégio apenas daqueles que realizam façanhas extraordinárias, ou que assumem riscos para proteger a si mesmos e aos outros – embora ela tenha feito as duas coisas. Mais que isso, o heroísmo é uma mentalidade, ou o acúmulo de nossos hábitos pessoais e sociais. É um jeito de ser. Um jeito especial de ver a si mesmo. Ser herói pressupõe agir decisivamente nos momentos críticos da vida, tentar resolver as injustiças ou criar uma mudança positiva no mundo. Ser herói também exige grande coragem moral. Cada um de nós tem um herói interior esperando para ser revelado. Somos todos “heróis em desenvolvimento”. Nosso treinamento para o heroísmo é a vida, as circunstâncias cotidianas que nos convidam a cultivar os seguintes hábitos: realizar ações de bondade diariamente, demonstrar compaixão, começando com a autocompaixão, revelar o melhor dos outros e de nós mesmos, conservar o amor inclusive nos relacionamentos mais desafiadores e celebrar e exercitar o poder de nossa liberdade mental. Edie é duplamente heroína porque ensina as pessoas a amadurecer e a criar mudanças significativas e duradouras em si mesmas, em seus relacionamentos e no mundo.
Há dois anos, Edie e eu viajamos para Budapeste, cidade onde a irmã dela morava quando os nazistas começaram a prender os judeus húngaros. Visitamos uma sinagoga que havia no pátio de um memorial do Holocausto, com paredes cobertas por uma lona com fotografias de antes, durante e depois da guerra. Fomos ver o memorial “Sapatos às margens do Danúbio”, a exposição permanente de esculturas de sapatos instaladas numa das margens do rio Danúbio em homenagem aos judeus, inclusive alguns familiares de Edie, assassinados por militantes do Partido da Cruz Flechada, um grupo húngaro de inspiração nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Obrigadas a ficar em pé na beira do rio e a tirar os sapatos – seus bens mais valiosos –, elas eram baleadas e seus corpos jogados na água para serem levados pela correnteza. O passado parecia palpável.
Ao longo do dia, Edie foi ficando cada vez mais quieta. Eu me perguntei se ela teria dificuldade em falar para um público de seiscentas pessoas naquela noite depois de uma jornada emocional que certamente havia revolvido memórias dolorosas. Mas, quando ela subiu ao palco, não falou sobre o medo, o trauma ou o horror que nossa visita provavelmente reavivou. Optou por contar uma história de bondade, uma ação de heroísmo diário que, como ela nos relembrou, acontece mesmo no inferno. “Não é incrível que o pior revele o que temos de melhor?”, refletiu ela.
No fim do discurso, que ela concluiu com seu tradicional passo de balé, o grand battement, Edie convidou: “Ok, agora todo mundo dançando!” A plateia inteira se levantou. Centenas de pessoas se dirigiram ao palco. Não havia música, mas todos nós dançamos. Dançamos e cantamos e rimos e nos abraçamos numa inesquecível celebração da vida.
A Dra. Eger é hoje uma das poucas pessoas vivas que sentiram na pele os horrores dos campos de concentração. Seu livro relata o inferno e o trauma que ela e outros sobreviventes enfrentaram durante e após a guerra. O livro é também uma mensagem universal de esperança e de possibilidade para todos os que estão tentando se libertar da dor e do sofrimento. Sejam os que estão presos em casamentos ruins, em famílias destrutivas, em trabalhos que odeiam ou em suas próprias mentes, os leitores descobrirão que é possível abraçar a alegria e a liberdade independentemente das circunstâncias.
A bailarina de Auschwitz é uma crônica extraordinária sobre heroísmo e cura, resistência e compaixão, sobrevivência com dignidade, resistência mental e coragem moral. Todos nós podemos aprender a curar nossa vida por meio do relato inspirador da Dra. Eger e sua impressionante história pessoal.
São Francisco, Califórnia
Janeiro de 2017