A navalha de Ockham | Sextante

A navalha de Ockham

Johnjoe McFadden

O princípio filosófico que libertou a ciência e ajudou a explicar o universo

O princípio filosófico que libertou a ciência e ajudou a explicar o universo

 

“Este livro descreve com brilhantismo o efeito transformador da doutrina de Guilherme de Ockham sobre a nossa compreensão da natureza e do universo.” – Philip Pullman

 

“É inútil fazer com mais aquilo que pode ser feito com menos.”

Com esse raciocínio límpido e engenhosamente simples, Guilherme de Ockham, um frade franciscano que viveu na Inglaterra do século XIV, desencadeou uma revolução na forma de entender o mundo.

Seu princípio filosófico ficou conhecido como “a navalha de Ockham” e pode ser resumido assim: soluções simples são preferíveis, e com mais frequência verdadeiras, quando se trata de explicar fenômenos naturais.

Neste livro, o cientista Johnjoe McFadden nos convida a uma viagem por 2 mil anos no tempo pela história da ciência e de como a simplicidade preconizada por Ockham desvendou grandes mistérios da natureza e do cosmo.

Dos primeiros astrônomos da Mesopotâmia à descoberta do átomo, passando pelos gregos e acelerando até as teorias de Darwin e os segredos do DNA, a navalha ofereceu respostas que até hoje fascinam cientistas e filósofos.

Para o autor, a simplicidade está para a ciência como os números estão para a matemática e as notas para a música. Se é assim, só o futuro dirá quantas maravilhas ainda poderá revelar – em todos os campos do conhecimento.

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Ficha técnica
Lançamento 16/08/2022
Título original Life Is Simple
Tradução George Schlesinger
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 368
Peso 450 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-426-5
EAN 9786555644265
Preço R$ 69,90
Ficha técnica e-book
eISBN 978-65-5564-427-2
Preço R$ 44,99
Lançamento 16/08/2022
Título original Life Is Simple
Tradução George Schlesinger
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 368
Peso 450 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-426-5
EAN 9786555644265
Preço R$ 69,90

E-book

eISBN 978-65-5564-427-2
Preço R$ 44,99

Leia um trecho do livro

Introdução

 

É maio de 1964. Dois físicos americanos contemplam um instrumento científico do tamanho de um caminhão. O equipamento, no formato de uma gigantesca corneta acústica, está no topo de um pequeno morro na cidadezinha de Holmdel, em Nova Jersey. Os homens estão na casa dos 30 anos. Arno Penzias, nascido em uma família judia da Baviera que fugiu para o Bronx em 1939, é alto, usa óculos e está perdendo cabelo. Robert Woodrow Wilson, de Houston, Texas, também é alto, tem barba escura e é careca. A dupla se conheceu em uma conferência apenas dois anos antes – Penzias falando pelos cotovelos; Wilson, tímido e cauteloso. Logo se entenderam e uniram forças nos mundialmente famosos Laboratórios Bell para trabalhar em um projeto de mapeamento estelar por meio de micro-ondas. Ambos olham perplexos para o céu.

As micro-ondas, uma radiação com comprimentos de onda entre 1 milímetro e 1 metro, haviam sido descobertas quase um século antes e se tornaram um assunto polêmico quando cientistas militares tentaram, na Segunda Guerra Mundial, utilizá-las para criar armas capazes de derrubar mísseis inimigos. Após a guerra, empresas de telecomunicações também passaram a se interessar pelas micro-ondas depois que o físico Robert H. Dicke, trabalhando no famoso Massachusetts Institute of Technology (Instituto de Tecnologia de Massachusetts; MIT, na sigla em inglês), projetou um eficiente receptor capaz de detectá-las. Com emissor e detector disponíveis, um novo meio de comunicação sem fio estava prestes a surgir.

Em 1959, os Laboratórios Bell construíram em Holmdel a antena em forma de corneta acústica para detectar micro-ondas refletidas por satélites. No entanto, esse interesse foi diminuindo e o foco se voltou para outras tecnologias de comunicação sem fio. Assim, a Bell passou a emprestar a antena para que cientistas pudessem fazer bom uso de uma corneta acústica gigante para captar micro-ondas, como Penzias e Wilson, cujo objetivo era mapear o céu. Em 20 de maio de 1964, eles foram para a sala de controle – uma espécie de cabana elevada conectada com a extremidade traseira da corneta – e apontaram a antena para o alto. No entanto, para onde quer que olhassem, mesmo mirando as regiões mais escuras do céu noturno, com raras estrelas, detectaram apenas um baixo e intrigante ruído de fundo, uma estática ou chiado.

O primeiro palpite foi que havia algum tipo de interferência de uma fonte local de micro-ondas. Os dois logo descartaram a possibilidade de essa interferência vir da cidade de Nova York, de testes nucleares, de uma instalação militar próxima e de perturbações atmosféricas. Rastejando dentro da antena, descobriram um par de pombos empoleirados e desconfiaram que seus dejetos pudessem ter causado os ruídos. Prepararam armadilhas e limparam a sujeira, mas, como os pássaros sempre voltavam, decidiram abatê-los. Mesmo assim, sempre que apontavam o instrumento para o céu noturno, ele continuava chiando.

A Universidade de Princeton fica a cerca de uma hora de carro de Holmdel. Depois da guerra, Robert Dicke havia se mudado para lá a fim de lecionar e comandar um grupo de pesquisa focado em física de partículas, lasers e cosmologia. Seu laboratório especializou-se em desenvolver instrumentos sensíveis para testar predições cosmológicas da teoria da relatividade geral de Einstein. A cosmologia estava sendo discutida por dois grupos rivais de teóricos que competiam para explicar a impressionante descoberta de Edwin Hubble, ocorrida décadas antes, de que o Universo estava se expandindo. Um dos campos favorecia a teoria do estado estacionário, segundo a qual o Universo sempre estivera se expandindo, equilibrado por uma criação contínua de matéria em seus espaços. Os teóricos rivais, incluindo Dicke, entendiam a expansão como um processo iniciado cerca de 14 bilhões de anos antes, propondo que o Universo teria se originado de uma explosão cataclísmica a partir de um minúsculo ponto.

O problema é que não era fácil distinguir as teorias rivais, uma vez que ambas faziam predições muito parecidas. De todo modo, Dicke percebeu que uma explosão que tivesse originado o Universo deixaria para trás uma evidência: uma nuvem uniforme de micro-ondas de baixa radiação. Ele reconheceu que o tipo de radar que desenvolvera no MIT poderia ser adaptado para detectar uma nuvem de energia cósmica. A radiação em micro-ondas seria, no entanto, muito mais fraca do que qualquer sinal conhecido, por isso sua detecção exigiria uma nova geração de radares de micro-ondas altamente sensíveis. Então Dicke e seu grupo da Universidade de Princeton decidiram construir um.

Nos anos seguintes, membros do grupo realizaram palestras descrevendo seu progresso nas pesquisas. Um colega de Penzias e Wilson compareceu a uma dessas reuniões e comentou com a dupla as notícias sobre os esforços da equipe de Princeton. Seria possível que o persistente chiado de micro-ondas da antena fosse o sinal que Dicke estava procurando? Então, durante uma reunião entre Dicke e seus colegas no escritório em Princeton, o telefone tocou. Do outro lado da linha estava Penzias. Todos os presentes se lembram de Dicke escutando atentamente ao telefone, de vez em quando repetindo “antena de corneta” ou “excesso de ruído” enquanto assentia. Ao desligar, Dicke se virou para o grupo e disse: “Bem, rapazes, nos passaram a perna.” Ele percebeu que Penzias e Wilson haviam descoberto o Big Bang.

No dia seguinte, Dicke e sua equipe foram até os Laboratórios Bell para admirar a antena e analisar os dados de forma mais meticulosa. Voltaram convencidos de que Penzias e Wilson tinham, de fato, descoberto as micro-ondas remanescentes do Big Bang. O que mais impressionou as duas equipes foi a suave uniformidade da radiação cósmica de fundo em micro-ondas (RCFM), como foi posteriormente chamada. Até onde foram capazes de perceber, tinha exatamente a mesma intensidade em qualquer ponto do céu para onde olhassem. Essa descoberta rendeu a Penzias e Wilson o Prêmio Nobel de Física em 1978. Cerca de uma década mais tarde, a NASA lançou seu satélite COBE (Cosmic Background Explorer, ou Explorador da Radiação Cósmica de Fundo) para fornecer medições mais precisas e descobriu tênues ondulações na RCFM, com variações na intensidade de radiação menores que uma parte em 100 mil. Isso é muito inferior à variação de brancura que se veria na mais branca folha de papel existente. Já em 1998 a European Space Agency (Agência Espacial Europeia; ESA, na sigla em inglês) lançou seu detector de micro-ondas, o Observatório Espacial Planck, e confirmou tanto as leves ondulações quanto a extraordinária uniformidade da RCFM.

A RCFM é uma espécie de fotografia do Universo tirada quando ele era menor que a Via Láctea. Sua uniformidade significa que, naquele momento, quando o primeiro raio de luz emergiu de trilhões de átomos, nosso Universo era simples. Na verdade, a RCFM continua sendo a matéria mais simples que conhecemos, ainda mais simples que um único átomo. Ela pode ser descrita por um único número, 0,00001, que se refere ao grau de variação da intensidade de suas ondulações. Como afirmou Neil Turok, diretor emérito do Instituto Perimeter de Física Teórica, em Ontário, no Canadá, a RCFM revela que “o Universo é impressionantemente simples […] [tanto que] não sabemos como foi que a natureza conseguiu resolver isso”.

O Universo se lembra de seu começo simples, de modo que, 14 bilhões de anos após o Big Bang, suas peças continuam simples. Este livro trata de revelar essas peças – os blocos de construção simples do nosso Universo – por meio de uma ferramenta conhecida como navalha de Ockham, batizada em homenagem a um frade franciscano chamado Guilherme de Ockham, que viveu sete séculos antes de Penzias e Wilson.

Meu interesse por essa simplicidade começou durante uma reunião de pesquisa em biologia ocorrida no meu local de trabalho na Universidade de Surrey, no Reino Unido, mais ou menos na época em que a ESA lançou sua missão Planck para medir a RCFM. Ali fui a uma palestra com o provocante título “A navalha de Ockham não tem lugar na biologia”, proferida por meu amigo e colega Hans Westerhoff. O ponto crucial do argumento de Hans era que a vida era complexa demais, até mesmo “irredutivelmente complexa”, nas palavras dele, para que a navalha de Ockham tivesse alguma utilidade. Naquela época, mais de duas décadas atrás, eu não sabia nada sobre Ockham e sua navalha, mas me lembrava de passar de carro todos os dias, a caminho do trabalho, por uma placa na estrada indicando o vilarejo de Ockham. A coincidência foi suficiente para despertar meu interesse e me convencer a varrer a internet na mesma noite em busca de alguma informação que pudesse salvar a reputação da tal navalha.

Minha busca logo revelou que a navalha de fato tinha sido batizada com o nome de Guilherme de Ockham, nascido no vilarejo próximo, em Surrey, no fim do século XIII. Depois de entrar para a ordem dos franciscanos, ele estudou teologia em Oxford, onde desenvolveu sua preferência pelas soluções mais simples. Essa ideia não era totalmente nova, mas a aplicação implacável desse princípio para desmantelar boa parte da filosofia medieval tornou-se tão notória que, três séculos depois de sua morte, o teólogo francês Libert Froidmont cunhou o termo “navalha de Ockham”. Referia-se à preferência de Guilherme por cortar o excesso de complexidade.

Hoje, o conceito da navalha é conhecido principalmente como “entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”. A palavra “entidades” refere-se às partes de uma hipótese, explicação ou modelo de qualquer sistema. Assim, se você detectar inesperadamente micro-ondas na sua antena em forma de corneta acústica, procure entidades familiares para explicar o fenômeno, como radares ou pombos, antes de inventar entidades novas, como Big Bangs. Até onde sabemos, Guilherme nunca manifestou sua preferência pela parcimônia usando exatamente essas palavras, mas expressou a ideia em frases como “A pluralidade não deve ser postulada sem necessidade” ou “É inútil fazer com mais aquilo que pode ser feito com menos”.

Na noite seguinte ao seminário de Hans, passei a estudar a história de Guilherme de Ockham e quanto mais eu me aprofundava, mais fascinante ela me parecia. As ideias do frade, inclusive seu desmantelamento de todas as “provas” estabelecidas sobre a existência de Deus, ultrapassaram as fronteiras de Oxford e provocaram uma acusação de heresia e uma convocação para enfrentar um julgamento perante o papa, em Avignon. Uma vez lá, Guilherme se envolveu em um conflito ainda mais grave entre o papa e os franciscanos, o que o levou a acusar Sua Santidade de heresia e obrigou-o a fugir da cidade, perseguido por um grupo de soldados papais.

Essa passagem foi emocionante, mas eu já tinha munição suficiente para defender nosso herói local. Na minha palestra no dia seguinte, ressaltei que a navalha, em sua formulação mais conhecida, afirma apenas que “entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”. A expressão “além da necessidade” é generosa. Se todas as explicações mais simples para um fenômeno fracassam, a navalha dá plena licença para criar quantas noções disparatadas forem necessárias, tais como a alegação de que o Universo explodiu a partir de um ponto infinitesimal há 14 bilhões de anos. Como dizia Sherlock Holmes, “Uma vez que se elimina o impossível, o que sobra, seja lá o que for, não importa quão improvável seja, deve ser a verdade”. Assim, quando Hans argumentou que a navalha é um instrumento grosseiro demais para lidar com os delicados sustentáculos da biologia, contrapus que a expressão “além da necessidade” nos permite criar tantas entidades quantas precisarmos, mas sem passar disso.

O debate continua, mas agora sob a influência do meu fascínio por Guilherme, por seu trabalho e pelo papel de sua navalha na ciência. A pesquisa me levou dos claustros de Oxford e palácios de Avignon às primeiras faíscas da ciência moderna no mundo medieval. Desde então sigo seu rastro, da mesma forma que o fizeram alguns gigantes da ciência moderna – de Copérnico a Kepler, passando por Newton, Einstein e Darwin, todos expressando uma preferência por soluções simples. Essa jornada me convenceu de que a simplicidade não é apenas uma ferramenta da ciência, ao lado da experimentação; está para a ciência assim como os números estão para a matemática e as notas para a música. De fato, em última análise, creio que a simplicidade é o que separa a ciência da miríade de outras formas de dar sentido ao mundo. Em 1934, Albert Einstein insistiu que “o grande objetivo de toda a ciência [é] cobrir o maior número de fatos empíricos por dedução lógica a partir do menor número possível de hipóteses ou axiomas”. A navalha de Ockham nos ajuda a encontrar “o menor número possível de hipóteses ou axiomas”.

Mas o trabalho da navalha de Ockham não está terminado, e continua tão controverso quanto na época de Guilherme. À medida que a física avança lentamente rumo às teorias mais simples, os biólogos lutam para extrair teorias simples do acelerado fluxo de dados que jorra da genômica e outras tecnologias “-ômicas”. Estatísticos debatem constantemente seu valor e sua significância. Há não muito tempo, um grupo de cientistas franceses publicou um artigo defendendo a ideia de que modelos simples aperfeiçoados pela navalha dão mais sentido à pandemia de Covid-19 do que os volumosos e incômodos modelos usados pela maioria dos epidemiologistas. Na ciência de ponta, a simplicidade continua a nos apresentar as percepções mais profundas, enigmáticas e, às vezes, inquietantes.

Talvez o mais surpreendente seja isto: fica cada vez mais claro que o valor da navalha de Ockham não se limita à ciência. William Shakespeare insistia que “a brevidade é a alma da sagacidade”, e a modernidade levou esse princípio a sério. Da música minimalista de John Cage às linhas arquitetônicas limpas de Le Corbusier, da prosa enxuta de Samuel Beckett às linhas suaves do iPad, a cultura moderna está impregnada de simplicidade. A navalha de Ockham encontra expressão no conselho do arquiteto Mies van der Rohe de que “menos é mais”; na instrução do cientista da computação Bjarne Stroustrup para “tornar simples as tarefas simples”; e nesta observação do escritor e aviador Antoine de Saint-Exupéry: “Parece que a perfeição é alcançada não quando não resta mais nada a acrescentar, mas quando não resta nada a ser retirado.” Em engenharia, essa ideia é mais conhecida pela sigla KISS, de “Keep it simple, stupid” (“Simplifique, idiota”), um princípio de design adotado pela Marinha dos Estados Unidos na década de 1960, hoje reconhecido universalmente como fundamental para a engenharia. A navalha de Ockham é o sustentáculo do mundo moderno.

Também quero ser claro em relação ao que não estou tentando fazer neste livro. Não é meu objetivo tecer uma história exaustiva da ciência. Em vez disso, espero convencer você do valor da navalha de Ockham, ainda pouco apreciado, por meio de um relato seletivo de ideias e inovações fundamentais que exemplificam sua importância e ilustram seu uso. Isso significa, inevitavelmente, que muitos avanços relevantes feitos pelos maiores cientistas foram omitidos. Para os leitores interessados em preencher essas lacunas, recomendo alguns livros excelentes.

Além disso, e talvez ainda mais importante, este livro não é tanto sobre a história da ciência, e sim um relato e uma exploração das melhores ideias, dentro e fora da ciência, inspiradas pela navalha de Ockham. Inicio em um mundo em que a ciência era essencialmente um ramo da teologia. Hoje isso pode parecer estranho, mas, ao longo da história da humanidade, foi a perspectiva predominante. Guilherme de Ockham e sua navalha ajudaram a libertar a ciência rompendo suas amarras teológicas, um feito, acredito eu, crucial para o curso subsequente da história. Todavia, a ciência permanece prisioneira de seu contexto cultural, algo visível quando consideramos suas origens e seu desenvolvimento. Consequentemente, esta obra também examina um mundo mais amplo onde a navalha de Ockham se faz presente.

Por fim, existe apenas uma ciência, mas há muitos ramos e raízes que se propagam, chegando à antiga Mesopotâmia, onde os primeiros astrônomos registraram o movimento das estrelas, e à Índia ancestral, onde o sistema de algarismos arábicos foi inventado. Essas raízes também remontam à antiga China, berço de muitas tecnologias, como a xilografia; às costas do mar Egeu, onde os antigos gregos usaram a matemática para dar sentido ao mundo; e ao Oriente Médio e ao Norte da África, onde eruditos islâmicos preservaram e expandiram a ciência grega para novas áreas, como óptica e química. Centenas de lugares, incontáveis épocas e milhões de pessoas contribuíram para esse notável sistema de pensamento a que chamamos ciência moderna. Infelizmente, a maioria dos cientistas em cujo trabalho me inspirei para ilustrar o papel da navalha de Ockham é composta de homens brancos, ricos e ocidentais. Não há dúvida de que pessoas de todos os gêneros e raças contribuíram para a ciência moderna, mas a falta de oportunidades, o preconceito e as barreiras sociais impediram a documentação de grande parte dessas contribuições. Tentei compensar esse déficit nos capítulos finais do livro, para ilustrar minha convicção de que a ciência foi e continuará sendo o empreendimento mais cooperativo da humanidade.

Nossa jornada começa a bordo de uma embarcação.

 

PARTE I

Descoberta

De eruditos e hereges

 

Descobri muitas coisas que eram heréticas, erradas, tolas, ridículas, fantásticas, insanas e difamatórias, contrárias e francamente adversas à fé ortodoxa, à boa moral, à razão natural, à experiência certa e à caridade fraternal. Decidi que algumas delas deveriam ser inseridas aqui.

Guilherme de Ockham, “Uma carta para a Ordem dos Frades Menores”, 1334

 

Fuga

 

Na noite de 26 de maio de 1328, três frades, tonsurados e vestidos com as batinas de cor cinza dos franciscanos, saíram furtivamente da cidade papal de Avignon e desceram a cavalo para o sul, até o porto fluvial dos cruzados em Aigues-Mortes, cerca de 100 quilômetros a noroeste de Marselha. O primeiro deles era Michele de Cesena, ministro-geral da ordem franciscana e chanceler do selo da ordem. O segundo era o jurista-chefe dos franciscanos, Bonogratia de Bérgamo. Ambos eram bem conhecidos de príncipes e papas, tendo viajado muito entre as cortes europeias como representantes da ordem. O terceiro fugitivo, que tinha cerca de 40 anos e compleição esguia, era o erudito inglês Guilherme de Ockham. Embora fosse mais de uma década mais jovem que seus irmãos franciscanos, suas ideias ousadas já lhe haviam rendido notoriedade e uma acusação de heresia. Os três estavam fugindo da justiça papal por terem acusado o papa de ser herege. Se capturados, enfrentariam excomunhão, encarceramento ou até mesmo uma morte lenta e cruel na fogueira.

O grupo viajou com uma escolta de “servos bem armados”.* Já em Aigues-Mortes, foram recebidos por “Giovanni Gentile, cidadão de Savona, o capitão de uma galera” atracada no porto. Esses navios, longos e lentos na água, similares a uma gôndola veneziana, porém maiores e equipados tanto com velas quanto com fileiras de remos, eram capazes de navegar por mares rasos e rios. Por isso eram muito utilizados no comércio de bens entre os portos do norte do Mediterrâneo. Os frades, com toda a certeza, ficaram aliviados ao embarcar na galera e deviam estar ansiosos para zarpar logo, mas o tempo fechado e a maré contrária frustraram a fuga.

Nesse ínterim, em Avignon, a fuga fora descoberta e um pelotão de soldados papais fora despachado para capturar os frades. Comandado pelo lorde de Arrabley e “acompanhado por um grande número de servidores papais e reais”, o grupo encarregado da prisão apareceu no meio da noite, quando os franciscanos já estavam a bordo da galera de Gentile, ainda ancorada no porto, sem poder partir. Arrabley exigiu que o capitão entregasse os fugitivos. Gentile inicialmente pareceu cooperar, convidando o nobre a bordo. O enviado papal deu voz de prisão aos franciscanos e os ameaçou com “as mais graves penalidades” se Gentile se recusasse a entregá-los. Os dois homens chegaram ao acordo de que os franciscanos se renderiam às autoridades papais. No entanto, logo que Arrabley desembarcou, ainda na escuridão da noite, “o capitão desenrolou as velas e zarpou em segredo”.

Observar os irados soldados papais cada vez mais distantes deve ter deleitado os aterrorizados franciscanos, mas a alegria durou pouco. Depois de terem “navegado por umas boas 30 léguas rio abaixo” (naquela época o porto ficava a muitos quilômetros do mar), “a Providência divina criou um vento contrário”, que os soprou de volta rio acima, obrigando Gentile a buscar refúgio mais uma vez ao alcance do pelotão papal. As negociações foram retomadas para a entrega dos franciscanos, que permaneceram a bordo por vários dias “em extremo temor”. No entanto, tudo indica que o astuto capitão estava tentando ganhar tempo, pois, quando as condições climáticas melhoraram, ele zarpou novamente, dessa vez entrando em mar aberto, onde o aguardava uma grande galera bélica savoniana capitaneada por um certo “Li Pelez”, aliado do então recém-eleito imperador do Sacro Império Romano, Luís da Baviera. Gentile providenciou a transferência dos fugitivos para o navio maior e, em 3 de junho, a galera de guerra com seus passageiros franciscanos alçou velas para além do alcance do furioso papa. Guilherme ainda viveu por um bom tempo, mas, até onde sabemos, nunca mais voltou à França nem a seu lar na Inglaterra.

O relato histórico da fuga dos franciscanos é interrompido após sua partida de Aigues-Mortes. No entanto, é possível obter uma amostra do tipo de viagem que Guilherme e seus amigos teriam vivenciado por meio do relato quase contemporâneo de Jean de Joinville, que acompanhou Luís IX na sétima cruzada, em 1248, partindo do mesmo porto.

Quando os cavalos estavam no navio, nosso capitão gritou para seus marinheiros na proa: “Vocês estão prontos?” E eles responderam: “Sim, senhor.” “Então que se apresentem os clérigos e padres.” Logo que estes se apresentaram, o capitão se dirigiu a eles: “Cantem, em nome de Deus!” E todos eles entoaram a uma só voz: “Veni Creator Spiritus.” Então ele gritou para os seus marinheiros: “Desenrolar as velas, em nome de Deus!” E eles assim o fizeram. Em pouco tempo, o vento nos levara para fora de vista da terra, de modo que não víamos nada a não ser céu e mar. […] E essas coisas eu lhes conto para que possam entender quão temerário é o homem que ousa […] colocar-se em perigo mortal vendo que se deitam para dormir à noite a bordo do navio sem saber se pela manhã poderão se encontrar no fundo do mar.

Mas, afinal, o que tinham as ideias de Guilherme de tão perigosas que fizeram o papa se dar ao trabalho de tentar capturá-lo? Para compreender, precisamos mergulhar na mentalidade arcaica do mundo medieval.

Guilherme nasceu por volta de 1288 em Ockham, um pequeno vilarejo em Surrey, cerca de um dia de viagem a sudoeste de Londres. Não há relatos contemporâneos, exceto a inscrição do povoado no Domesday Book,* escrito em 1086, 20 anos depois da conquista da Inglaterra pelos normandos e 200 anos antes do nascimento de Guilherme. Pode parecer muito tempo, mas, após o turbilhão imediato da Conquista, o ritmo de mudança na Inglaterra medieval era muito mais lento que hoje e, pelo que sabemos, Ockham permaneceu o vilarejo insignificante descrito sob o nome anglo-saxão de Bocheham. Havia pasto para 26 vacas, florestas produzindo bolotas para alimentar 40 porcos, campos para sustentar cerca de 20 famílias e um moinho. Talvez a característica mais arcaica do relato do Domesday seja a maneira como o livro descreve os habitantes humanos do lugar: “32 arrendatários feudais (villeins) e quatro servos livres (bordars), […] três servos sem autonomia (bondmen)”. Apesar das categorias diferentes, esses servos eram pouco mais que escravos, comprados e vendidos junto com o feudo. Nenhum nome foi mencionado, exceto o de um homem livre cujo nome anglo-saxão era Gundrid. O feudo todo fora avaliado em 15 libras, que equivaliam, aproximadamente, a oito vezes o que um trabalhador podia ganhar em um ano.

O primeiro fato conhecido a respeito de Guilherme é que ele foi entregue à ordem franciscana quando tinha cerca de 11 anos. Isso era relativamente comum em famílias nobres, porém há fortes indícios de que Guilherme não era da nobreza. Primeiro, não há registros de sua família, o que sugere uma origem humilde. Segundo, não há nobres listados na Ockham do Domesday Book nem em relatos posteriores. Os mosteiros também serviam de orfanatos extraoficiais para crianças não desejadas, de modo que é mais provável que Guilherme tenha sido uma criança órfã, bastarda ou abandonada na escadaria de um deles.

Havia diversos pequenos mosteiros franciscanos em cidades próximas a Ockham, por exemplo, em Guildford e Chertsey. Talvez Guilherme tenha passado seus primeiros anos em um deles, onde teria recebido a tonsura e o hábito cinza com capuz.* Como oblato, um tipo de frade aprendiz, teria se submetido a uma vida monástica altamente regrada. Os dias começavam às seis da manhã, com louvores. Depois havia serviços e entoação de salmos, seguidos de aulas. O objetivo dessa educação primária era assegurar que ele crescesse capaz de cumprir seu dever básico como frade, lendo preces e entoando salmos. O método de ensino padrão consistia em decorar e entoar ou cantar as passagens. Nesse estágio, não se esperava que os meninos necessariamente entendessem o latim de seus cânticos e preces. Conforme confessa o garoto no “Conto da Prioresa”, de Chaucer: “Aprendo cântico, sei pouca gramática.”

Durante seus primeiros anos no seminário, Guilherme provavelmente recebeu instrução em aritmética básica, leitura da Bíblia e a vida dos santos. Livros eram muito preciosos, de modo que o ensino envolvia sobretudo ditados mecânicos de trechos lidos pelo Mestre e então copiados em placas de cera com um estilete. A disciplina era rígida em um regime que não devia ser muito diferente daquele defendido por São Benigno de Dijon: “Se os rapazes cometerem alguma falta, […] que não se tarde em despi-los imediatamente da batina e que sejam surrados apenas vestindo a camisa.”4 Guilherme não só sobreviveu como impressionou seus superiores, tanto que, por volta de 1305, quando tinha pouco menos de 20 anos, o enviaram para a escola franciscana mais próxima, ou studium generale, a Greyfriars (Frades Cinzentos), perto de Newgate, na cidade de Londres, para receber sua educação secundária.

Newgate era uma área no sudeste da Cidade Velha, adjacente a um dos sete portões nas muralhas de Londres, cerca de um dia de viagem a cavalo ao norte de Ockham ou Guildford. Ou, mais provavelmente, a vários dias de caminhada. O mosteiro, o maior e mais antigo da Inglaterra, abrigava mais de uma centena de frades e ficava perto do movimentado mercado de carne de Newgate. Podemos imaginar o noviço abrindo caminho a cotoveladas através de vielas estreitas, barulhentas, escorregadias, fedorentas e lotadas, com nomes como Rua da Bexiga ou Passeio da Carne, desviando de homens e garotos carregando carcaças de vacas, porcos e carneiros pingando sangue e baldes fumegantes de sangue congelado para o pudim vendido na Rua do Pudim, nas redondezas. É fácil imaginar Guilherme sentindo um grande alívio ao cruzar as portas de madeira e chegar ao relativo isolamento e sossego do mosteiro.

Como studium generale, a Greyfriars era algo entre escola e universidade, onde um frade com inclinações acadêmicas estudava por três anos para um bacharelado ou por seis anos para um mestrado. Se fosse inteligente o bastante, prosseguiria para um doutorado em teologia. Foi lá que a educação de Guilherme se ampliou de modo a abranger o trivium das artes liberais da universidade medieval, que compreendia gramática, lógica e retórica, antes de avançar para o quadrivium, que incluía, além de música, matérias que hoje fariam parte do currículo de ciências: aritmética, geometria e astronomia.

No entanto, quando Guilherme se sentava na sala de aula com paredes de pedra, ao lado de colegas tonsurados vestindo hábito cinza, para ouvir seus mestres lecionarem lógica, aritmética, geometria ou astronomia, a experiência era totalmente diferente da de qualquer estudante moderno. Para começar, a maioria dos textos básicos tinha centenas ou até mais de mil anos.

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Johnjoe McFadden

Sobre o autor

Johnjoe McFadden

JOHNJOE MCFADDEN é professor de genética molecular na Universidade de Surrey, no Reino Unido, onde estuda micro-organismos causadores de doenças. Também escreveu Quantum Evolution (A evolução do quantum) e é coautor de A vida no limite, com Jim Al-Khalili. Vive em Londres com a esposa e o filho.  

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