Nota do autor
Esta história, assim como As cinco pessoas que você encontra no céu, foi inspirada no meu amado tio Edward Beitchman, um veterano da Segunda Guerra Mundial que se achava “um ninguém, uma pessoa que nunca fez nada de importante”.
Quando eu era criança, tio Eddie me contou sobre a noite em que quase morreu num leito de hospital e saiu do corpo, vendo seus entes queridos já falecidos esperando por ele à beira da cama.
A partir desse momento, passei a enxergar o céu como um lugar onde encontramos aqueles que tocamos na Terra e aonde vamos para vê-los de novo. Mas reconheço que essa é somente a minha visão. Existem muitas outras, muitas definições religiosas diferentes, e todas devem ser respeitadas.
Assim, este romance – e sua versão da vida após a morte – é um anseio, não um dogma; é um desejo de que pessoas queridas, como tio Eddie, encontrem a paz que não tiveram na Terra e percebam quão profundamente afetamos uns aos outros, todos os dias desta preciosa vida.
Fim
Esta história é sobre uma mulher chamada Annie. Ela começa pelo fim, com Annie caindo do céu. Como era jovem, Annie jamais pensava em finais. Jamais pensava no céu. Mas todos os fins são também começos.
E o céu está sempre pensando em nós.
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Na época em que morreu, Annie era alta e magra, com longos cabelos cacheados cor de caramelo, cotovelos e ombros ossudos e uma pele que se avermelhava ao redor do pescoço quando ela ficava sem graça. Tinha olhos reluzentes, de um tom claro de verde-oliva, e um rosto oval que os colegas de trabalho descreviam como “bonito assim que você passa a conhecê-la”.
Enfermeira, Annie usava roupa azul e tênis de corrida cinza para trabalhar num hospital das proximidades. E seria nesse hospital que ela deixaria este mundo – depois de um trágico acidente – um mês antes de completar 31 anos.
Você pode dizer que ela era “jovem demais” para morrer. Mas o que é ser jovem demais para uma vida? Quando criança, Annie foi poupada da morte uma vez, em outro acidente trágico, num lugar chamado Ruby Pier, um parque de diversões à beira de um grande oceano cinzento. Algumas pessoas disseram que sua sobrevivência foi um “milagre”.
Assim, talvez ela fosse mais velha do que deveria.
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“Estamos aqui reunidos…”
Se você soubesse que está prestes a morrer, como passaria suas últimas horas? Annie, que não sabia, passou as dela se casando.
O nome do seu noivo era Paulo. Tinha olhos azul-claros, cor de água de piscina, e uma densa cabeleira quase toda preta. Ela o conheceu no ensino fundamental, brincando de pular carniça na aula de educação física. Annie era aluna nova, tímida e reservada. Enquanto baixava a cabeça para se colocar na posição da brincadeira, repetia para si mesma: Eu queria sumir daqui.
Então as mãos de um menino empurraram seus ombros para baixo e ele pousou na frente dela feito um pacote largado no chão.
– Oi, eu sou o Paulo – disse ele, sorrindo, com uma mecha de cabelo caindo na testa.
E de repente Annie não queria ir a lugar nenhum.
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“Você, Annie, aceita este homem…”
Restando catorze horas de vida, Annie fez seus votos nupciais. Ela e Paulo estavam sob um toldo, perto de um lago cor de mirtilo. Tinham perdido contato na adolescência e só haviam se reencontrado recentemente. Os anos que Annie passou longe dele foram difíceis. Ela sofreu muitas perdas. Viveu relacionamentos ruins. Chegou a acreditar que nunca mais amaria um homem e que certamente jamais se casaria.
Mas ali estavam eles. Annie e Paulo. Assentiram para o pastor. Seguraram as mãos um do outro. Annie vestia branco, Paulo vestia preto, e a pele dos dois estava bronzeada devido às horas sob o sol. Quando se virou para olhar o futuro marido, Annie viu um balão de ar quente flutuando acima do crepúsculo. Que lindo!, pensou.
Então se concentrou no riso de Paulo, largo como o horizonte. Ela deu uma gargalhada nervosa enquanto ele tentava colocar a aliança. Quando Annie levantou o dedo, todo mundo gritou: “Parabéns!”
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Restavam treze horas. Os dois caminharam pelo corredor entre os bancos, de braços dados; um casal recém-casado com todo o tempo do mundo. Enquanto afastava as lágrimas, Annie viu um velho na última fileira que usava boné de pano e ria, com o maxilar inferior proeminente. Annie sentiu que o conhecia.
– Paulo – sussurrou ela –, quem é aquele homem…
Mas alguém a interrompeu:
– Você está tão linda!
Era uma prima adolescente de Paulo com aparelho nos dentes.
Annie sorriu e respondeu apenas mexendo os lábios, sem som:
– Obrigada.
Quando olhou de novo, o velho tinha sumido.
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Restando doze horas de vida, Annie e Paulo foram para a pista de dança, sob um varal de lâmpadas brancas. Paulo levantou o braço e disse:
– Pronta?
E Annie se lembrou de uma festa no ginásio da escola, no final do ensino fundamental, em que foi até Paulo e disse:
– Você é o único garoto que fala comigo, então me diga se quer dançar. Se não quiser, eu vou para casa ver TV e pronto.
Ele sorriu para ela como sorria agora, e os dois se encaixaram como peças de um quebra-cabeça.
Um fotógrafo saltou na frente deles e gritou:
– Olhe para cá, casal feliz!
Instintivamente, Annie escondeu a mão esquerda atrás das costas de Paulo, a mão que ainda tinha cicatrizes do acidente que acontecera mais de vinte anos antes.
– Lindo! – disse o fotógrafo.
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Restavam onze horas. Annie se apoiou no braço de Paulo e olhou o salão de baile ao redor. A comemoração ia esmorecendo. Havia pedaços de bolo espalhados pelo chão e sapatos altos de mulheres escondidos debaixo das mesas. Era um evento pequeno (Annie não tinha muitos parentes), e ela havia conversado com quase todos os convidados, muitos dos quais tinham dito coisas como “Vamos nos ver mais vezes!”.
Paulo se virou para Annie:
– Olha, fiz uma coisa para você.
Annie sorriu. Ele vivia fazendo presentinhos para ela. Pequenas esculturas de madeira. Badulaques. Paulo aprendera a esculpir e pintar na Itália, para onde sua família tinha se mudado quando ele era adolescente. Na época, Annie achou que nunca mais o veria, mas anos depois, trabalhando como enfermeira, passou por uma ala do hospital em construção e ali estava ele, trabalhando como marceneiro.
– Ei, eu conheço você! – exclamou ele. – Você é a Annie!
Dez meses depois, estavam noivos.
No princípio, Annie ficou feliz. Mas à medida que o casamento se aproximava, sua ansiedade crescia. Começou a perder o sono.
– Sempre que planejo coisas, elas não acontecem – disse a Paulo.
Ele a abraçou e lembrou que ela não tinha “planejado” esbarrar com ele naquele dia no hospital, certo?
Annie levantou as sobrancelhas.
– Como você pode saber?
Paulo riu.
– Essa é a Annie com quem vou casar!
Mas a preocupação permaneceu.
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– Aqui está – disse Paulo, entregando-lhe um objeto pequeno, amarelo, macio e peludo, com orelhas ovais em cima e pés ovais embaixo.
– Um coelho? – perguntou Annie.
– Ahã.
– Feito com limpadores de cachimbo?
– É.
– Onde você arranjou isto?
– Eu fiz. Por quê?
Annie se sentiu subitamente desconfortável. Olhou para o outro lado do salão e viu o velho de antes. Ele tinha queixo largo e suíças brancas, e usava um terno que já estava fora de moda havia uns trinta anos. Mas foi a pele que atraiu sua atenção; era estranha, quase radiante.
De onde eu conheço esse homem?
– Não gostou?
– O quê?
– Do coelho.
– Ah. Sim. Adorei.
– Sim – repetiu Paulo, como se estivesse refletindo. – Hoje estamos dizendo “sim” um bocado de vezes.
Annie sorriu e acariciou a pequena escultura. Mas um frio atravessou seu corpo.
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Annie segurava um coelho feito com limpadores de cachimbo – como o que Paulo lhe deu – no dia do acidente fatídico. Um presente do velho que ela agora via em seu casamento, um homem do qual não conseguia se lembrar.
Um homem que havia morrido mais de vinte anos antes.
Seu nome era Eddie. Ele trabalhava no Ruby Pier, consertando os brinquedos do parque de diversões. Lubrificava os trilhos, apertava os parafusos e andava continuamente pelo parque, observando e prestando atenção em qualquer problema. Tinha sempre limpadores de cachimbo no bolso da camisa, para fazer brinquedos para as crianças menores.
No dia do acidente, Annie tinha sido deixada sozinha pela mãe, que estava se divertindo no parque com o novo namorado. Eddie olhava para o mar quando Annie se aproximou, usando um short jeans curtinho e uma camiseta verde-limão com um pato de desenho animado na frente.
– Dá liceeeença, Senhor Eddie da Manutenção? – disse ela, lendo o aplique na camisa dele.
– Eu mesmo. – Ele suspirou.
– Eddie?
– Hum?
– O senhor pode fazer pra mim…
Ela juntou as mãos como se rezasse.
– Anda, menina. Não tenho o dia inteiro.
– O senhor faz um bichinho pra mim? Faz?
Eddie levantou os olhos com ar brincalhão, como se precisasse pensar. Depois pegou os limpadores de cachimbo amarelos e fez um coelhinho – exatamente igual ao que Paulo tinha acabado de lhe dar.
– Muuuito obrigada! – disse ela.
Doze minutos depois, Eddie estava morto.
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O incidente fatal aconteceu quando um carro se soltou de uma torre de queda livre chamada Cabum do Freddy, a 60 metros do chão. O carro ficou pendurado feito uma folha meio morta enquanto os ocupantes do brinquedo eram retirados em segurança. Olhando a cena de baixo, Eddie percebeu que um cabo estava esgarçado. Se ele se partisse, o carro despencaria.
– PARA TRÁS! – gritou.
A multidão embaixo se espalhou, em pânico.
Mas, na confusão, Annie correu para o lado errado. Encolheu-se na base da torre, apavorada demais para sair dali. O carro despencou. Teria esmagado Annie se, no último instante, Eddie não tivesse se jogado na plataforma e a empurrado para longe. Então o carro caiu em cima dele.
Tirou a vida de Eddie.
Mas também arrancou um pedaço de Annie. A mão esquerda. Um pedaço de metal se soltou com o impacto e decepou sua mão. Alguns funcionários que pensaram rápido puseram a mão ensanguentada no gelo e os paramédicos levaram Annie correndo para o hospital, onde cirurgiões trabalharam durante horas para consertar os tendões, os nervos e as artérias, enxertando pele e usando placas e parafusos para juntar a mão ao pulso novamente.
O acidente virou notícia em todo o estado. Jornalistas chamaram Annie de “O Pequeno Milagre do Ruby Pier”. Estranhos rezaram por ela. Alguns até tentaram encontrá-la, como se, por ter sido salva, ela guardasse o segredo da imortalidade.
Mas Annie, com apenas 8 anos, não se lembrava de nada. O choque dos acontecimentos apagou sua memória, como uma chama extinta por um vento forte. Até hoje, suas recordações não passavam de flashes, imagens e a sensação de que estava contente no dia em que foi ao Ruby Pier e nem um pouco contente quando voltou para casa. Os médicos usaram palavras como repressão consciente e transtorno de estresse pós-traumático, sem saber que certas lembranças pertencem a este mundo e algumas só voltam no outro.
Mas uma vida tinha sido trocada por outra.
O céu está sempre observando.