APRESENTAÇÃO
A viagem do descobrimento é bem mais do que uma leitura muito agradável (o que já não é pouco). Eduardo Bueno fez um livro capaz de permitir ao leitor entender melhor a frase famosa de Adam Smith:
“A descoberta da América e de uma passagem para as Índias Orientais pelo cabo da Boa Esperança são os dois maiores e mais importantes eventos da história da humanidade. Suas consequências já têm sido muito grandes; entretanto, no curto período de dois a três séculos, decorridos desde que feitas essas descobertas, é impossível que já tenhamos podido enxergar todo o alcance dessas consequências. Não há sabedoria humana capaz de prever que benefícios ou que infortúnios podem ainda advir futuramente à humanidade através desses grandes acontecimentos” (Adam Smith, A riqueza das nações, São Paulo, Nova Cultural, 1983, v.II, p. 100).
A frase está em A riqueza das nações, livro publicado em 1776 – antes ainda de o capitalismo se impor como sistema nacional de produção. Escrevendo em 1998, em plena era da globalização, Eduardo Bueno desvenda para o leitor uma versão muito atualizada das dimensões mundiais da expedição de Pedro Álvares Cabral, a primeira a ligar Europa, América, África e Ásia num único percurso – e a humanidade num conjunto de contatos imediatos entre seres humanos que até então haviam vivido isolados entre si.
O livro não se limita à ruptura do isolamento geográfico. Eduardo Bueno narra em grande detalhe como, em plena Idade Média europeia, Portugal dirigiu um projeto tecnológico regular (foram sete décadas de investimento contínuo) e revolucionário. Para atravessar os oceanos foi preciso recolher informação no mundo inteiro, gente (também do mundo inteiro) capaz de processar a informação na direção do objetivo constante, técnicos capazes de aplicar o conhecimento em artefatos, financiadores em larga escala.
O resultado disso foi uma mudança completa na estrutura do próprio conhecimento. Quando tudo começou, a astrologia não estava separada da astronomia; a química, da alquimia; a medicina, do ocultismo; a geografia, do mito. Bueno mostra como cada viagem foi dando sua contribuição para que, ainda antes de Copérnico, os navegantes portugueses fizessem tratados sobre a arte de navegar numa terra esférica.
Com a soma das dimensões geográficas, tecnológicas e de aventura postas na leitura, o episódio brasileiro da viagem de Pedro Álvares Cabral ganha uma nova qualidade. A terra tropical, as praias brancas, o clima suave, os rios caudalosos, os animais coloridos e barulhentos formam o cenário de encantamento, e de surpresa, até mesmo para quem vivia de surpresa em surpresa. Havia conhecimento hipotético da terra, mas a experiência sensorial dos viajantes excedeu suas próprias fantasias.
Claro, tal experiência foi completada por um encontro inusitado. Pessoas postas em grandes navios e cobertas de panos em pleno calor tropical trocaram olhares e experiências com nativos nus. Ali mesmo nasceu uma hipótese europeia: a terra onde estavam deveria ser o próprio Paraíso, e os seres nus, os inocentes primitivos, pessoas que ainda não conheciam o Pecado Original.
Ao leitor atento não escapará nem mesmo o destino de Afonso Ribeiro, português que foi deixado para viver entre os nativos enquanto a viagem da frota cabralina prosseguia. Ficaria ali muito tempo, não fosse uma extraordinária coincidência.
Em meados de 1501, no porto de Bezeguiche (hoje Dakar), a frota que voltava da Índia encontrou outra que vinha para o Brasil. O piloto desta, Americo Vespúcio, trazia ainda notícias da descoberta do atual Canadá por navegadores portugueses – e juntou uma notícia com outra, mais a própria experiência no Caribe, para presumir que havia todo um novo continente, desconhecido de europeus, asiáticos e africanos.
Sabendo onde estava Afonso Ribeiro, a frota foi resgatá-lo – e o piloto ouviu suas histórias. Juntou-as com outras que conhecia e escreveu, em setembro de 1502, uma carta para Francesco de Medici a que deu o título de Mundus Novus. O documento acabou publicado, foi o segundo grande best-seller da história da humanidade (só perdia para a Bíblia) e causou tanto impacto entre os leitores que o nome do autor acabou sendo dado
ao continente.
Como parte desse mundo agora integrado, o Brasil acabou entrando como possibilidade nova, utopia, paraíso e inferno. Era uma das consequências não previstas e cujos desdobramentos não se podiam calcular de que falou Adam Smith. Assim foi tratado por muito tempo pelos historiadores, até mesmo depois que a terra havia se transformado no país independente em que hoje vivemos.
Por muito tempo, apesar das dificuldades vencidas e dos esforços de muitos, houve um empenho para separar a chamada semana de Pedro Álvares Cabral – como chegaram a ser eventualmente denominados os dez breves e felizes dias que os portugueses passaram em Porto Seguro – do contexto bem mais amplo de sua viagem pioneira. De olhar para o particular, ignorando o geral. Tal tradição gerou a parte conhecida por quase todos os cidadãos brasileiros da aventura de 1500.
Ao escrever com o foco mundial indicado por Adam Smith e com grande riqueza narrativa, Eduardo Bueno permite que o leitor se delicie com a dialética entre o particular e o geral, o local e o mundial – afinal, a característica nova para os encontros humanos que a viagem do descobrimento efetivamente permitiu. Uma leitura imperdível.
Jorge Caldeira
Escritor, autor de Mauá, empresário do Império e de Júlio Mesquita e seu tempo