Prefácio
Este livro contém 108 ensinamentos práticos reunidos e adaptados das obras de Pema Chödrön. São 108 instruções essenciais para levarmos a vida no espírito do budismo mahayana. Mahayana significa “grande veículo”, o caminho que aos poucos nos leva para fora de nosso mundo estreito e autocentrado em direção ao mundo maior da amizade com todos os seres humanos. Os ensinamentos apresentados aqui dão um vislumbre da visão mahayana, um gostinho das práticas de meditação que ela oferece e dicas para trazer tanto essa visão quanto a meditação para a vida cotidiana.
Pema faz parte de uma longa linhagem de mestres e ensinamentos. Seu estilo é único, mas nada do que ela ensina é unicamente dela. Seus ensinamentos são influenciados principalmente por seu guru-raiz, Chögyam Trungpa Rinpoche. Trungpa Rinpoche foi um dos primeiros tibetanos a apresentar o budismo aos ocidentais em língua inglesa, combinando a sabedoria das linhagens Kagyü e Nyingma do budismo tibetano com a do reino de Shambhala. Shambhala é uma sociedade lendária e iluminada enraizada na visão da bondade fundamental, da prática da meditação e da atividade de cultivar boditchita, o coração desperto da bondade amorosa e da compaixão. Conta-se que o primeiro rei de Shambhala recebeu ensinamentos do Buda, praticou-os e transmitiu-os a seus súditos. Rinpoche chamava essa tradição meditativa secular de “o caminho sagrado do guerreiro”, enfatizando a característica inerentemente desperta (a “bondade fundamental”) de nós mesmos e do nosso ambiente. É pela prática da meditação que descobrimos a bondade fundamental e aprendemos a cultivar a boditchita. Com essa visão, essa prática e essa atividade, até a situação mais mundana se torna um veículo para o despertar.
Por estarem arraigados em princípios universais e no pragmatismo cotidiano, esses ensinamentos sobreviveram por muito tempo – 2.500 anos, pelo menos. Eles não são dogmáticos, e os alunos são incentivados o tempo todo a testá-los e experimentar por si mesmos sua verdade (darma). Por essa razão, esses ensinamentos são altamente adaptáveis. São capazes de falar qualquer língua e a qualquer cultura. Pema Chödrön preserva a tradição budista Shambhala de Trungpa Rinpoche e traz a antiga disciplina do budismo e a tradição guerreira de Shambhala à cultura e à psique modernas.
Em essência, esses ensinamentos nos dizem que, ao cultivar a atenção plena e a consciência, podemos nos dar conta de nossa riqueza inerente e compartilhá-la com os outros. Esse tesouro interno se chama boditchita. É como uma pedra preciosa enterrada bem fundo dentro de nós – para que a desenterremos quando as condições estiverem maduras. Em geral, a boditchita é apresentada em dois aspectos: absoluto e relativo. A boditchita absoluta é nosso estado natural, experimentado como a bondade fundamental que nos liga a todos os outros seres vivos do planeta. Ela tem muitos nomes: abertura, verdade absoluta, nossa verdadeira natureza, ponto sensível, coração terno ou simplesmente o que é. E combina as qualidades de compaixão, abertura incondicional e inteligência aguçada. É livre de conceitos, opiniões e noções dualistas de “eu” e “outro”.
Embora a boditchita absoluta seja nosso estado natural, ficamos intimidados com sua abertura incondicional. Sentimos nosso coração tão sensível e vulnerável que fabricamos muros para protegê-lo. É preciso um trabalho interior decidido até mesmo para ver esses muros, e uma abordagem delicada para demoli-los. Não temos que derrubá-los todos de uma vez nem “atacá-los com uma marreta”, como diz Pema. Aprender a repousar na bondade fundamental de coração aberto é um processo para a vida inteira. Esses ensinamentos oferecem técnicas delicadas e precisas para nos ajudar no caminho.
A boditchita relativa é a coragem e a compaixão para investigar nosso coração sensível, para estar com ele o máximo que pudermos e expandi-lo aos poucos. O ponto essencial no cultivo da boditchita relativa é continuar abrindo nosso coração ao sofrimento, sem nos fecharmos. Aos poucos, aprendemos a revelar as qualidades ilimitadas de amor, compaixão, alegria e equanimidade e a estendê-las aos outros. Treinar para tornar nosso coração assim tão grande exige bravura e gentileza.
Várias práticas nos ajudam a abrir o coração a nós mesmos e aos outros. A mais básica delas é a meditação sentada, em que podemos nos familiarizar com a ausência de chão e a espaciosidade de nossa natureza. Outra prática fundamental é o treinamento da mente (lojong, em tibetano), herança que recebemos de Atisha Dipankara, mestre budista do século XI. O treinamento da mente inclui dois elementos: a prática de enviar e tomar (tonglen, em tibetano), na qual tomamos a dor e enviamos prazer, e a prática das máximas, em que usamos máximas essenciais para reverter nossa atitude habitual de autocentramento. Esses métodos nos instruem a usar aqueles que parecem ser nossos maiores obstáculos – raiva, ressentimento, medo, inveja – como combustíveis para o despertar.
Neste livro, Pema ensina a meditação sentada, a prática de tonglen, o trabalho com as máximas do lojong e as práticas de aspiração das quatro qualidades ilimitadas como portais para o coração desperto da boditchita. Com a prática diária da meditação sentada, nos familiarizamos com a abertura natural de nosso coração. Nela, começamos a nos estabilizar e fortalecer. Fora da almofada de meditação, no dia a dia, passamos então a experimentar manter o coração aberto mesmo diante de circunstâncias desagradáveis. Com as práticas de tonglen e das máximas, começamos a sentir o sabor do que tememos e nos movemos em direção ao que habitualmente evitamos. Para ampliar ainda mais nossos limites e abrir o coração, praticamos a expansão das quatro qualidades ilimitadas – bondade amorosa (maitri, em sânscrito), compaixão, alegria e equanimidade –, buscando estendê-las aos outros.
Além disso, podemos nos dedicar a atividades específicas (paramitas, em sânscrito) que nos levam além de nossa estranha tendência humana a nos proteger da alegria do coração desperto. Pema chama essas atividades de “os seis caminhos do viver compassivo”: generosidade, paciência, disciplina, empenho, meditação e prajna, ou sabedoria. A base de todas essas práticas é o cultivo de maitri, uma bondade amorosa incondicional com nós mesmos, que diz “comece onde você está”.
Em termos budistas, esse caminho é chamado de atividade do bodisatva. Em termos simples, bodisatva é quem aspira a agir a partir de um coração desperto. Nos termos dos ensinamentos de Shambhala, é o caminho do guerreiro. Para unir essas duas correntes, Pema gosta de usar a expressão guerreiro-bodisatva, que indica uma energia fresca e vigorosa, disposta a entrar no sofrimento pelo bem dos outros. Essa ação está ligada à superação do autoengano, da autoproteção e de outras reações habituais que usamos para nos manter em segurança – numa prisão de conceitos. Ao romper com delicadeza e precisão essas barreiras do ego, desenvolvemos uma experiência direta da boditchita.
O que todos nesse caminho têm em comum é a inspiração para repousar na incerteza – alegremente. A raiz do sofrimento é resistir à certeza de que, não importam as circunstâncias, a incerteza é tudo que realmente temos. Os ensinamentos de Pema nos incentivam a ficar à vontade com a incerteza e, depois, ver o que acontece. O que chamamos de incerteza é, na verdade, a qualidade aberta de qualquer dado momento. Quando conseguimos estar presentes para essa abertura – que está sempre presente para nós –, descobrimos que nossa capacidade de amar e de nos importar com os outros é ilimitada.
Para os leitores que já receberam instruções sobre meditação, os ensinamentos deste livro podem servir de lembretes diários, semanais ou mensais de pontos importantes do caminho. Para os que ainda não começaram a meditar, o livro pretende ser uma fonte de informação que você pode usar – mas não substitui instruções presenciais de meditação. A lista de recursos no fim do livro ajudará os leitores interessados a encontrar um instrutor de meditação.
Obrigada a Tingdzin Ötro, Tessa Pybus, Julia Sagebien, John e David Sell, aos transcritores de Pema e à equipe da Shambhala Publications, principalmente Eden Steinberg, pelo apoio e incentivo neste projeto. Somos todos gratos a Pema por personificar o caminho do guerreiro-bodisatva e por transmiti-lo de maneira tão adequada e oportuna.
Estes 108 ensinamentos são trechos retirados de discussões mais longas encontradas em livros anteriores de Pema. Ao organizá-los, eu os visualizei como uma conta de cristal com 108 facetas que você pode contemplar como quiser. Que lhe tragam benefícios incomensuráveis.
Emily Hilburn Sell
1
O amor que não vai morrer
O despertar espiritual é frequentemente descrito como uma caminhada até o topo de uma montanha. Deixamos para trás o apego e o materialismo, e lentamente iniciamos a subida. Lá no alto, transcendemos toda a dor. O único problema dessa metáfora é que deixamos todos os outros para trás. O sofrimento deles permanece e não é aliviado por nossa fuga pessoal.
A jornada do guerreiro-bodisatva é para baixo, não para cima. É como se a montanha apontasse para o centro da terra, não para o céu. Em vez de transcender o sofrimento de todas as criaturas, nos movemos em direção à turbulência e à dúvida sempre que possível. Exploramos a realidade e a imprevisibilidade da insegurança e da dor, sem tentar afastá-las. Se esse processo consome muitos anos, se exige várias vidas, deixamos que assim seja. Em nosso próprio ritmo, sem pressa nem agressividade, caminhamos cada vez mais para baixo. Conosco vão milhões de outros, nossos companheiros no despertar para o destemor. Lá embaixo, encontraremos água, a água curativa da boditchita. A boditchita é o nosso coração – nosso coração ferido e suavizado. Bem lá embaixo, no meio de tudo, encontraremos o amor que não morrerá. Esse amor é a boditchita. É caloroso e delicado; é claro e afiado; é aberto e espaçoso. O coração desperto da boditchita é a bondade fundamental de todos os seres.
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O poder curativo da boditchita
Boditchita é uma palavra sânscrita que significa “coração nobre ou desperto”. Assim como a manteiga está latente no leite e o óleo está latente na semente de gergelim, o ponto sensível da boditchita está latente em você e em mim. Ele se equipara, em parte, à nossa habilidade de amar. Não importa a que ponto estejamos comprometidos com a indelicadeza, o egoísmo ou a ganância, o autêntico coração da boditchita não pode ser perdido. Ele está bem aqui, em tudo que tem vida, intacto e completamente íntegro.
Diz-se que, em tempos difíceis, somente a boditchita pode curar. Quando não achamos inspiração, quando nos sentimos prestes a desistir, esse é o momento em que a cura pode ser encontrada na sensibilidade da própria dor. A boditchita também se iguala, em parte, à compaixão – nossa capacidade de sentir a dor que compartilhamos com os outros. Sem perceber, nos protegemos continuamente dessa dor porque ela nos amedronta. Com base no medo profundo de nos machucarmos, construímos muros de proteção feitos de estratégias, opiniões, preconceitos e emoções. Mas, assim como a pedra preciosa enterrada durante um milhão de anos não é danificada nem perde a cor, esse coração nobre também não é afetado por todas as nossas tentativas de nos protegermos dele. Essa joia pode ser trazida à luz a qualquer tempo e resplandecerá com todo o seu brilho, como se nada tivesse acontecido.
A boditchita, essa ternura pela vida, desperta quando não nos protegemos mais da vulnerabilidade de nossa condição, da fragilidade básica da existência. Ela desperta pela afinidade com o sofrimento dos outros. Treinamos as práticas de boditchita para ficarmos abertos de modo que possamos absorver a dor do mundo, deixar que ela toque nosso coração e transformá-la em compaixão.
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Confortável com a incerteza
Os que treinam com sinceridade para despertar a boditchita são chamados de bodisatvas, ou guerreiros – não guerreiros que matam, mas guerreiros da não agressão, que ouvem os gritos do mundo. Os guerreiros-bodisatvas entram em situações difíceis para aliviar o sofrimento. Eles se dispõem a atravessar o autoengano e a própria reatividade pessoal. Dedicam-se a desvelar a energia básica e não distorcida da boditchita.
Um guerreiro aceita que nunca podemos saber o que irá acontecer conosco em seguida. Podemos tentar controlar o incontrolável buscando segurança e previsibilidade, sempre na esperança de ficarmos confortáveis e seguros. Mas, na verdade, nunca podemos evitar a incerteza. Esse não saber é parte da aventura. E também é o que nos leva a ter medo.
Onde quer que estejamos, podemos treinar como guerreiros. Nossas ferramentas são a meditação sentada, as práticas de tonglen e das máximas, e o cultivo das quatro qualidades ilimitadas: bondade amorosa, compaixão, alegria e equanimidade. Com a ajuda dessas práticas, encontraremos a ternura da boditchita na tristeza e na gratidão, por trás da dureza da fúria e do tremor do medo. Tanto na solidão quanto na gentileza, podemos desvelar o ponto sensível da bondade fundamental. Mas o treinamento da boditchita não oferece a promessa de finais felizes. Em vez disso, esse “eu” que deseja encontrar segurança – que quer algo a que se agarrar – pode, finalmente, aprender a crescer.
Se nos encontrarmos em dúvida, sem saber se estamos à altura de ser guerreiros em treinamento, podemos contemplar esta pergunta: “Prefiro crescer e me relacionar diretamente com a vida ou escolho viver e morrer no medo?”
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A sabedoria de não fugir
A questão central do treinamento do guerreiro não é como evitamos a incerteza e o medo, mas como nos relacionamos com o desconforto. Como treinar para lidar com a dificuldade, com as nossas emoções, com os encontros imprevisíveis de um dia normal? Para os que estão ávidos por conhecer a verdade, as emoções dolorosas são como bandeiras que se erguem e dizem: “Você está empacado!” Vemos a decepção, a vergonha, a irritação, a inveja e o medo como sinais que nos mostram que estamos nos contraindo, estamos nos fechando. Esses sentimentos desconfortáveis são recados que nos dizem que devemos nos animar e encarar a situação de peito aberto, quando preferiríamos desmoronar e recuar.
Quando a bandeira sobe, temos uma oportunidade: podemos ficar com as nossas emoções dolorosas em vez de nos descontrolarmos. É ficando que aprendemos a delicadamente nos flagrar quando estamos prestes a deixar o ressentimento endurecer e se transformar em culpa, arrogância ou alienação. Também é assim que não caímos no hábito de maquiar as coisas e nos convencer a sentir alívio ou inspiração. É mais fácil falar do que fazer.
Em geral, somos arrastados pelo momentum do hábito. Não interrompemos nem um pouquinho nossos padrões. Com a prática, no entanto, aprendemos a ficar com um coração partido, com um medo sem nome, com o desejo de vingança. É ficando com a incerteza que aprendemos a relaxar em meio ao caos, aprendemos a estar tranquilos quando de repente perdemos o chão. Podemos nos colocar de volta no caminho espiritual incontáveis vezes, todos os dias, simplesmente exercitando nossa disposição para repousar na incerteza do momento presente – várias e várias vezes.
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Bondade amorosa: a prática essencial
Para um aspirante a bodisatva, a prática essencial é cultivar maitri, a bondade amorosa. Os ensinamentos de Shambhala falam de “colocar nossa mente do medo no berço da bondade amorosa”. Outra imagem para maitri é a mãe-pássaro, que protege os filhotes e cuida deles até que estejam fortes o suficiente para voar. As pessoas às vezes me perguntam: “Quem sou eu nessa imagem, a mãe ou os filhotes?” A resposta é que somos ambos, tanto a mãe amorosa quanto aqueles filhotinhos feiosos. A identificação com os filhotes é fácil – cegos, inexperientes e desesperados por atenção. Somos uma pungente mistura de algo que não é assim tão lindo, mas é muito amado. Essa atitude, seja conosco, seja com os outros, é a chave para aprendermos a amar. Permanecemos conosco e com os outros quando gritamos por comida e não temos penas, e também quando somos mais crescidos e mais atraentes, pelos padrões mundanos.
Ao cultivar a bondade amorosa, aprendemos primeiro a ser honestos, amorosos e compassivos com nós mesmos. Em vez de alimentarmos a autodepreciação, começamos a cultivar uma bondade que vê claramente. Às vezes, nos sentimos bons e fortes. Outras vezes, nos sentimos inadequados e fracos. Mas, como o amor materno, maitri é incondicional. Independentemente de como nos sentimos, podemos sempre desejar ser felizes. Podemos aprender a agir e pensar de modo a lançar as sementes de nosso futuro bem-estar. Aos poucos, ficamos mais conscientes em relação ao que causa felicidade e ao que causa aflição. Se não temos bondade amorosa por nós mesmos, é difícil – para não dizer impossível – senti-la genuinamente pelos outros.
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Bondade amorosa e meditação
Quando as pessoas começam a meditar ou a trabalhar com qualquer tipo de disciplina espiritual, costumam pensar que, de algum modo, vão melhorar, o que é uma espécie de agressão sutil contra quem elas realmente são. É como se dissessem: “Se eu praticar corrida, serei uma pessoa muito melhor”, “Se eu conseguisse uma casa maior, seria uma pessoa melhor”, “Se eu conseguisse meditar e me acalmar, seria uma pessoa melhor”. Ou, caso ficassem encontrando falhas nos outros, poderiam dizer: “Se não fosse pelo meu marido, eu teria um casamento perfeito”, “Se eu e meu chefe não nos déssemos tão mal, meu trabalho seria ótimo”, “Se não fosse pela minha mente, minha meditação seria excelente”.
Mas ter bondade amorosa – maitri – por nós mesmos não significa se livrar de nada. Maitri significa que ainda podemos cometer loucuras, ainda podemos sentir raiva. Ainda podemos ser tímidos, ciumentos ou sentir que não temos valor. A prática da meditação nada tem a ver com jogar a si mesmo fora para se tornar algo melhor. Tem a ver com fazer amizade com quem já somos. A base da prática é você, sou eu, ou quem quer que sejamos neste exato momento, simplesmente como somos. Essa é a base, é isso que estudamos, é isso que começamos a conhecer com tremenda curiosidade e interesse.
A curiosidade envolve ser gentil, preciso e aberto – na verdade, ser capaz de soltar e se abrir. Gentileza é ter um bom coração em relação a si mesmo. Precisão é ser capaz de ver com clareza, sem ter medo de ver o que realmente está ali. Abertura é ser capaz de soltar e se abrir. Quando você chega a esse tipo de honestidade, gentileza e bom coração, combinados com a clareza sobre si mesmo, não há nada que o impeça de sentir bondade amorosa pelos outros também.