Introdução
Golias
“Por acaso sou um cão, para que você
venha contra mim com pedaços de pau?”
1.
No coração da antiga Palestina fica a região conhecida como Sefelá, uma série de cadeias de montanhas e vales ligando as montanhas da Judeia a leste com a ampla extensão da planície mediterrânea. Área de beleza estonteante, abriga vinhedos, trigais e florestas de sicômoros e terebintos. Também é de grande importância estratégica.
Ao longo dos séculos, numerosas batalhas foram travadas pelo controle da região, porque os vales que se erguem da planície mediterrânea oferecem aos moradores do litoral um caminho para as cidades de Hebron, Belém e Jerusalém, no planalto da Judeia. O vale mais importante é o Aijalon, ao norte. Mas o mais célebre é o de Elá, onde Saladino enfrentou os Cavaleiros Cruzados no século XII. O vale desempenhou um papel central nas guerras dos macabeus contra a Síria mais de mil anos antes e, mais notoriamente, durante a época do Antigo Testamento, foi ali que o nascente Reino de Israel enfrentou os exércitos dos filisteus.
Os filisteus eram de Creta. Eles haviam se mudado para a Palestina e se instalado ao longo da costa. Os israelitas estavam reunidos nas montanhas, sob a liderança do rei Saul. Na segunda metade do século XI a.C., os filisteus começaram a se deslocar para leste, seguindo rio acima ao longo do vale de Elá. Seu objetivo era capturar a cadeia montanhosa perto de Belém e dividir o reino de Saul em dois. Os filisteus eram guerreiros experientes e perigosos, inimigos jurados dos israelitas. Apreensivo, Saul reuniu seus homens e desceu as montanhas às pressas para enfrentá-los.
Os filisteus levantaram acampamento ao longo da cadeia ao sul de Elá. Os israelitas armaram suas tendas do outro lado, ao longo da cadeia ao norte, o que deixou os dois exércitos olhando um para o outro através da ravina. Nenhum deles ousava se mover. Atacar significava descer a montanha e depois fazer uma subida suicida pela cadeia do inimigo do outro lado. Finalmente, os filisteus se cansaram. Mandaram seu maior guerreiro descer para resolver o impasse cara a cara.
Tratava-se de um gigante, com mais de 2 metros de altura, usando um capacete de bronze e uma armadura de corpo inteiro. Levava uma lança de arremesso, uma lança de curto alcance e uma espada. Um auxiliar o precedia, carregando um enorme escudo. O gigante encarou os israelitas e gritou:
– Escolham um homem para lutar comigo. Se ele puder lutar e me vencer, nós seremos seus escravos; porém, se eu o vencer e o puser fora de combate, vocês serão nossos escravos e nos servirão.
No lado israelita, ninguém se moveu. Quem conseguiria vencer um oponente tão assustador? Então um jovem pastor que viera de Belém trazendo comida para seus irmãos deu um passo à frente e se apresentou como voluntário. Saul objetou:
– Você não tem condições de lutar contra esse filisteu; você é apenas um rapaz, e ele é um guerreiro desde a mocidade.
Mas o pastor foi inflexível. Disse que havia enfrentado oponentes mais violentos do que aquele.
– Quando um leão ou um urso aparece e leva uma ovelha do rebanho – contou a Saul –, eu vou atrás dele, dou-lhe golpes e livro a ovelha de sua boca.
Saul não tinha outras opções. Consentiu, e o jovem pastor desceu correndo o morro ao encontro do gigante, de pé no vale.
– Venha aqui e darei sua carne às aves do céu e aos animais do campo! – bradou o gigante ao ver o oponente se aproximando.
Assim começou um dos embates mais famosos da história. O nome do gigante era Golias. O nome do jovem pastor era Davi.
2.
Davi e Golias é um livro sobre o que acontece quando gente comum enfrenta gigantes. Por “gigantes” quero dizer oponentes poderosos de todos os tipos – de exércitos e grandes guerreiros a deficiência, infortúnio e opressão. Cada capítulo narra a história de uma pessoa diferente – famosa ou desconhecida, comum ou brilhante – que enfrentou um desafio descomunal e foi forçada a reagir. Devo me pautar pelas regras do jogo ou seguir meus próprios instintos? Devo perseverar ou desistir? Devo contra-atacar ou perdoar?
Por meio dessas histórias, quero explorar duas ideias. A primeira é que grande parte do que consideramos valioso em nosso mundo surge desses tipos de conflitos desequilibrados, porque o fato de enfrentar condições imensamente desfavoráveis produz grandeza e beleza. E a segunda é que sistematicamente entendemos errado esses tipos de conflito. Nós os interpretamos incorretamente. Gigantes não são o que julgamos serem. As mesmas qualidades que parecem fortalecê-los são, muitas vezes, fontes de grande fraqueza. E o fato de ser um underdog – um azarão, ou alguém em desvantagem, que todos esperam que venha a ser derrotado facilmente – pode mudar as pessoas de formas que costumamos não perceber: pode abrir portas, criar oportunidades, instruir, esclarecer e tornar possível o que normalmente seria impensável. Precisamos de um guia melhor para enfrentar gigantes, e não há melhor ponto para começar essa jornada do que o confronto épico entre Davi e Golias 3 mil anos atrás no vale de Elá.
Quando Golias desafiou os israelitas, estava pedindo o que se conhecia como “combate um a um”. Essa era uma prática comum no mundo antigo. Os dois lados de um conflito tentavam evitar o grande derramamento de sangue da batalha aberta escolhendo, cada um, um guerreiro para representá-lo num duelo. Por exemplo, o historiador romano do século I a.C. Quinto Cláudio Quadrigário narrou uma batalha épica em que um guerreiro gaulês pôs-se a zombar de seus oponentes romanos. “Aquilo logo despertou grande indignação de um tal Tito Mânlio, um jovem de boa família”, escreveu Quadrigário. Tito desafiou o gaulês para um duelo:
Deu um passo à frente, pois não estava disposto a admitir que a bravura romana fosse vergonhosamente manchada por um gaulês. Armado com um escudo de legionário e uma espada espanhola, confrontou-o. A luta se travou numa ponte [sobre o rio Aniene] na presença dos dois exércitos, em meio a grande apreensão. Assim eles se confrontaram: o gaulês, de acordo com seu método de combate, com o escudo à frente aguardando um ataque; Mânlio, contando com a coragem mais do que com a habilidade, atacou escudo contra escudo e desequilibrou o gaulês. Enquanto este tentava voltar à mesma posição, Mânlio repetiu o primeiro ataque e forçou o homem a deslocar-se. Dessa maneira esgueirou-se sob a espada do gaulês e golpeou-o no peito com sua lâmina espanhola. […] Depois de matá-lo, Mânlio cortou fora a cabeça do gaulês, arrancou sua língua e enrolou-a, ensanguentada, em seu próprio pescoço.
Era aquilo que Golias estava esperando – que um guerreiro como ele se apresentasse para um combate corpo a corpo. Jamais lhe ocorreu que a batalha seria travada em condições diferentes, e ele se preparou conforme sua expectativa. Para proteger o corpo dos golpes, vestia uma túnica elaborada feita de centenas de escamas de bronze sobrepostas, como as de um peixe. A túnica cobria seus braços e descia até os joelhos, devendo pesar mais de 50 quilos. Caneleiras protegiam suas pernas, unidas a placas de bronze cobrindo seus pés. Usava um pesado capacete de metal. Possuía três armas distintas, todas otimizadas para o combate corpo a corpo. Segurava uma lança de arremesso feita inteiramente de bronze, capaz de penetrar um escudo ou mesmo uma armadura. Tinha uma espada ao quadril. E, como sua opção principal, portava um tipo especial de lança de curto alcance com uma haste de metal tão “grossa quanto uma lançadeira de tecelão”. Uma corda estava presa à lança, e um conjunto elaborado de pesos permitia que fosse lançada com extraordinária força e precisão. Como escreveu o historiador Moshe Garsiel: “Para os israelitas, aquela lança extraordinária, com sua haste pesada e uma lâmina de ferro longa e rígida, quando atirada pelo braço forte de Golias, parecia capaz de dilacerar qualquer escudo de bronze junto com a armadura de bronze.” Dá para entender por que nenhum israelita se ofereceu para lutar com Golias?
Então surge Davi. Saul tenta lhe dar a própria espada e a armadura para que ao menos ele tenha uma chance na luta. Davi recusa:
– Não consigo andar com isto – diz ele –, pois não estou acostumado.
Em vez disso, abaixa-se, apanha cinco seixos lisos e coloca-os em seu alforje. Depois desce ao vale, carregando seu cajado de pastor. Golias olha o jovem se aproximando e se sente insultado. Estava esperando lutar com um guerreiro experiente. Em vez disso, vê um pastor – um rapaz cuja profissão é das mais humildes – que parece querer usar seu cajado como um porrete contra a espada de Golias.
– Por acaso sou um cão, para que você venha contra mim com pedaços de pau? – questiona Golias, apontando para o cajado.
O que acontece então é algo legendário. Davi põe uma de suas pedras na bolsa de couro de sua funda, lançando-a na testa exposta de Golias, que tomba, perplexo. Davi corre em sua direção, apanha a espada do gigante e decepa-lhe a cabeça. “Quando os filisteus viram que seu guerreiro estava morto” – reza o relato bíblico –, “recuaram e fugiram.”
A batalha é vencida milagrosamente por um azarão que, segundo todas as expectativas, não deveria ter vencido. É assim que temos contado a história uns para os outros nos vários séculos desde então. Foi assim que a expressão “Davi e Golias” se incorporou à nossa língua, como uma metáfora para a vitória improvável. E o problema dessa versão dos acontecimentos é que quase tudo nela está errado.