APRESENTAÇÃO
Quando eu tinha 8 anos, desmontei uma caixa de som e tirei o alto-falante. Não era para fazer qualquer experiência sonora ou para usar o ímã – essa parte eu joguei fora. O que eu queria era a estrutura de madeira, onde instalei quatro rodinhas de plástico e dentro coloquei um estilingue, canivete, agulha, fio de nylon e anzol de pesca. Saí puxando orgulhoso o carrinho improvisado pelo quintal de casa. Era o meu primeiro kit de sobrevivência na selva.
Nessa época, no final da década de 1980, eu morava em Piedade, no interior do estado de São Paulo. Uma cidade pequena, agrícola, com vários rios e cachoeiras, onde todo mundo se conhecia. Minha casa era de madeira, ficava no meio da mata, a 7 quilômetros do centro da cidade. Não era exatamente selva, mas o meu kit não faria feio se um extraterrestre me abandonasse perdido por aquelas bandas.
Mas o que eu gostava mesmo era de fazer cabanas. Não bastava sobreviver, era preciso ter habilidade para reconstruir a civilização a partir dos materiais da floresta.
No começo, eu não podia usar facões. Para crianças menores, a única ferramenta permitida era um arco de serra amarelo, praticamente inofensivo, mas extremamente útil para cortar bambus de uma touceira que meu pai cultivava por ali. Dava para levantar cômodos inteiros só com arames e varas, usando cobertura de galhos verdes e algumas árvores como apoio.
Uma das cabanas mais memoráveis construídas no fundo de casa foi uma casinha subterrânea. Com a ajuda de alguns amigos, fiz um buraco de 1,5 metro de profundidade e de diâmetro. Ao lado, cavei um menor e interligamos os dois por um túnel. Em seguida, colocamos alguns pedaços de madeira sobre o buraco grande e jogamos terra por cima. Um cômodo secreto!
Nessa época, não tínhamos sequer telefone, que dirá internet, TV a cabo, compras on-line ou essas lojas de equipamentos esportivos que têm qualquer coisa que a gente possa imaginar. Tudo tinha que ser improvisado com o que havia por ali. As almofadas eram sacolas cheias de folhas. As cordas, de cipó. Para cozinhar na fogueira, espetos de bambu e latas de óleo como panelas.
Conforme eu crescia, começava a ficar muito ansioso para explorar florestas mais distantes e viver aventuras que colocassem à prova as habilidades adquiridas no quintal.
Para minha sorte, meus pais gostavam de me ver aprendendo a lidar com novas ferramentas e treinando para o que um dia seria a vida para valer – na selva ou não. Por isso, foi tranquilo quando, com 15 anos, eu pedi para acampar com alguns amigos a 50 quilômetros de casa em uma tal Cachoeira do Chá, que ficava na cidade vizinha de Tapiraí, já nas bordas da Serra do Mar.
Saímos em cinco, debaixo de muita chuva. Uma hora de ônibus, meia hora de trilha e muita dificuldade para encontrar algum terreno plano para armar as barracas, que já começavam a ser vendidas nos grandes supermercados.
Ficamos quatro dias lá, sem um minuto sequer de sol. As barracas encharcaram, as roupas ficaram úmidas e era quase impossível acender uma fogueira. Quando conseguimos, a fumaça era tanta que não compensava. Comemos macarrão duro com salsicha crua e, o pior, tomamos água do rio sem ferver – o que garantiu uma infecção intestinal em cada um dos cinco aventureiros quando voltamos para a civilização.
Depois de todo o perrengue, só havia uma certeza: queríamos outra vez! Tínhamos voltado sujos, molhados e doentes, mas cheio de histórias para contar. Os momentos difíceis haviam fortalecido a amizade e nos desafiado a aprender mais para não cometer os mesmos erros no futuro.
Dali para a frente, essas aventuras eram o que me dava energia para viver. Fiz um curso de guia de ecoturismo, descobri como ler mapas e aprendi a construir canoas com câmara de pneu de caminhão, fazer uma série de nós, descer penhascos de rapel, costurar mochilas, fazer lanternas a gás para entrar em cavernas e, o mais importante de tudo, a usar uma câmera fotográfica. Eu precisava registrar aqueles bons momentos para poder contar as histórias a quem não estava ali.
Na época, não existiam fotografias digitais. Meu pai tinha uma velha Pentax K1000, uma câmera de filme, totalmente manual, que nem mesmo usava pilhas. Fiquei dias estudando como fazer o foco, regular o tempo de entrada de luz, ajustar a abertura da lente, escolher o filme certo e o melhor enquadramento.
Só que eu queria aparecer nas fotos também. Então ensinei um dos meus melhores amigos a usar a câmera. Ele não só gostou muito, como em poucos meses ficou muito melhor que eu. Comprou uma câmera mais moderna, virou fotógrafo profissional e hoje dá aulas de fotografia em uma faculdade de São Paulo.
Quando a internet apareceu, minhas primeiras pesquisas eram todas sobre aventuras na selva. Aprendi uma série de nós, primeiros socorros e explorei dezenas de destinos incríveis, como a Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, que mais tarde seria não apenas o primeiro lugar em que eu acampei com a Mari, mas também onde fiz o batismo de um curso de mergulho.
Ainda sem celular, juntei todos esses conhecimentos em um documento no computador e imprimi em um livrinho improvisado. Para proteger da água, envernizei todas as folhas e o levava para cima e para baixo. Era o meu novo kit de sobrevivência, desta vez baseado no conhecimento de dezenas de pessoas que construíam sites para compartilhar suas experiências na mata.
No momento em que precisei escolher uma faculdade, procurei uma profissão em que eu pudesse viajar, conhecer lugares e pessoas novas, fotografar e contar histórias. Não havia muita dúvida: o que oferecia tudo isso era o Jornalismo.
Em 2002, consegui passar no vestibular da Universidade de São Paulo e vim para a metrópole fazer o curso superior. Aqui conheci a Mari, que também tinha vindo de Piedade e que tinha experiências muito parecidas com as minhas – um pouco mais urbanas, pois ela havia crescido na cidade, mas o espírito “mão na massa” era o mesmo.
A vida na capital foi um choque de culturas. No interior, quando precisávamos construir ou consertar alguma coisa, na maioria das vezes tínhamos que nos virar sozinhos. Se um pneu furasse em uma estrada de terra só havia duas opções: esperar alguém passar – o que poderia levar horas – ou abrir o porta-malas e dar um jeito ali mesmo.
Em São Paulo era diferente. Ninguém instalava cortinas, calibrava pneus nem trocava tomadas por conta própria. Sempre era preciso chamar um profissional para fazer as menores tarefas. Não demorou para nossos amigos perceberem que poderíamos ajudá-los nisso, e logo viramos referência: se alguma coisa der errado, corre para chamar a Mari ou o Iberê.
Nunca nos aborrecemos com isso, muito pelo contrário. Conhecemos pessoas novas, passamos domingos incríveis pintando paredes e batendo papo. Quando o YouTube surgiu, descobrimos que dava para ensinar na internet todas essas pequenas sabedorias que havíamos trazido do interior, aproveitando ainda nossas habilidades de fotografia e de contar boas histórias.
Assim nascia o Manual do Mundo, um canal de vídeos que ensinava “como sobreviver em um mundo cruel” – frase que a gente usou no começo, mas teve que ser abandonada porque repetia a palavra “mundo”, que já era parte do nome do canal.
Além das dicas mais “domésticas”, os primeiros vídeos traziam uma série de técnicas de sobrevivência: como acender fogueira usando lupa, dar o nó oito, fazer uma vela com casca de laranja, improvisar uma bússola ou afiar facas. A aventura foi um tema que existiu desde o começo.
Por conta de tudo isso, ficamos maravilhados ao conhecer este livro de Dave Canterbury, e logo quisemos fazer uma parceria, pois ele é um guia avançado de tudo o que gostaríamos de ter aprendido trinta anos atrás. Especialista em sobrevivência, Dave é reconhecido mundialmente como um dos maiores praticantes de bushcraft de todos os tempos.
Bushcraft é a arte de viver de forma integrada com a natureza, aproveitando os recursos que ela oferece de forma consciente e sustentável. E é a isso que nos propomos neste livro: apresentar atividades e técnicas em uma convivência responsável com o mundo natural.
Escrito com base nas experiências e pesquisas de Dave Canterbury, este guia tem diversas instruções testadas e comprovadas, sendo perfeito tanto para quem já gosta de viver ao ar livre quanto para quem está dando os primeiros passos.
Nós dois tivemos o cuidado de adaptar todo o conteúdo para torná-lo acessível, de acordo com a realidade dos leitores brasileiros, contando com o auxílio de profissionais das áreas para checar e validar todas as informações. Inclusive, nossa edição tem um capítulo inteiro voltado para as plantas brasileiras, para que você também possa usufruir da flora nativa caso seja necessário. Você vai ficar sabendo o que não pode deixar de levar na mochila e vai aprender a se orientar para não se perder na mata, a fazer uma fogueira, a montar um abrigo da melhor forma, criar um kit de primeiros socorros, entre inúmeras outras dicas fundamentais. Sabemos que muitas palavras novas vão surgir no seu vocabulário. Caso você se sinta perdido entre elas, não deixe de consultar o glossário no final.
Esperamos que, com este livro, você se sinta encorajado a viver novas aventuras, convivendo em harmonia com animais, plantas e amigos, voltando para casa cheio de fotografias incríveis e boas histórias para contar!
Iberê Thenório e Mari Fulfaro
ALERTA
É necessário que você tenha o acompanhamento de um adulto ou seja maior de idade para fazer todas as atividades apresentadas neste livro, pois algumas envolvem trabalhar com facas, machados ou fogo e é preciso cuidado para se guiar no meio das árvores e para identificar corretamente plantas e frutas.
Leia todo o livro antes de se embrenhar na natureza, assim você terá uma noção dos principais assuntos antes de se aventurar. Com os ensinamentos deste guia, você estará preparado para diversas situações, mas acima de tudo é fundamental ter bom senso. Se estiver chovendo demais, é melhor simplesmente não entrar na floresta. Se você souber que o lugar tem qualquer perigo, é melhor escolher outro. A ideia não é desafiar a natureza, mas se conectar com ela.
INTRODUÇÃO
“Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para romper com essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver.”
– Amyr Klink, Ma R se M f IM , 2000
“Bushcraft” é o termo usado para se referir às habilidades de vida ao ar livre e também é a prática de sobreviver e se dar bem na natureza selvagem. Para ser bom no bushcraft, você precisa dominar um conjunto específico de técnicas para, por exemplo, fazer fogueiras, se orientar, obter alimento, construir abrigos e usar ferramentas tanto modernas quanto primitivas.
Os bons campistas carregam poucos itens e ferramentas essenciais para a vida ao ar livre. Em vez de equipamentos adicionais, levam suas habilidades para criar os objetos necessários com aquilo que encontram na própria natureza. Para se sair bem sem os confortos da cidade grande, é preciso ter determinação. Como qualquer hobby, o bushcraft requer dedicação e conhecimentos que, em certas circunstâncias, podem até salvar sua vida. Num passado não muito distante, alguns dos homens mais influentes da história viam a vida na natureza como algo sério, não só como passatempo. Eles entravam em contato com o mundo selvagem, conservavam recursos e trabalhavam para preservar as matas. Nos Estados Unidos, Theodore Roosevelt talvez tenha sido o presidente mais ligado à vida na natureza e a sua exploração e preservação. Trabalhando com John Muir, fundador do Sierra Club – uma das associações ecologistas mais importantes dos Estados Unidos –, Roosevelt aprimorou a proteção das maravilhas naturais do país, preservando mais de 86 milhões de campos de futebol de habitat selvagem ao longo de todo o território.
Na década de 1930, os americanos estavam redescobrindo como era passar tempo na natureza e encontrar um alívio do dia a dia na cidade. Autores como Horace Kephart e E. H. Kreps descreveram essa nova febre seguindo os passos de seus antecessores, como George Washington Sears “Nessmuk” – grande inovador na arte de trilhar florestas apenas por prazer, e não para sobreviver. O explorador australiano Les Hiddins, o instrutor canadense de bushcraft e sobrevivência Mors Kochanski e o famoso mateiro e instrutor inglês Ray Mears apresentaram o bushcraft ao público da época.
Por que alguém, nesta era de conveniências modernas e tecnologias incríveis, deixaria para trás o conforto em busca de aventuras potencialmente arriscadas? Existem muitos motivos – e benefícios também. Praticar bushcraft é uma excelente maneira de desfrutar a vida ao ar livre. Se você se sente preso no ambiente urbano, uma boa caminhada é uma forma de se reconectar com a natureza, esquecer os aparelhos eletrônicos e fugir das pressões constantes da sociedade. Além disso tudo, as habilidades aprimoradas na mata podem salvar vidas em desastres e situações de sobrevivência.
Quem melhor descreveu esse benefício foi Nessmuk: “Não entramos nas florestas verdejantes e águas cristalinas para dificultar a vida, mas para facilitá-la.” Essa é uma declaração poderosa, especialmente hoje em dia, com tantas comodidades na cidade. Muitos acreditam que, para facilitar, precisamos levar muitos equipamentos e dispositivos, mas a verdade é que você precisa apenas de conhecimento do mundo natural. E este livro transmite esse conhecimento de forma simples e sucinta. Para complementar os ensinamentos destas páginas, é preciso passar um tempo na natureza, ter as próprias experiências no mato. Só assim você obterá seu “Doutorado em Conhecimento Florestal”.
Este livro é o companheiro perfeito para quem gosta de viver ao ar livre, mas também para quem está dando os primeiros passos no bushcraft. Foi escrito com base em experiências pessoais, pesquisas e muitos dias e noites nos mais diferentes ambientes e ecossistemas. Você descobrirá tudo que é necessário para fazer suas expedições, desde arrumar a mochila até montar acampamento e escolher ferramentas. Este manual também contém instruções claras para você aprender a se orientar, fazer fogueiras e muito mais. Todas as instruções, dicas e todos os truques foram testados e comprovados. Com eles, você terá as habilidades necessárias para viver e se dar bem na natureza.
Ao aprender sobre os recursos naturais e os objetos que fazem a diferença entre conforto e sofrimento, você poderá viver uma experiência incrível e desfrutar a natureza em estado bruto. Para isso, basta ler este livro, que escrevi inspirado nos meus heróis e mentores do passado, como forma de apresentar uma versão contemporânea do bushcraft, com base na minha experiência.
Dave Canterbury
Parte I
Equipamentos
CAPÍTULO 1
A mochila e outros itens importantes
“O homem que segue a pé, preparado para acampar em qualquer lugar e em qualquer clima, é o sujeito mais independente do mundo.”
– Horace Kephart, 1904
O conceito central do bushcraft é a autossuficiência – você deve carregar tudo de que precisa nas costas e preso a você, tudo aquilo que é necessário para se manter ao longo do tempo em que pretende ficar no mato, incluindo itens de emergência.
OS CINCO Cs
Você pode classificar os materiais essenciais do bushcraft de acordo com os Cinco Cs da Sobrevivência. Dentro dessas cinco categorias básicas estão todas as ferramentas e todo o conhecimento necessários para lidar com emergências e se tornar independente em ambientes selvagens.
É difícil criar esses itens manualmente com elementos da própria natureza. Junto com roupas e calçados adequados ao clima e com o conhecimento do mundo natural, eles facilitam a organização de uma mochila mais leve e nos ajudam a aproveitar o tempo que ficaremos no mato.
Os Cinco Cs são:
- Ferramentas de Corte para fabricar itens necessários e cortar alimentos;
- Cobertura para criar um microclima de proteção contra intempéries;
- Dispositivos de Combustão para acender fogueiras a fim de preparar comida e medicamentos e se aquecer;
- Cantil ou outro recipiente para transportar água por longas distâncias ou acondicionar comida;
- Cordas, cordeletes ou fitas para amarrar e prender.
Somados ao conhecimento do terreno, os Cinco Cs serão a base do que você vai colocar na mochila. Você também pode acrescentar material de primeiros socorros (veja página 167), de orientação e reparos para facilitar a trilha e o acampamento. Mas será que isso significa que você precisa de uma grande variedade de itens, que você vai sofrer para carregá-los ou que eles serão tão pesados que você vai se arrepender após caminhar algumas centenas de metros no mato? Não! O importante aqui é escolher os equipamentos certos e garantir que eles sejam de qualidade. Além disso, você precisa ter certeza de que eles vão funcionar bem nas várias tarefas em que forem utilizados.