Apresentação
De como a poesia me salvou
Dizem que para fazer poesia é preciso descer ao inferno ao menos uma vez. Ouvi essa frase inicialmente num vídeo sobre a experiência de uma professora de literatura, Cristina Domenech, que trabalhara a poesia dentro de uma prisão na Argentina (a palestra se chama “Poetry that frees the soul”, poesia que liberta a alma, e pode ser encontrada no YouTube).
Cristina falava sobre como a poesia se tornou uma chave para que o inferno daquele lugar se tornasse suportável. E assim também se deu na minha vida. Desci ao inferno incontáveis vezes e voltei para escrever poesia. As palavras se transformam em caminhos seguros para elaborar o que me faz sofrer em níveis sufocantes, e mesmo que haja muitos infernos por este mundo, que podem ser considerados piores ou melhores, a experiência do sofrimento é algo extremamente pessoal e intransferível.
Posso existir através do que escrevo e me encontro na escrita sendo capaz de ser maior com o que eu escrevo. A poesia tem o poder de não fazer nenhuma restrição de palavras. Na vida podemos ter muitas palavras proibidas, como alegria, felicidade, coragem, esperança. Palavras que não pronunciamos por causa da realidade avassaladora que asfixia e oprime o coração de quem busca a liberdade. E a poesia nos traz a chave da liberdade. Tem um lugar dentro de nós onde a liberdade existe e se torna acessível. Onde há segurança, onde a vida se manifesta.
Mas não somente segurança. Se, mais do que sobreviver, pretendemos evoluir neste mundo, precisamos da beleza. Precisamos saber que ela está presente na nossa vida, ao alcance do olhar, da escuta, do tato, do paladar. Ouvir, ver, sentir a beleza na vida nos aproxima do mundo que consideramos seguro e habitável. A arte nos oferece isso em todas as suas dimensões. A música, por exemplo, nos atinge e nos transforma, intervindo em territórios dentro de nós sobre os quais não temos nenhuma forma de controle. A emoção que brota ao ouvirmos uma melodia mostra cotidianamente que temos muito a aprender sobre o nosso mundo de dentro.
Porque dentro de nós há um mundo.
E esse mundo é habitado por palavras e pensamentos.
Quando em correnteza, palavras e pensamentos nos atravessam como um rio profundo que flui sob a nossa cama, no meio da cozinha, perto do portão de casa, na rua onde caminhamos todos os dias sem prestar atenção no número de passos que damos até chegar ao nosso destino. Provavelmente nunca contamos quantas passadas existem entre a porta da nossa casa e o quarto onde nos recolhemos para o descanso.
Da mesma forma, pouco sabemos das distâncias que temos de percorrer dentro de nós para chegar aonde mora a nossa essência, aonde dorme o nosso sonho de sermos quem nascemos para ser.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han tem uma frase que me mobiliza e me transporta ao propósito do meu trabalho e da minha escrita; ao que, de certa forma, nasci para ser:
“É a tarefa do escritor metaforizar o mundo, ou seja, poetizar. Seu ponto de vista poético descobre as ligações ocultas entre as coisas.”
Se assim é, posso dizer que tenho cumprido minha tarefa a cada frase que busco para resumir ou traduzir este cotidiano em que habito.
Então, desde muito jovem, faço poesia para sobreviver. A poesia trouxe alento aos meus dias e noites, nem sempre feitos de paz ou de segurança.
No princípio do aprendizado das palavras eu tinha o encantamento de construir a chance de ser compreendida e de compreender o mundo. Os primeiros encontros com as letras se deram no colo da minha mãe, quando eu era bem pequenina: ela escrevia o alfabeto num pedaço de papel de pão e com ele desenhava meu nome, o dela, o do meu pai, o da minha avó. Eu apontava cada letra e ela ia me falando o som. Se fecho meus olhos, a saudade me faz lembrar da voz dela dizendo A-N-A…
Que abençoado este momento em que decido contar a você de quando aprendi a me encantar com as palavras. Porque esse apaixonar-se construiu uma ponte que me levou aos caminhos dentro de mim.
Recentemente, durante a mudança de casa, encontrei um diário da minha mãe. Um diário que ela escrevia para conversar com Deus, com as preces que fazia para a própria vida. Um dia escreveu pedindo a graça de fazer “madureza”. Para quem não imagina o que seja, madureza era um curso supletivo que abreviava o tempo de estudo para adultos que não conseguiram cumprir o programa de ensino da escola. E ela escreveu que queria fazer isso para ser feliz. Minha mãe considerava o estudo um caminho para ser feliz.
Foi com ela que aprendi essa alegria.
Do tempo de compreensão das letras e das palavras surgiu uma linda cura para mim mesma, algo que eu só perceberia em sua inteireza muitos anos depois.
Foi assim:
Quando eu me descobri habilidosa em lidar com a dor e o sofrimento humano diante do tempo de finitude, da morte e do luto, acabei afundando numa crise existencial significativa: como eu, sendo médica, formada com base na ciência da melhor qualidade para tratar e cuidar das pessoas para que ficassem curadas e saudáveis; como eu, cujo papel era manter a morte o mais distante possível; como alguém assim podia sentir tamanha paz em lidar com os tempos nos quais acontece exatamente o oposto disso? Como eu, alguém que aprendeu a ser leve, cheia de alegria e energia, bem-humorada e até engraçada, conseguia se apresentar tão bem diante de pessoas que estavam vivenciando tanta dor e tanta tristeza?
Abriu-se então mais um dos vários motivos que me levaram a buscar terapia. Muita inquietude, angústia, insônia, muita dúvida. Medo, insegurança, muitas lágrimas, silêncios, peso nos ombros. A resposta não chegava, mas a pergunta se renovava a cada dia. Eco imenso dentro de mim: por que eu faço isso? Por que sou assim?
Eu entrava sempre em um site onde o Rubem Alves escrevia. Lá ele me apresentou a Adélia Prado, dizendo que ela sabia escrever coisas que “ele não sabia que sabia”. Precisei de apenas minutos para descobrir e comprar o primeiro livro de Adélia, Bagagem, publicado em 1976. Nesse livro encontrei uma poesia de dois versos chamada “Toada”. Esta aqui:
“Cantiga triste, pode com ela
é quem não perdeu a alegria.”
Em 1976 eu estava na segunda série, hoje terceiro ano do ensino fundamental, apenas começando a aprender a construir frases. E Adélia Prado já tinha escrito a frase que me curaria da dor de não compreender o motivo pelo qual acabei desenvolvendo uma grande habilidade para cuidar do sofrimento humano. Só posso lidar com a cantiga triste do tempo da finitude porque não perdi a alegria.
Tomada por essa compreensão, tive alta da terapia com um sorriso banhado em lágrimas que lavaram meus olhos e me permitiram ver o que eu não sabia que já enxergava. Às vezes a cura pode nascer muito tempo antes de chegarmos ao adoecimento. Eu li esses versos em 2005, quase trinta anos depois de Adélia tê-los escrito. Foi quando eu descobri que poesia é vida.
E estes poemas que entrego aos meus leitores, sejam leitores recém-chegados, sejam aqueles que me acompanham desde meu primeiro livro de não ficção, A morte é um dia que vale a pena viver, são um pouco da vida que vivi até este momento. Afinal,
Sem poesia, a vida seria a morte.
Esse é um dos versos mais bonitos que já escrevi.
Sem poesia, minha vida seria a morte da vocação que me habita.
Este livro se pretende mais do que um livro de poemas. Se para mim poesia é sobrevivência e vida, quero convidar meus leitores a tentarem o caminho da poesia quando estiverem diante de grandes desafios – ou simplesmente quando quiserem ver mais beleza no cotidiano.
Esse convite se manifesta claro e inequívoco ao final de cada uma das partes que compõem esta obra. Deixei lá algumas páginas em branco com uma instrução e uma provocação. A instrução é que leiam os poemas assinalando palavras e versos que ecoem em seu coração. Mesmo que sejam palavras proibidas ou inexistentes na vida de vocês, escrevam essas palavras nas páginas em branco. Um poema é filho de três mães – da palavra escolhida, da palavra necessária e da palavra inocente. Então é chegado o momento da provocação: proponho que escrevam um poema (ou vários!) usando as palavras selecionadas. Sem pudores, sem medo do erro ou da inadequação. Na poesia não há certo ou errado: há o que somos, derramado em pensamentos e palavras, com a liberdade da nossa inocência.
Aos que se sentirem confortáveis para compartilhar seus escritos, peço que o façam no perfil no Instagram @anaclauquintanaarantes com a hashtag #hojesoupoeta.
Espero que todos se descubram os poetas que intimamente, secretamente, já somos.
Espera
Terra fértil,
semente boa,
sol ameno,
chuva breve.
Espera.
Primeiro socorro
Meu primeiro livro foi lançado em 2012, no dia do segundo aniversário da morte do meu pai, 12 de maio. Foi um livro de poesia. Era uma tarde bonita, dentro e fora do meu coração. Cheguei na livraria cedo, havia o meu lugar de dar autógrafos, havia um coquetel bonito, havia amigos que decidiram prestigiar meu dia de maior alegria – ver meu livro dedilhado pelas mãos de tantas pessoas queridas. Depois, a gerente da livraria quis me conhecer – disse que as vendas tinham sido um grande sucesso para uma escritora novata que lançava poesia: 102 exemplares.
Eu tinha esperado muito por aquele dia. Lembro que fiquei numa alegria imensa. Daquela que potencializa a gente para lidar com qualquer cantiga triste.
Segui a vida banhada nessa realização. Naquela época, eu trabalhava no Hospice – a unidade de cuidados paliativos exclusivos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, onde conheci uma aluna de medicina, a Maurilene. Ela estava na formação em Belém do Pará e, ao final do seu estágio, presenteei-a com meu livro de poesia. Antes de fazer medicina, ela havia completado o curso de artes cênicas – o que me fez pensar que poderia compreender tudo o que eu sentia sobre a arte.
O tempo passou e um dia recebi uma mensagem dela pedindo autorização para usar meu livro na sua pesquisa do trabalho de conclusão do curso de medicina. Disse que me contaria os detalhes assim que terminasse.
A ideia inicial de Maurilene para seu trabalho era avaliar o impacto da música no alívio da dor, na qualidade de vida, na escala de depressão e no índice de esperança de pacientes com diagnóstico de câncer avançado e recebendo cuidados paliativos. Ao ler meu livro, pensou em acrescentar a poesia à sua pesquisa. A música continuava central para o trabalho, mas Maurilene teve a ideia de gravar em áudio os meus poemas e utilizá-los em um grupo placebo, ou seja, de pacientes que não seriam submetidos à música.
Acabou que o grupo placebo não foi tão placebo assim.
Logo nas primeiras medições, o orientador percebeu que o grupo da poesia mostrava sinais de resposta muito expressivos. Foi quando ele e Maurilene decidiram fazer um novo desenho do trabalho: haveria dois grupos de intervenção – um de música e outro de poesia, com status igual, que seriam comparados com o grupo placebo “pra valer”, sem intervenção nenhuma (no máximo, um bate-papo trivial com os pacientes).
Como escrevi antes, Maurilene gravou o áudio da leitura do meu livro de poesias – foi um aspecto belíssimo desse estudo –, e ele então se tornou inclusivo. As pesquisas envolvendo poematerapia em geral exigem que os versos sejam lidos – e isso exclui os analfabetos. Naquele estudo, porém, o fato de a poesia ser ouvida fez dela um instrumento muito potente de intervenção. Deu-se uma mágica estatística: o impacto positivo de escutar poesia resultou em alívio da dor, melhora da qualidade de vida e redução de escala da depressão tanto quanto a exposição à música. Mas houve um resultado mais bonito: a poesia revelou-se superior à música em se tratando de elevar o índice de esperança dos pacientes.
No primeiro artigo internacional que cita meu nome, eu não fui a pesquisadora – fui a intervenção da pesquisa. E comprovar que minhas palavras escolhidas poeticamente podem ser utilizadas como fonte de esperança para pessoas a quem a esperança pode ter sido negada foi uma linda descoberta.