As Décadas Esquecidas
Que homens eram aqueles? Como haviam chegado àquelas praias remotas e de que maneira tinham sido capazes de sobreviver ali por tantos anos? Qual o processo que os transformou de meros náufragos – ou degredados – em figuras-chave na ocupação e colonização do Brasil? Passados cinco séculos de uma espantosa aventura, desenrolada ao longo de vastas porções do litoral brasileiro, as respostas ainda não são conclusivas. As dúvidas apenas aumentam o fascínio em torno do período mais nebuloso na história da exploração e conquista do país.
O que se pode afirmar com certeza é que a partir de 1525, quando os europeus começaram a desembarcar com mais frequência no Brasil, encontraram uma galeria de personagens enigmáticos. Eram homens brancos que viviam entre os nativos: alguns tinham sobrevivido ao naufrágio de seus navios, outros haviam desertado deles. Muitos haviam cometido algum crime em Portugal e foram condenados ao degredo no Brasil, outros tiveram a audácia de discordar de seus capitães e acabaram desterrados. Vários estavam casados com as filhas dos principais chefes indígenas, exerciam papel preponderante na tribo, conheciam suas trilhas, seus usos e costumes, e intermediavam as negociações entre várias nações indígenas e eventuais representantes de potências europeias. Sua presença em pontos estratégicos do litoral seria decisiva para os rumos do futuro país.
Tal galeria não se limita a nomes mais conhecidos, como o mitológico Caramuru, responsável indireto pela fundação de Salvador, ou João Ramalho, virtual fundador da cidade de São Paulo. Tão importante quanto eles foi, por exemplo, o misterioso Bacharel de Cananeia, primeiro grande traficante de escravos do Brasil e do qual nem mesmo o verdadeiro nome se conhece. Mas há vários outros, cuja trajetória é ainda mais obscura e marcante. O que dizer do intrépido Aleixo Garcia, que em 1524 marchou de Santa Catarina, com um exército particular de dois mil índios Guarani, para atacar as cidades limítrofes do Império Inca, a mais de dois mil quilômetros dali? E de seus companheiros Henrique Montes e Melchior Ramires – desertores e polígamos –, que, ainda assim, acabariam sendo recebidos na corte pelos reis de Portugal e Espanha, transformando-se nos homens mais importantes dos primórdios da exploração do rio da Prata e do litoral sul do Brasil?
A lista de personagens assombrosos dos 30 primeiros anos da colônia não se encerra com eles. Resta ainda João Lopes de Carvalho, piloto português que foi desterrado no Rio em 1511 e, após ser recolhido pelos espanhóis, retornou ao Brasil em 1519 como piloto de Fernão de Magalhães, apenas para, dois anos mais tarde, morrer em Bornéu, na Ásia, onde se achava em companhia de seu filho, um garoto indígena de 9 anos nascido no Rio de Janeiro. E o que pensar do grumete Francisco del Puerto, que viveu 14 anos entre os nativos do Prata e depois traiu os europeus que o recolheram, abrindo o portão de um forte à noite para permitir que espanhóis e portugueses fossem massacrados pelos indígenas?
E esses são apenas alguns dos protagonistas dos 30 primeiros anos do Brasil – as três décadas perdidas. Sua história pessoal, e a própria história de sua época, pode ser reconstruída a partir de cartas, diários de bordo, relatos de viagem e referências esparsas encontradas em arquivos estrangeiros. A ausência de documentos oficiais tem dificultado a pesquisa sobre essa época e, na maior parte dos livros sobre a história do Brasil, o período que vai de 1500 a 1531 se reduz, em geral, a dois parágrafos.
As viagens dos espanhóis Vicente Yañez Pinzón e Diego de Lepe – que se anteciparam a Cabral em alguns meses – também têm sido virtualmente ignoradas pela historiografia oficial. Mas foram elas as primeiras missões exploratórias a aportar nas praias do que viria a ser o Brasil. Pouco mais tarde, a partir de 1504, chegaram os franceses. Embora tenham disputado arduamente com os portugueses, durante mais de 20 anos, o domínio da costa brasileira, a história oficial também tem dedicado pouca atenção a esses episódios – ao contrário, por exemplo, do que acontece com a bem documentada aventura da França Antártica, quando os franceses invadiram o Rio de Janeiro, em 1555, sob o comando de Villegaignon.
Na verdade, é como se, depois de um hiato de 30 anos, a história do Brasil só se iniciasse de fato com a chegada da “missão colonizadora” de Martim Afonso de Sousa, em 1531. Mas também aí persistem os mitos historiográficos. Afinal, ao contrário do que a maior parte dos textos afirma, Martim Afonso não veio fundar cidades ou iniciar a colonização do Brasil. Sua principal missão era, como se verá, explorar o rio da Prata – tido como a porta de entrada para as extraordinárias riquezas do Império Inca.
Este livro pretende contar a história das primeiras expedições ao Brasil e reconstituir a trajetória pessoal de náufragos e degredados, cujo relato encheu de ambição e de esperança a cabeça dos reis de Portugal e Espanha e determinou a ocupação do litoral sul do Brasil. Pretende recuperar também, na medida do possível, a vida cotidiana nas comunidades fundadas por alguns desses mesmos náufragos e degredados na ilha de Santa Catarina e em Cananeia; a história das primeiras expedições dos franceses à América e o dia a dia dos traficantes de pau-brasil, então chamados “entrelopos”. O papel desempenhado por esses homens tem sido frequentemente ignorado e permanece à margem da história oficial. Embora vivessem para além dos limites, para além da lei e para aquém da ética, eles podem ser considerados os primeiros brasileiros – no sentido literal da palavra, como se verá.
Sem a perseverança, o esforço e a ambição desse elenco de personagens extraordinários, o destino do Brasil ao longo de suas três primeiras décadas teria sido inteiramente diferente. Afinal, foi durante esses anos turvos que o futuro país não só começou a estabelecer sua atual configuração territorial – expandindo-se para além dos exíguos limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas – como forjou uma parte considerável de seu imaginário histórico. Mais do que isso: durante as três décadas esquecidas, o Brasil adquiriu seu nome, ajudou a batizar a América e, de certa forma, serviu até de modelo para A Utopia, de Thomas Morus.
Mesmo assim, a história empolgante desses anos perdidos não tem sido vista como um processo orgânico e coerente, nem narrada com os detalhes e a dramaticidade que a trajetória individual dos homens que a forjaram parece exigir e impor.
Quase 500 anos depois, náufragos, traficantes e degredados ainda não recuperaram seu lugar na história. É hora de fazê-lo.