Capítulo 1
SPECTREMAN, MORCEGOS E CINEMA
Eu tinha a intenção de começar este livro com uma introdução inspirada na abertura de Spectreman, algo para despertar nas pessoas da minha idade – 45 anos, se você está se perguntando – um sentimento de nostalgia. Mas também para esfregar sutilmente na cara da molecada o fato de que eu já curtia seriado japonês quando eles nem eram nascidos. Essa introdução remeteria ao discurso em off da abertura:
“Planeta: Terra. Cidade: Tóquio. Como em todas as metrópoles deste planeta…”
E por aí vai. Mas, infelizmente, “Planeta: Terra. Cidade: Arujá” não tem o mesmo peso da capital japonesa.
Abandonei a ideia, mas ela serviu para me lembrar que esse ícone do tokusatsu (o nome japonês para esses seriados com atores que enfrentam monstros de borracha) talvez tenha sido a minha primeira nerdice. Não tenho muita certeza, afinal, de quando começou o meu fascínio por mundos fantásticos, mas certos momentos da infância, como esse, dão algumas pistas dessa apreciação que, invariavelmente, traçaria a rota para tudo o que tenho e que sou.
Fique avisado: este é um livro de memórias, essas coisas imprecisas e que se misturam ao longo do tempo. Como resíduos no fundo do jarro de suco, agitei-as antes e tentei checar alguns fatos, mas você pode imaginar a confusão espiralada que sobe à superfície no redemoinho de momentos que tento ordenar aqui. Sinto que, a cada memória revisitada, adiciono algum detalhe que não tenho certeza se realmente existiu. De qualquer maneira, o registro as congela no tempo e as emoções geradas são verdadeiras.
Enfim.
Spectreman começou a passar no início da década de 1980 na Record. Para chegar a esse canal a partir da onipresente Globo, eram necessários dois estalos no sentido horário do dial da televisão de tubo com antena em cima e imagem chuviscante em preto e branco, que ficava na cozinha. Nós até tínhamos uma colorida que ficava na sala, mas já estava velha quando eu era moleque e demorava um bom tempo pra ligar. Bom, a mudança de canal não vinha sem alguma negociação familiar, mas o programa era quase sempre bem inofensivo, então meus pais acabavam cedendo e deixavam que eu ficasse sozinho na cozinha com o platinado Doutor Gori e seu ajudante gorila, Karas – símios de um planeta alienígena que descobriram no poluído planeta Terra o lugar ideal para criar seus monstros e dominar os humanos –, assistindo ao que aprontavam para o pobre Spectreman. A dupla, aliás, foi inspirada no sucesso Planeta dos macacos, filme sensação de 1968 que levou para as telas a criação literária de Pierre Boulle, que tem um dos finais mais surpreendentes da história do cinema. Macacos e radiação (outra influência para a série foi Godzilla, fruto dos horrores radioativos despertados durante a Segunda Guerra Mundial) assombraram o mundo naquele final da década de 1960.
Alguns anos depois do Spectreman apareceu o Ultraman, que eu até preferia pelo visual mais moderno e a luz embutida no peito, que piscava quando sua energia estava baixa. O maior herói do planeta tinha um sensor que mostrava suas fragilidades para quem quisesse ver! Era incrível e inusitado, e gerava bagunças em casa. Quando não estávamos brigando, minha irmã Bruna e eu brincávamos bastante, assistíamos à TV juntos e gostávamos especialmente de replicar as aventuras dos heróis gigantes japoneses, nos revezando no papel do monstro.
O que mais nos motivava era recriar as cenas de luta em pedreiras. Basicamente, um de nós subia nas prateleiras da biblioteca enquanto o outro alvejava-o com raios lançados dos dedos. O resultado era um belo salto ornamental em direção a um colchão.
Era um dos colchões de solteiro beges estampados com folhagens marrons que viravam um sofá quando empilhados. Sendo bastante grossos, eram ótimos para absorver impactos. Eram nossos itens de baderna favoritos, já que além de equipamentos de segurança viravam motos quando colocados na vertical, com o zíper lateral riscando o chão encerado. Ou naves (depois de 1983, viraram oficialmente os speeders de O retorno de Jedi). Em determinado momento, tornaram-se cavalos, quando tivemos nossa fase western.
Eu e a Bruna nunca tínhamos assistido a um filme de faroeste, mas havia em casa um disco com as melhores trilhas do gênero, e o colocávamos para ditar o ritmo das brincadeiras. Se a canção fosse bucólica, cavalgávamos os colchões pelas planícies empoeiradas da sala de estar. Se a música animava, entrávamos em ação contra bandoleiros. Se ficava dramática demais, alguém morria (e ressuscitava quando uma virada de esperança sonora atingia a brincadeira). Foi um curioso privilégio; não conheço mais ninguém que tenha descoberto Ennio Morricone antes de ver os filmes de Sergio Leone.
Só aposentamos os colchões companheiros quando fomos proibidos de usá-los para desafiar a morte. Seu canto do cisne durou uma semana inteira, quando aprendemos a escalar as paredes do corredor usando mãos e pés descalços. Apoiados dos dois lados, subíamos o máximo possível, chegando a tocar as costas no teto. A brincadeira logo escalonou, envolvendo uma boleadeira de corda criada com duas almofadas amarradas. A diversão era tentar atingir o pé de apoio do outro e puxá-lo, fazendo-o despencar sobre o colchão. Orgulhosos das nossas habilidades que fariam Peter Parker empalidecer, fomos mostrar para nosso pai, recém-chegado do trabalho, pastinha ainda na mão. Ouvimos um monte e fomos pra cama com o traseiro quente. Adeus, colchões! De volta à telinha…
Normalmente, Spectreman era bastante leve… até um episódio específico, com vampiros que atacavam crianças. Ele foi tão marcante que levei algumas semanas para criar coragem e voltar à série. No fim, Vurdalak, o vampiro do espaço, morria empalado por uma cruz alienígena e eletrocutado através dela depois que os céus escureciam. Eu só havia experimentado horror igual no episódio “O espião espiado” de Pica-Pau, em que o pássaro toma o tônico secreto – a Fórmula 7 ⅜ – e adquire superforça. A narração dos detetives em tom de policial noir e o vilão “O Morcego” sempre me faziam trocar de canal, tenso.
Vampiros e morcegos… um padrão que só notei agora e que pode explicar meu desespero, trinta anos depois, em uma noite de verão na Santa Cecília. Eu havia acabado de mudar para o décimo nono andar de um edifício no bairro próximo ao centro de São Paulo, quando um desses quirópteros irrompeu sala de estar adentro. TIC, TIC, TIC, estalava.
Eu estava em uma das temporadas boas de Lost, a segunda, e desfrutava de cada episódio com o máximo de atenção. Nessa época, Lost valia a vida útil da lâmpada de um projetorzinho multimídia da Epson que comprei de um importador nebuloso na Santa Ifigênia em 2001 ou 2002. Eu assistia aos mistérios da ilha na parede, com a janela escancarada, quando a criatura da noite entrou por ela e começou um voo circular sobre mim, projetando sua sombra como meu Nosferatu particular. Arremessei a comida do colo, correndo de cabeça baixa nesse pesadelo. Coca Diet escorria na parede, sobre os corpos sarados de Jack e Kate.
Abrigado no escritório de porta fechada, avaliei minhas opções. Coloquei óculos de natação, caso a criatura viesse para as minhas órbitas oculares, apanhei um sabre de luz e a tampa da lixeira vermelha estilo Manda-Chuva que comprei na Etna. Uma camada de roupas a mais e eu estava pronto para enfrentar os 190 gramas de mamífero voador insetívoro que invadiram meu lar.
Leônidas teria ficado orgulhoso. Acendi a luz e posicionei-me no corredor, espiando a sala. Nada. Aguardei arrepiado naquela Termópilas urbana, pronto para defender meu território, enquanto perscrutava o espaço. Nada ainda. Avancei mais uns passos para desligar o projetor, então o vi. Nosferatu. Xerxes. Agarrado à face oculta do lustre. Tomei coragem e o cutuquei, torcendo por um voo em direção à janela. Tudo o que consegui foi um balé horizontal, com o animal rodando em volta do lustre, agarrado com patas e asas, cuja pele fina esticava a cada deslocamento. TIC.
Passei alguns minutos olhando o bicho e refletindo, até ter a ideia de interfonar para a síndica húngara, para saber se havia alguém especializado em remoção de animais silvestres na região. Dona Irina, líder do edifício havia quinze anos, tinha um sotaque forte do Leste Europeu e dividia parede comigo. “Non precisa. Estou indo aí”, avisou.
Ela surgiu de camisola e chinelos na contraluz do hall. “O senhor me traz uma escada, um balde e um pano” – e, assim, com a voz de comando do Velho Continente e evocando os guerreiros das tribos magiares, assumiu a operação das mãos de Leônidas.
A senhorinha de um metro e meio, cheirando a banho recém-tomado, subiu ligeira a pequena escada. Posicionou o balde na altura do peito e foi atrás do morcego com o pano. Ele se desvencilhou e saltou sobre ela – O HORROR! –, que sequer piscou. Puxou as garrinhas presas à camisola e o depositou no baldinho amarelo, tampando-o com o pano. Desceu devagar e foi à janela, onde devolveu o animal à paisagem paulistana. “Bronto.” TIC, TIC, TIC…
Eu não tinha palavras para agradecer à Dona Irina, general formidável do Edifício Rio Verde. “Non se preocupa. Na minha terra tinha muito desses”, me acalmou. “Mas onde a senhora nasceu?”, perguntei curioso.
“Na Transilvânia.”
Ah, velhota cascateira! “Mas a Transilvânia não fica na Hungria, é na Romênia”, enchi os pulmões, certo de que meus conhecimentos de geografia me ajudariam a recuperar um pouco da masculinidade perdida depois daquela batalha.“Os romeno robaro de nós”, retrucou com um misto de pesar e raiva histórica por sua terra natal, o norte da Transilvânia, ter sido anexada pela Romênia em 1947, data que investiguei depois. Lamentei. Eu me despedi, duas vezes ferido, e no dia seguinte comprei um belo pote de geleia de mirtilo húngara em agradecimento.
Irina já devia ter uns 50 anos em 1980, quando eu era aquela criança com medo de Pica-Pau e Spectreman em Arujá, uma cidadezinha no interior paulista de, na época, uns quarenta mil habitantes. O lugar, elevado a município havia nem vinte anos, estava começando a se desenvolver na época por atrair paulistanos em busca de um pouco de ar puro, já que fica a pouco mais de quarenta quilômetros da cidade. Muita gente tinha casas de fim de semana lá, o que tornava a vizinhança meio desértica durante os dias úteis.
Mudamos pra lá quando eu tinha 1 ano, então não me lembro da nossa vida antes disso, em São Paulo. Mas acredito que minha mãe se ressentia dessa mudança. Filha de um arquiteto fanfarrão, ela nasceu e cresceu na megalópole e sempre foi aficionada por cinema, cultura, arte… Agora, enfiada com dois filhos pequenos em um subúrbio superprotegido de classe média, trabalhando como professora e cuidando da casa, do marido e da Jane, uma cadela beagle blasé, não havia muito como satisfazer seus desejos por uma programação cultural variada.
Com a escassez de programas interessantes na nova cidade, Dona Enery aproveitava como podia qualquer oportunidade de ir a São Paulo. Se eu precisasse de botas ortopédicas, uma consulta médica para a minha bronquite ou ver um homeopata – minha saúde não era das melhores –, ela sempre dava um jeito de esticar nosso passeio numa matinê de cinema.
Segundo ela, nossa primeira sessão foi uma reexibição de Bambi, em uma sala na Avenida São João (centro de São Paulo) chamada Cinespacial. O lugar tinha uma dessas invencionices dos anos 1970, criadas para diferenciar cinemas em uma época na qual a concorrência não tinha muita tecnologia na qual investir. O chamariz ali era a sala em formato de arena circular, em que cada setor da arquibancada era voltado para uma das três telas. Por meio de um preciso jogo de espelhos, projetava-se o filme simultaneamente em todas as telas. Não havia lugar ruim nessa sala cuja planta parecia um sinal de perigo radioativo misturado com o símbolo da Umbrella Corporation de Resident Evil. Era uma criação do arquiteto Emílio Guedes Pinto, sujeito incomodado com o fato de as salas de cinema não serem diferentes de teatros. Uma solução interessante e que tinha em São Paulo sua segunda sala – a primeira era em Brasília e combinava demais com a arquitetura modernista da cidade.
Inquieto pela novidade, permaneci de pé e em silêncio absoluto no centro da sala, rodando para ver um pouco de cada tela, como se fossem filmes distintos e eu fosse perder alguma coisa caso não prestasse atenção em todas. Eu tinha 3 anos e só rompi a contemplação com o fatídico tiro que a mãe do bicho leva. “A mãe dele morreu?”, perguntei alto.
Morreu, cara.
Enquanto a Disney criava órfãos em nome do entretenimento infantil, eu permanecia ali, em pé, checando as três telas de olhos arregalados para ver se o momento se repetia. Eu absorvia pela primeira vez o baque do que uma história poderia me fazer sentir.