INTRODUÇÃO
Eu me sento em uma cadeira de plástico de um dos lados de uma mesinha, de frente para um homem chamado Jarvis Jay Masters. Conto a ele que estou pensando em escrever um livro a seu respeito e pergunto o que acha da ideia. Reforço que, se eu for adiante, vou relatar as coisas que descobrir, boas e más.
– Não posso ficar mais feio do que já me pintam – diz Masters, e acho que é verdade, tratando-se de um assassino condenado. – Quer dizer – acrescenta ele –, basta ver onde estamos.
Estamos na Penitenciária Estadual de San Quentin, em uma gaiola do tamanho de um armário embutido entre uma dezena de cubículos semelhantes em um corredor reservado às visitas.
Sigo o olhar de Masters percorrendo as outras gaiolas, onde outros assassinos condenados estão sentados com familiares ou advogados. Ramón Bojórquez Salcido, condenado pelo assassinato de sete pessoas, inclusive a esposa e as filhas, está com o advogado no cubículo em frente. Na gaiola vizinha, Richard Allen Davis, que estuprou e matou uma menina de 12 anos, come Doritos. No fim do corredor, perto de uma estante cheia de jogos de tabuleiro e bíblias, Scott Peterson, sentenciado por assassinar a esposa grávida de oito meses e o bebê não nascido, recebe a visita da irmã.
Peterson está relaxado e em forma, mas alguns prisioneiros parecem tensos, agitados ou emburrados. E tem ainda uns sujeitos – diminutos, inofensivos, de óculos – que parecem pacatos funcionários de algum guichê. “As aparências enganam”, diz Masters. Ao longo dos anos, ele se surpreendeu ao descobrir os crimes cometidos por seus vizinhos mais dóceis e educados no corredor da morte.
– Alguns deles têm boas maneiras, colocam o guardanapo no colo, mas deram fim a metade de Iowa.
__________
Em 2006, minha amiga Pamela Krasney, ativista dedicada à reforma carcerária e a outras causas de justiça social, me falou sobre um detento no corredor da morte que, segundo ela, tinha sido injustamente condenado por assassinato. Ele era diferente de qualquer pessoa que ela já tinha conhecido, mais consciente, sábio e empático “apesar de seu passado”. Ela se corrigiu: “Por causa de seu passado.”
Apresentada a Masters por uma amiga dele, a famosa monja budista Pema Chödrön, Pamela o visitava regularmente há anos. Ela fazia parte de um grupo de apoiadores que se dedicavam a provar a inocência dele. Autodenominavam-se jarvistas.
Pamela me explicou que Masters tinha escrito um livro, inúmeros artigos e um poema pelo qual ganhara o prêmio PEN, um concurso anual de escrita do Prision Writing Program. Ele se convertera ao budismo e estudara com o ilustre lama tibetano Chagdud Tulku Rinpoche, que o proclamou um bodhisattva, “uma pessoa que trabalha para acabar com o sofrimento em um lugar mergulhado em sofrimento”. Na verdade, Pamela alegava que Masters havia se tornado uma força do bem em San Quentin, ensinando budismo aos detentos e até impedindo episódios de violência.
Incentivado por Pamela, marquei uma visita ao corredor da morte, chegando à antiga baía das Caveiras em uma manhã sem neblina, com um vento cortante soprando na ponte Golden Gate. Veleiros brancos flutuavam como pétalas de lótus pela baía. Rebocadores puxavam barcaças, balsas deslizavam e a ponte Richmond-San Rafael cintilava. Depois que minha identidade foi verificada, passei por um detector de metais e, como orientado, segui a linha amarela pintada ao longo das pedras de um muro de contenção. No alto, em uma torre que parecia um farol, guardas armados observavam.
Masters estava alojado no prédio que tinha o abominável nome de Centro de Correção (CC), a unidade das solitárias – “o buraco” –, certa vez descrita por um administrador de San Quentin como uma “unidade restrita e confinada para abrigar os homens cruéis, violentos e insanos que a sociedade não quer que existam”. Ele trabalhou duas décadas no CC.
Fui conduzido à cadeira que ficava diante de uma divisória de vidro manchado. Depois de muitos minutos, uma porta se abriu do outro lado e um guarda entrou escoltando Masters, que era alto e estava muito bem barbeado, o cabelo cortado à escovinha, impecável. Óculos de leitura pendiam de seu pescoço.
Depois que as algemas foram retiradas, Masters se sentou e tiramos do gancho os telefones avariados. A voz dele era abafada, como se estivéssemos conversando por meio de telefones de lata.
Masters tinha olhos castanho-claros, uma voz agradável de tenor e um carisma silencioso que o vidro não conseguia esconder. Conversamos sobre Pamela, Pema, a escrita, as notícias e um recente lockdown depois de uma punhalada. Perguntei sobre os guardas, os detentos e a prática budista dele. Masters era articulado, atencioso e engraçado. Depois de uma hora e meia, um guarda avisou que a visita tinha acabado. Ele levou Masters embora e deixei o pavilhão rumo ao vento frio da baía.
Refleti sobre o encontro. Masters pareceu franco e sincero. Tive um vislumbre do que os amigos dele descreviam como algo indefinível e especial; porém charme não significa inocência. Lemos muito sobre assassinos cruéis e carismáticos: Perry Smith, retratado por Truman Capote (Capote até passou a gostar do cúmplice de Smith, muito mais impiedoso, Richard Hickock); Elmo Patrick Sonnier e Robert Lee Willie, retratados pela Irmã Helen Prejean; e Gary Gilmore, descrito por Norman Mailer (segundo o retrato de Mailer, Gilmore era insensível e incapaz de se arrepender, mas tinha uma mente perspicaz, espirituosa e sedutora).
Será que Masters era um assassino? Os amigos dele juravam que não. Será que tinha sido vítima de uma armação, como seus advogados alegavam? Ou era um manipulador habilidoso, um vigarista tirando vantagem de pessoas confiáveis e bondosas como Pamela e Pema?
Mesmo que Masters fosse inocente, eu não sabia o que pensar a respeito das afirmações de que era, segundo a descrição de seus apoiadores, um budista praticante iluminado que mudou e salvou vidas. Há budistas em muitas prisões. Aliás, há detentos recém-convertidos a todas as fés. Há escritores e poetas detentos e outros que foram apontados como pessoas excepcionais. Será que Masters era realmente diferente? Eu me abstinha de fazer julgamentos bons ou ruins a seu respeito. Mas ele continuava a me intrigar.
__________
Nos anos seguintes, Pamela me manteve informado sobre os acontecimentos da vida de Masters. Em 2007, depois de 22 anos, ele foi liberado do confinamento solitário e transferido para uma ala menos restritiva do corredor da morte. No ano seguinte, casou-se, em uma cerimônia realizada por Pema Chödrön. Em 2009, Pamela me pediu para redigir uma chamada de capa para o segundo livro escrito por Masters. Ela também me contou sobre o andamento do processo de recurso judicial. Para ela, não havia dúvida de que ele seria inocentado; era apenas questão de tempo.
Então, em 2015, Pamela faleceu devido a uma rara doença do sangue. Pema realizou uma cerimônia fúnebre budista durante a qual leu uma carta de Jarvis. A homenagem foi realizada em Mill Valley, Califórnia, na margem oposta a San Quentin. Enquanto Pema lia o discurso de Masters, pensei nele em sua cela no corredor da morte a apenas alguns quilômetros de distância. Pensei também na conexão e no zelo profundos de Pamela em relação a Masters e me lembrei das afirmações dela de que ele havia inspirado e ajudado inúmeras pessoas dentro e fora dos muros da prisão. Assim que saí da cerimônia, decidi investigar aquelas afirmações.
Falei com pessoas dentro e fora de San Quentin. Pema me contou que, depois de ler o livro de Masters, escreveu para ele e o visitou. Eles se tornaram amigos próximos. Ela admirava a capacidade que ele tinha de suportar um peso que teria esmagado a maioria das pessoas e a alegria que irradiava em um lugar tão triste. As interpretações dele de ensinamentos budistas a inspiraram e as ideias dele a ajudaram a obter uma compreensão mais profunda de conceitos que ela julgava conhecer. Li cartas de outras pessoas que também leram seus livros e se sentiram inspiradas a escrever para ele sobre as dificuldades que enfrentavam: relacionamentos abusivos, perda de pessoas amadas, doença e depressão. Muitas escreveram sobre tentativas de suicídio. Masters respondia a todas essas cartas e os remetentes escreviam novamente para lhe agradecer pelo conforto, pela orientação e a esperança que lhes dera.
Havia cartas de adolescentes “problemáticos” que ganharam o livro dele de terapeutas e educadores. Professores do ensino médio que abordavam o livro de Masters em suas aulas enviavam pacotes de cartas de alunos a quem ele inspirara. Uma bibliotecária de Watts disse que o livro dele era o mais furtado das prateleiras.
O mais impressionante é que fui capaz de confirmar que Masters defendera prisioneiros vulneráveis a ataques por serem homossexuais, suspeitos de denunciar outros detentos ou que tinham entrado em conflito com as normas cruéis da prisão. Mais extraordinário ainda, ele havia evitado possíveis ataques de prisioneiros contra agentes penitenciários (APs). Conversei com pessoas, inclusive um guarda, que afirmaram que Masters evitou que se suicidassem. O AP me contou que estava com o filho gravemente doente, vivia brigando com a esposa, bebia exageradamente e detestava seu emprego. O guarda admitiu que tratava os detentos como escória – era assim que os enxergava. E confessou que planejara se matar.
Certa manhã, Masters chamou o agente, que fazia a ronda do andar. Jarvis disse ter percebido que o homem parecia estressado, deprimido, e queria se certificar de que ele estava bem. O guarda não era do tipo que se abria sobre a própria vida com ninguém, muito menos com um condenado, mas “algo em Masters” o levou a fazer confidências sobre o filho e os problemas em casa. A conversa deu início a meses de bate-papos antes do amanhecer na porta da cela de Jarvis, durante os quais ele ajudou o guarda a enfrentar a doença do filho, a apoiar a esposa e a entrar em um programa para deixar de beber. O agente não pensava mais em tirar a própria vida: ao contrário, ele abraçou a vida que tinha.
O AP disse que seu trabalho se tornou significativo quando Masters o fez perceber que poderia oferecer ajuda a pessoas que precisavam dela desesperadamente; ele passou a ver a atividade não mais como a simples condução de um rebanho de gado, mas como uma oportunidade de tratar o sofrimento com compaixão. A atitude dele se transformou porque, como disse:
– Masters me mostrou que a maioria dos condenados era tratada com brutalidade. Eles eram apenas pessoas, umas mais ferradas do que outras, algumas tão ferradas quanto as que estão do lado de fora. Todas tinham vidas infelizes e todas têm alma.
Essa e outras histórias semelhantes me convenceram a levar este livro adiante.
__________
Nos quatro anos que se passaram desde então, fiz mais de 150 visitas ao corredor da morte e gravei mais de cem horas de entrevistas. Também conversei com Masters por incontáveis horas ao telefone. Complementei nossas conversas com textos escritos por ele (livros, cartas, diários e ensaios), mas me baseei principalmente nas memórias e nos relatos do próprio Masters sobre a prisão. Ele falava de maneira sincera, mas era cauteloso em relação aos guardas e protetor com os outros detentos. Porém falava com completa franqueza sobre a própria vida. Relatou longamente a violência em seu passado e seus olhos se encheram de lágrimas quando falou de suas vítimas.
Foi difícil determinar se eu poderia confiar nas lembranças de Masters sobre os acontecimentos, inclusive alguns ocorridos há mais de cinquenta anos. Muitas das pessoas descritas neste livro estão mortas ou presas e não podem ou não estão dispostas a falar comigo. (Algumas não consegui convencer de que não sou da polícia.) Não surpreende que poucos guardas e detentos tenham aceitado conversar comigo e que, entre os que aceitaram, a maioria só tenha falado com a condição de não ter a própria identidade revelada. No final, descobri que os relatos de Masters passíveis de uma verificação independente se mostraram verdadeiros.
Ao longo das centenas de horas que passamos juntos, Jarvis e eu falamos sobre muitos assuntos, mas a maioria de nossas conversas acabou chegando, por meio de divagações, guinadas e evasivas, a questões sobre o ser: em que casos e de que forma as pessoas podem transformar a própria natureza e como podemos aliviar a dor e encontrar um sentido para a vida.
Ao reconstituir a jornada de Jarvis, vi que ele encontrou as respostas a essas perguntas na meditação e no budismo.
Não sou budista, mas, à medida que tomava conhecimento de como a fé o ajudou, eu descobria como princípios e práticas budistas podem ajudar outras pessoas, adeptas ou não. Aprendi que as pessoas podem mudar e como isso é possível, mas também que a transformação se dá aos trancos e barrancos. A jornada não é linear, mas cíclica – e difícil. Aprendi também algo ainda mais profundo: que o processo e o objetivo são diferentes daquilo que muitos de nós esperamos. Em vez de nos esforçarmos para mudar nossa verdadeira natureza, precisamos encontrá-la. Em vez de fugir do sofrimento, precisamos abraçá-lo.
Masters nunca afirmou ser iluminado ou ter renascido. Ele não dá ouvidos a quem se refere a ele como um professor. Jarvis se encolheu quando contei que as pessoas o descreviam como iluminado.
– Eu nem sei o que essa palavra significa – contestou, enfatizando que é “a última pessoa” que deveria ser considerada porta-voz do budismo e admitindo que seu tipo de fé é instável e determinado pelos desafios pessoais impostos pela vida no corredor da morte.
No entanto, enquanto superava obstáculos internos e externos, Jarvis desenvolveu perspectivas sobre problemas com os quais muitos de nós lutamos. E, com o tempo, compreendi por que as pessoas diziam que ele as inspirava.
Tendo como cenário um lugar de violência, confusão e fúria implacáveis, a história de Masters passa por grutas tenebrosas, com afluentes de solidão, desespero, trauma e outros sofrimentos – um terreno que todos conhecemos muito bem – até chegar à cura, ao sentido e à sabedoria. Senti muitas vezes o poder de inspirar que Masters tem e espero poder compartilhar esse poder nas páginas que se seguem.