Apresentação
A arte é uma transação espiritual
Artistas são visionários. Praticamos uma forma de fé, enxergando um objetivo criativo que reluz a distância e seguindo em sua direção. Muitas vezes ele é visível para nós, mas não para os outros à nossa volta. Nem sempre lembramos, mas é nossa obra que cria o mercado, e não o mercado que cria nossa obra. Às vezes somos chamados a peregrinar em nome da arte e duvidamos desse chamado, mas mesmo assim o atendemos.
Estou escrevendo em uma mesa de laca chinesa, diante de uma janela com vista para o rio Hudson. Moro no Upper West Side, em Manhattan – um país por si só –, onde trabalho transpondo peças musicais das páginas para o palco. Estou aqui porque a “arte” me chamou. Obediente, eu vim.
Manhattan deve ser o lugar que tem a maior concentração de artistas nos Estados Unidos. Na parte onde moro, eles estão em cada esquina; já fazem parte da paisagem. Escrevo o livro, olho para as luzes da cidade, reflito e concluo que Manhattan também me conhece a fundo. Componho melodias num piano a 10 quadras de onde o compositor Richard Rodgers, ainda rapaz, conheceu Larry Hart, o jovem baixinho que se tornaria seu grande parceiro artístico. Juntos, eles conseguiriam sonhar mesmo nas piores circunstâncias.
Meu apartamento fica em Riverside Drive, bem na ponta estreita da ilha. A Broadway está a apenas um quarteirão atrás de mim. Observo o rio, agora negro ao pôr do sol, que pinta faixas coloridas no céu. O rio é largo e escuro, e em dias de vento forte – são muitos – a água fica agitada, repleta de marolas com espuma branca. Determinados, rebocadores vermelhos avançam rio abaixo ou acima, puxando enormes barcaças. Manhattan é um porto – e um desembarcadouro de sonhos.
Este lugar transborda de sonhadores. Todo artista sonha, e chegamos aqui carregando esses anseios. Nem todos andam de preto ou fumam e bebem sem parar, protagonizando um romance barato que conta a história de suas vidas difíceis em prédios residenciais sem elevador, repletos de desejos e baratas, em bairros tão ruins que até os ratos já se mudaram de lá. Essa visão está equivocada. Assim como as baratas, os artistas estão por toda parte, dos cortiços às coberturas de luxo – no meu prédio, além de mim, com o piano e a máquina de escrever, há uma cantora de ópera. Os garçons da vizinhança são quase sempre atores, e as jovens lindas que servem as mesas são bailarinas de verdade.
Esta tarde tomei uma xícara de chá no Edgar’s Café, cujo nome homenageia o escritor Edgar Allan Poe, que morou em Manhattan e morreu no Bronx, ao norte da cidade. Já espiei as janelas do apartamento térreo de Leonard Bernstein no Edifício Dakota, e tenho uma sensação ruim toda vez que passo pela entrada em arco do prédio onde John Lennon foi assassinado. Moro a menos de um quarteirão da área frequentada por Duke Ellington, e no bairro há uma rua batizada em sua homenagem. Manhattan é uma cidade cheia de fantasmas. O poder criativo circula por desfiladeiros verticais, assim como outros poderes.
Foi aqui que comecei a ensinar o Caminho do Artista. Fui “chamada” a ensinar e atendi ao chamado com alguma relutância. Pensei: E como fica a minha arte? Na época, eu ainda não havia descoberto que costumamos praticar aquilo que pregamos; que, ao desbloquear a criatividade dos outros, eu também desbloquearia a minha; e que, como todo artista, eu me desenvolveria muito mais facilmente caso estivesse ao lado de pessoas que dão os mesmos saltos de fé que eu. Quando recebi meu chamado, não imaginava quantas coisas boas o trabalho de professora traria a mim e aos outros.
Em 1978 comecei a ensinar artistas a “eliminar seus bloqueios” e a se “reerguer” após uma queda criativa. Eu mostrava a eles os métodos que aprendi com minha prática e dizia frases incentivadoras como: “Lembre-se, há uma energia criativa querendo se expressar através de você”; “Não julgue seu trabalho ou a si mesmo. Você pode aperfeiçoá-lo depois”; “Deixe que
Deus trabalhe através de você”.
Meus métodos eram simples, e os alunos, poucos, mas nos 10 anos seguintes as ferramentas de trabalho e o número de estudantes cresceram de forma sólida e consistente. No início, quase todos os meus alunos eram artistas que sofriam de bloqueio criativo – pintores, poetas, ceramistas, escritores, cineastas, atores e outros que gostariam de ser mais criativos na vida pessoal ou em alguma forma de arte. Eu ensinava da maneira mais simples possível porque é assim que as coisas acontecem. A criatividade é como capim – volta a crescer com um mínimo de cuidado. Eu ensinava meus alunos a fornecer nutrientes básicos a seu espírito criativo e o estímulo necessário para mantê-lo alimentado. Os alunos respondiam produzindo livros, filmes, pinturas, fotografias e muito, muito mais. Faziam propaganda boca a boca do meu curso, e com isso minhas turmas viviam cheias.
Ao mesmo tempo, continuei praticando minha arte. Escrevi peças, romances e filmes. Criei roteiros de longas-metragens, programas de TV e contos. Escrevi poesias e fiz até arte performática. Com meu curso, eu mesma aprendi a usar novas ferramentas criativas, produzi mais artigos sobre criatividade e, atendendo à insistência do meu amigo Mark Bryan, reuni o material usado nas aulas para transformá-lo em livro.
Em certo momento, Mark e eu nos sentamos lado a lado para imprimir e organizar os textos que fariam parte do livro que eu enviaria a quem precisasse de ajuda. Nesse processo artesanal, nós o enviamos pelo correio para umas mil pessoas, que por sua vez fizeram cópias e as repassaram aos amigos. Começamos a ouvir histórias incríveis de recuperação: pintores voltando a pintar, atores voltando a atuar, diretores voltando a dirigir e pessoas comuns ouvindo um chamado inesperado. Algumas tiveram revelações súbitas e outras passaram por um despertar mais lento.
Jeremy P. Tarcher, um editor muito conhecido na área de criatividade e potencial humano, leu um esboço do livro e decidiu publicá-lo. Organizei-o como um programa de 12 semanas – cada seção lidando com um tema específico. Este livro que você tem nas mãos é o resultado de 12 anos de prática como professora e 20 fazendo arte nas mais diversas formas. No início, chamei-o de Healing the Artist Within (Curando o artista que há dentro de você). Por fim, depois de muita reflexão, decidi chamá-lo apenas de O caminho do artista. O livro explicava e explorava a criatividade como uma questão espiritual. Passei a testemunhar meus próprios milagres.
Eu viajava muito para dar aulas e divulgar o livro, e nas sessões de autógrafo e outras aparições públicas comecei a ser presenteada com CDs, livros, vídeos e cartas transmitindo mensagens como: “Usei seus métodos e criei isto. Muito obrigado!” O elogio mais frequente era: “Seu livro mudou a minha vida.” E eu ouvia isso tanto de artistas desconhecidos quanto de famosos, tanto em cidades pequenas quanto em metrópoles. Usando as ferramentas que lhes apresentei, pintores superaram o bloqueio e foram selecionados para exibir sua obra em grandes exposições. Escritores que haviam parado de escrever voltaram a criar e chegaram a receber prêmios Emmy ou Grammy por seu trabalho. Eu me sentia humilde diante do poder de Deus, o Grande Criador, capaz de restaurar a força, a vitalidade e a inspiração de caminhos criativos tão individuais, diversos e divergentes. Uma mulher de 50 e poucos anos, escritora com bloqueio criativo, acabou se tornando uma dramaturga premiada. Um músico que passara muitos anos apenas como instrumentista de apoio de outras bandas concebeu e executou um álbum solo considerado uma obra-prima. Sonhos antigos começaram a florescer em todo lugar que o Grande Criador tocava com sua mão de jardineiro. Recebi agradecimentos que deveriam ser dirigidos mais apropriadamente a Deus. Servi apenas como um canal para revelar que Ele ama os artistas e ajuda aqueles que se abrem à criatividade.
De artista a artista, de mão em mão, O caminho do artista começou a se espalhar. Soube de grupos criativos que se formaram nas florestas do Panamá, no interior da Austrália e na redação do The New York Times. Nos preceitos criativos deste livro, grupos druidas, sufis e budistas encontravam algo em comum. Com a internet, formaram-se grupos de discussão ou, como eu os chamo, “aglomerados”, que eram como grandes plantações que se expandiam até a Inglaterra, a Alemanha e depois a Suíça, com integrantes de um grupo de estudos junguiano. Assim como a vida, O caminho do artista, que passou a ser chamado de “movimento”, avançou de forma obstinada e voraz. Proliferaram artistas que ajudavam uns aos outros. Obras de arte surgiram e carreiras decolaram e se consolidaram. Fui uma feliz testemunha de tudo isso.
Soubemos que o livro estava sendo usado em hospitais, presídios, universidades, centros de desenvolvimento do potencial humano e, muitas vezes, por terapeutas, médicos, grupos de portadores do vírus HIV e programas de assistência a mulheres vítimas de violência doméstica. Isso sem falar em estúdios de artes plásticas, seminários de teologia, conservatórios de música. Com base no boca a boca, o livro era passado de mão em mão, de coração a coração, de artista a artista, como medida de primeiros socorros. Como um jardim milagroso, ele continuou crescendo. E ainda cresce. Há pouco tempo recebi pelo correio um livro recém-publicado por um leitor meu, junto com uma carta de agradecimento.
Desde que foi publicado pela primeira vez, em 1992, O caminho do artista foi traduzido para 20 idiomas, sendo ensinado e recomendado em toda parte – de jornais de grande circulação a museus, de institutos sem fins lucrativos a estúdios musicais. Grupos de leitores se reúnem em igrejas e centros de cura, da América Central ao deserto australiano. Já falei que muitos psicólogos usam meu livro em terapias de grupo? É verdade. As pessoas são “curadas” porque a criatividade é saudável – e, ao praticá-la, elas alcançam seu eu superior. Todos somos maiores do que podemos conceber.
Eu queria que O caminho do artista fosse como o programa dos 12 passos dos Alcoólicos Anônimos, praticamente sem líderes, autodidata, crescendo mediante a ausência de um controle central, expandindo-se por meio de uma série natural de avaliações pessoais. Meu lema era: “O processo irá proteger, guiar e corrigir a si mesmo contra abusos.”
Quando ultrapassamos a marca de 1 milhão de exemplares vendidos, meu receio era não ter mais o tempo e a privacidade necessários para criar minha arte, pois sem essa experiência pessoal eu não poderia continuar ajudando os outros. Como eu conseguiria escrever um novo livro sem ter nenhuma ideia nova a ensinar? Pouco a pouco, me recolhi à solidão do meu laboratório pessoal de criatividade – o local silencioso e tranquilo dentro de mim onde posso criar e aprender com essa prática. Cada obra minha me ensinou o que eu deveria ensinar aos outros. Cada ano que trabalhei me ensinou que a criatividade era uma obra aberta. Não havia limite, embora o crescimento se desse de forma lenta. A fé era um ingrediente necessário.
Comecei a escrever livros curtos e específicos com a intenção de desarmar os perigos reais que cercam quem tenta levar uma vida criativa saudável e tranquila. Escrevi The Right to Write (O direito de escrever), Supplies (Suprimentos) e outros guias mais singelos, como The Artist’s Date Book (O caderno de notas do artista), The Artist’s Way – Morning Pages Journal (O caminho do artista – páginas matinais), além de livros de orações criados para transmitir segurança e bem-estar a quem desbrava o caminho criativo. Embora a arte seja um caminho espiritual, é melhor trilhá-lo com outros peregrinos. As pessoas escutaram minha mensagem.
Quanto a mim, um romance, uma coletânea de crônicas e três peças de teatro se materializaram enquanto eu publicava 17 livros de não ficção e continuava dando aulas. Meus alunos ganharam prêmios, e eu também. A revista Utne Reader considerou O caminho do artista uma obra-prima e meus livros continuaram aparecendo nas listas de mais vendidos no mundo inteiro.
As coisas aconteceram tão rápido que me senti atordoada, confusa e sobrecarregada. Chega a ser irônico que um escritor experiente tenha cada vez mais dificuldade para seguir sua inclinação natural: sentar-se sozinho para escrever por horas a fio.
Nesse momento, minhas páginas matinais foram uma fonte valiosa e permanente de orientação. Elas me aconselhavam a ficar sozinha comigo mesma e também a buscar a companhia de outros artistas que, como eu, acreditavam estar sendo guiados pelo Grande Criador. Poderes superiores estão à nossa disposição sempre que precisamos de auxílio. Devemos estar sempre prontos a pedir ajuda, ter a mente aberta e estar dispostos a acreditar, apesar de todas as dúvidas. A criatividade é um ato de fé, e precisamos ser leais a essa fé, estar dispostos a compartilhá-la para ajudar os outros e para receber ajuda em troca.
Da minha janela, diante do rio Hudson, avisto uma grande ave voando alto. Faz dias que vejo essa ave enfrentando os ventos furiosos que formam uma corrente ao redor da ilha de Manhattan. É grande demais para ser um falcão e não parece uma gaivota. Mais ao norte, o vale do Hudson está repleto de águias. Mal posso acreditar que estou vendo uma agora, mas ela parece saber exatamente que é uma águia. Ela não diz o seu nome. Ela o representa. Talvez, na condição de artistas, sejamos como esses pássaros, confundidos por nós mesmos e pelos outros, como se pertencêssemos a outra espécie, sendo levados pela corrente dos nossos sonhos, caçando nos desfiladeiros do comércio algo que enxergamos do alto. Para os artistas, usar as asas e fazer uma oração são procedimentos de rotina. Precisamos confiar no nosso processo e olhar muito além dos resultados.
Ao longo dos séculos, os artistas falaram muito sobre inspiração, acreditando que Deus ou algum anjo se comunicava com eles. Na nossa era, é raro que alguém ainda fale da arte como uma experiência espiritual. Mesmo assim, a experiência central da criatividade é mística. Ao abrir a alma para o que deve ser feito, encontramos o autor de toda a Criação.
Artistas trabalham duro. Temos uma devoção monástica à nossa obra. Assim como os monges, alguns de nós terão visões grandiosas e outros trabalharão pelo resto de seus dias vendo a glória de longe, ajoelhados na capela. Por isso, oramos. A fama virá para alguns. A honra visitará todos os que se esforçam. Como artistas, vivenciamos o fato de que Deus está nos detalhes. Realizando nossa arte, levamos uma vida artística. E, levando uma vida artística, somos tocados pela mão do Criador.