PRÓLOGO
O TRAUMA
Ninguém precisa ter combatido no front ou visitado um campo de refugiados na Síria ou no Congo para se ver diante do trauma. Acontece com a gente, com nossos amigos, parentes e vizinhos. Pesquisas de Centros de Controle e Prevenção de Doenças já mostraram que um entre cinco americanos sofreu abuso sexual na infância; que um entre quatro apanhou de um dos pais a ponto de ter ficado com marcas no corpo; e que a violência física é a realidade de um em cada três casais. Um quarto dos americanos cresceu junto de parentes com problemas de alcoolismo, e um entre oito viu a mãe ser espancada ou agredida.1
O ser humano pertence a uma espécie com extrema capacidade de adaptação. Desde o começo dos tempos nos recuperamos de guerras constantes, de desastres incontáveis (naturais ou provocados), da violência e da traição em nossa vida pessoal. Entretanto, as experiências traumáticas deixam marcas, seja em grande escala (na história dos países e nas culturas), seja em nossos lares e famílias, com seus segredos tenebrosos que passam de uma geração a outra. Também imprimem marcas na mente, nas emoções, na capacidade de desfrutar de alegrias e prazeres, e até no sistema biológico e imunológico.
O trauma afeta não só as pessoas que o sofreram diretamente como também as que as rodeiam. Soldados que voltam do front podem deixar a família assustada com crises de fúria e vazio emocional. Mulheres casadas com homens acometidos de transtorno de estresse pós-traumático (tept) costumam ter depressão. Os filhos de mães deprimidas correm o risco de crescer inseguros e ansiosos. Uma criança exposta à violência familiar encontrará, na vida adulta, dificuldade para estabelecer relacionamentos estáveis e baseados na confiança.
Por definição, o trauma é insuportável e intolerável. As vítimas de estupro, os soldados que estiveram em combate, assim como as crianças molestadas sexualmente, em sua maioria, ficam tão perturbados ao refletir sobre suas experiências que tentam expulsar essas lembranças da mente e ir em frente como se nada tivesse acontecido. É preciso uma energia tremenda para levar uma vida normal e, ao mesmo tempo, carregar a memória do terror e a vergonha da absoluta fraqueza e vulnerabilidade.
Embora todos desejem deixar o trauma para trás, a parte do cérebro dedicada a garantir a sobrevivência (situada abaixo do cérebro racional) não lida muito bem com a negação. Uma experiência traumática pode se reativar ao menor sinal de perigo, mesmo muito tempo depois de ela ter acontecido, mobilizando circuitos cerebrais prejudicados e produzindo uma quantidade absurda de hormônios do estresse. Surgem então emoções desagradáveis, sensações físicas intensas e ações impulsivas e agressivas. Tais reações pós-traumáticas se mostram incompreensíveis e avassaladoras. Sentindo-se descontroladas, com frequência as pessoas acreditam sofrer de lesões profundas e irreversíveis.
Lembro-me da primeira vez que pensei em estudar medicina: eu tinha uns 14 anos e estava numa colônia de férias. Passei a noite inteira acordado, ouvindo as explicações do meu primo Michel sobre a complexidade do funcionamento dos rins, o modo como eles secretam os refugos do corpo e, depois, reabsorvem as substâncias químicas que mantêm o equilíbrio do organismo. Fiquei hipnotizado por aquela exposição da forma milagrosa como o corpo funciona. Tempos depois, ao longo de todas as fases da minha formação médica, estivesse eu estudando cirurgia, cardiologia ou pediatria, sempre pensei que a chave para a cura estava em entender como o organismo humano funciona. Quando comecei a estudar psiquiatria, porém, fiquei impressionado com o contraste entre, de um lado, a incrível complexidade da mente e as maneiras como os seres humanos se conectam e se associam uns aos outros, e, do outro, como os psiquiatras sabiam tão pouco a respeito das origens dos problemas que tratavam. Será que um dia seria possível conhecer o cérebro, a mente e o amor tão bem como conhecemos os demais sistemas que constituem nosso organismo?
É evidente que ainda estamos a anos-luz desse conhecimento minucioso, mas três novas áreas científicas permitiram uma explosão de informações sobre os efeitos do trauma psicológico, dos maus-tratos e da negligência. Essas disciplinas recentes são a neurociência, que estuda como o cérebro respalda os processos mentais; a psicopatologia do desenvolvimento, dedicada ao impacto de experiências adversas sobre o desenvolvimento da mente e do cérebro; e a neurobiologia interpessoal, voltada para a influência do nosso comportamento sobre as emoções, a biologia e a mentalidade das pessoas com quem convivemos.
Pesquisas sobre essas novas disciplinas revelaram que o trauma provoca mudanças fisiológicas reais, entre as quais a reconfiguração do sistema de alarme do cérebro, o aumento da atividade dos hormônios do estresse e alterações no sistema que separa as informações importantes das irrelevantes. Sabemos que o trauma compromete a área cerebral que transmite a sensação física, corpórea, de estar vivo. Essas mudanças explicam por que pessoas traumatizadas se tornam hipervigilantes em relação a ameaças, mesmo que isso venha a prejudicar a espontaneidade em sua rotina diária. Também nos ajudam a entender por que as vítimas passam repetidas vezes pelos mesmos problemas e têm tanta dificuldade de aprender com a experiência. Sabemos agora que essas condutas não decorrem de deficiências morais nem indicam pouca força de vontade ou má índole – são produto de mudanças reais no cérebro.
Essa expansão de conhecimento dos processos básicos que definem o trauma também abriu novas possibilidades para atenuar ou até reverter o dano. Agora podemos criar métodos e fazer experimentos com base na neuroplasticidade natural do cérebro para ajudar os sobreviventes a se sentirem plenamente vivos no presente e tocarem a vida. Em essência, são três os caminhos: 1) de cima para baixo, através da conversa, (re)fazendo o contato com outras pessoas e nos permitindo conhecer e compreender o que está acontecendo conosco, ao mesmo tempo que as lembranças do trauma são processadas; 2) uso de medicamentos que impedem reações de alarme impróprias, ou utilização de outras tecnologias que alteram o modo como o cérebro organiza as informações; e 3) de baixo para cima, permitindo que o corpo tenha experiências que respondam de maneira profunda e visceral à impotência, à raiva ou ao colapso resultantes do trauma. Qual é o melhor caminho para determinado sobrevivente? Essa é uma questão resolvida na prática. A maioria dos pacientes com quem trabalhei se beneficia de uma combinação dos três.
Esse tem sido o trabalho da minha vida. Nessa atividade, tenho contado com a colaboração de colegas e alunos no Trauma Center, que fundei há trinta anos. Juntos, tratamos milhares de crianças e adultos traumatizados: vítimas de abuso infantil, desastres naturais, guerras, acidentes e tráfico de pessoas; vítimas de agressões de conhecidos ou estranhos. As equipes terapêuticas se reúnem toda semana para discutir em detalhes os casos de cada paciente e acompanhar com a máxima atenção como os diferentes tratamentos funcionam para cada um.
Nossa principal missão tem sido cuidar dessas crianças e adultos, mas desde o começo também nos dedicamos à pesquisa dos efeitos do estresse traumático nas mais variadas populações e a determinar qual abordagem é melhor para cada indivíduo. Para estudar a eficácia das muitas formas de tratamento, que vão da prescrição de medicamentos à terapia pela palavra, à ioga, à dessensibilização e ao reprocessamento por movimentos oculares (Eye Movement Desensitization and Reprocessing, EMDR), ao teatro e ao neurofeedback (também chamado retroinformação neurológica), temos sido apoiados por verbas de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde Mental (National Institute of Mental Health, nimh), do Centro Nacional de Medicina Complementar e Alternativa, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention, CDC) e de inúmeras fundações privadas.
Como as pessoas poderiam administrar os resquícios de traumas passados e voltar a ter controle sobre a própria vida? A terapia pela palavra, a compreensão e o contato com outras pessoas ajudam, enquanto os medicamentos podem amortecer sistemas de alarme hiperativos. No entanto, vemos também que as marcas do passado podem se transformar mediante experiências físicas que combatem diretamente a impotência, a raiva e o colapso inerentes ao trauma, e assim levam a pessoa a recuperar o autodomínio. Não tenho preferência por nenhuma modalidade em particular, uma vez que nem toda abordagem serve para todo mundo, e utilizo todas as variantes que menciono. Cada uma delas pode produzir mudanças profundas, a depender da natureza do problema e da constituição da pessoa.
Este livro é um guia e um convite – um convite para enfrentar a realidade do trauma, explorar a melhor forma de tratá-lo e, como sociedade, empregar todos os meios disponíveis para evitá-lo.
PARTE I
A REDESCOBERTA DO TRAUMA
LIÇÕES APRENDIDAS COM VETERANOS DO VIETNÃ
Tornei-me o que sou hoje aos 12 anos, num dia gelado e nublado no verão de 1975 […]. Isso foi há muito tempo, mas o que dizem sobre o passado está errado […]. Hoje compreendo que estive olhando para aquele beco deserto durante os últimos 26 anos.
Khaled Hosseini, O caçador de pipas
A vida de algumas pessoas parece fluir numa narrativa; a minha teve muitas interrupções e recomeços. É o que um trauma faz. Ele interrompe o enredo […]. Ele apenas acontece, e depois a vida continua. Ninguém prepara você para isso.
Jessica Stern, Denial: A Memoir of Terror
O dia seguinte ao feriado de 4 de Julho de 1978, uma terça-feira, foi minha estreia como psiquiatra da clínica da Administração de Veteranos (AV) em Boston. No momento em que pendurava na parede uma reprodução de A parábola dos cegos, meu quadro predileto de Bruegel, escutei uma balbúrdia na área de recepção, no fim do corredor. Dali a pouco, irrompeu na minha sala um homenzarrão desgrenhado, com o paletó todo manchado e um exemplar da revista Soldier of Fortune debaixo do braço. Estava tão agitado e numa ressaca tão óbvia que fiquei me perguntando o que poderia fazer por aquele brutamontes. Ofereci-lhe uma cadeira e me coloquei à disposição.
Seu nome era Tom. Dez anos antes servira no Corpo de Fuzileiros Navais e combatera no Vietnã. No dia anterior havia se entocado em seu escritório de advocacia no centro de Boston, bebendo e vendo fotos antigas, em vez passar o feriado com a família. A experiência de anos anteriores lhe mostrara que o barulho, os fogos de artifício, o calor e o piquenique no quintal da irmã, além do entorno coberto pela folhagem densa do começo do verão, o deixariam louco – tudo isso lhe fazia lembrar o Vietnã. Nessas ocasiões tinha medo de ficar perto da mulher e dos dois filhos pequenos, pois se comportava como um monstro. O alvoroço dos meninos o deixava tão agitado que ele saía de casa para evitar agredi-los. Só se acalmava bebendo até desmaiar ou pegando a estrada com sua Harley-Davidson em alta velocidade.
A noite não lhe trazia alívio, pois o sono era constantemente interrompido por pesadelos que reviviam uma emboscada num arrozal, quando todos os integrantes de seu pelotão foram mortos ou feridos. Visões aterrorizadoras de crianças vietnamitas mortas também lhe assomavam à lembrança. Os pesadelos eram tão horríveis que ele tinha medo de adormecer e preferia ficar acordado a maior parte da noite, com uma garrafa ao lado. De manhã, a mulher o encontrava chapado no sofá da sala, e todos tinham de caminhar na ponta dos pés enquanto ela preparava o café antes de levar os meninos à escola.
Tom me contou que havia concluído o ensino médio em 1965, e que fora o orador da turma. Como vinha de uma família de militares, alistou-se no Corpo de Fuzileiros Navais logo depois de concluir os estudos. Na Segunda Guerra Mundial, seu pai serviu na tropa do general Patton, e o filho nunca questionou as expectativas do pai em relação a ele. Atlético, inteligente, um líder nato, sentiu-se poderoso e competente ao terminar o treinamento básico, integrando uma equipe preparada para qualquer coisa. No Vietnã, ele logo tomou a frente do pelotão, no comando de outros oito fuzileiros. Sobreviver ao fogo de metralhadoras inimigas enquanto se avança em meio à lama pode deixar a pessoa muito orgulhosa de si – e de seus camaradas.
Terminado o tempo de serviço, Tom deu baixa com honras, e tudo o que desejava era esquecer o Vietnã. Aparentemente, foi o que fez. Matriculou-se numa faculdade de direito, aproveitando os benefícios garantidos em lei para veteranos de guerra. Depois da formatura, se casou com a namorada do colégio, com quem teve dois filhos. Incomodava-o a dificuldade de experimentar uma afeição real pela esposa, ainda que as cartas dela o tivessem mantido vivo na loucura da selva. Simulava levar uma vida normal, na esperança de que, procedendo assim, conseguiria voltar a ser o homem que havia sido. Tinha um escritório bem-sucedido e uma família aparentemente perfeita, como as dos comerciais de margarina. Mas ele percebia que nem tudo estava normal. Por dentro, sentia-se morto.
Embora Tom fosse o primeiro veterano com que me deparava em minha vida profissional, muitos aspectos de sua história me eram familiares. Fui criado na Holanda, depois da Segunda Guerra, brincando em prédios bombardeados e tendo como pai um homem que fora opositor do nazismo de forma tão veemente que acabou enviado a um campo de concentração. Meu pai nunca falava sobre suas experiências de guerra, mas era dado a explosões de cólera que me deixavam atônito. Como era possível que o homem que eu ouvia descer a escada em silêncio, toda manhã, para orar e ler a Bíblia, enquanto o resto da família dormia, tivesse temperamento tão aterrador? Como alguém cuja vida era dedicada à busca de justiça social se deixava dominar por tamanha fúria? Eu identificava esse mesmo comportamento em meu tio, que, capturado pelos japoneses nas Índias Orientais Holandesas (hoje Indonésia), fora sentenciado a trabalhos forçados na Birmânia, onde participou da construção da famosa ponte sobre o rio Kwai. Tal como meu pai, ele quase nunca mencionava a guerra; e, com frequência, também era tomado por acessos de raiva incontroláveis.
Enquanto escutava o relato de Tom, eu me perguntava se meu tio e meu pai haviam tido pesadelos e flashbacks – se eles também se sentiam distanciados dos entes queridos e incapazes de encontrar prazer autêntico na vida. Em algum lugar no fundo da minha memória devia haver lembranças – muitas vezes apavorantes – de minha mãe assustada. Ela mesma mencionava, vez por outra, os próprios traumas de infância, que, acredito hoje, retornavam com frequência. Minha mãe tinha o hábito enervante de desmaiar quando eu lhe perguntava a respeito de sua vida de menina, e depois me acusava de deixá-la angustiada.
Tranquilizado por meu evidente interesse, Tom se dispôs a me explicar seu pavor e sua confusão. Tinha medo de estar ficando como o pai, que, sempre zangado, raramente conversava com os filhos – a não ser quando os comparava, de maneira desfavorável, aos companheiros que haviam morrido no final de 1944, na Batalha das Ardenas, na Bélgica.
À medida que a consulta chegava ao fim, fiz o que os médicos em geral fazem, ou seja, concentrei-me na única parte da história que eu julgava entender: os pesadelos. No curso de medicina, eu havia trabalhado num laboratório de sono, observando ciclos de sono e sonhos de pessoas, e colaborara na redação de alguns artigos sobre pesadelos. Também havia participado de pesquisas preliminares sobre os efeitos benéficos das substâncias psicoativas que começavam a ser usadas na década de 1970. Por isso, embora não tivesse uma ideia perfeita da extensão dos problemas de Tom, os pesadelos eram algo com que eu podia lidar, e, entusiasta da possibilidade de oferecer uma vida melhor por meio da química, prescrevi-lhe uma droga que julgávamos eficiente na redução da incidência e severidade de pesadelos. Marquei outro encontro para dali a duas semanas.
Nessa nova consulta, ansioso, logo quis saber qual fora o efeito do remédio. Tom disse que não tinha tomado nenhum comprimido. Procurando ocultar minha irritação, perguntei-lhe por quê. “Se eu tomar os comprimidos e os pesadelos sumirem”, ele respondeu, “estarei abandonando meus amigos, e a morte deles terá sido em vão. Preciso ser um monumento vivo para meus companheiros que morreram no Vietnã.”
Fiquei estupefato. A lealdade de Tom aos mortos o impedia de viver a própria vida. Era igual à devoção do pai aos amigos, que havia impedido que ele aproveitasse a vida. As experiências do pai e do filho em campos de batalha tornaram irrelevantes o resto da vida deles. Como isso acontecera? O que podíamos fazer? Naquela manhã, compreendi que talvez passaria minha vida profissional tentando desvendar os mistérios do trauma. Como experiências horrendas levam as pessoas a permanecerem irremediavelmente presas ao passado? O que acontece na mente e no cérebro de certas pessoas que as mantêm congeladas, confinadas num local de onde querem desesperadamente fugir? Por que a guerra desse homem não terminou em fevereiro de 1969, quando os pais o abraçaram no Aeroporto Internacional Logan, em Boston, depois do longo voo de volta de Da Nang?
A necessidade de Tom de fazer de sua vida uma homenagem aos companheiros me mostrou que seu problema era muito mais complexo do que ter lembranças ruins ou uma disfunção na química cerebral – ou uma alteração dos circuitos cerebrais do medo. Antes da emboscada no arrozal, ele fora um amigo dedicado e leal, um homem que desfrutava a vida, com muitos interesses e prazeres. Num momento de pavor, o trauma transformara tudo.
Durante o tempo em que trabalhei na AV, conheci muitos veteranos que reagiam da mesma maneira. Mesmo diante de frustrações menores, aqueles homens podiam ser dominados por acessos repentinos de fúria extrema. As áreas comuns da clínica apresentavam marcas dos murros que eles desferiam nas divisórias, e frequentemente os guardas eram obrigados a proteger as recepcionistas e os representantes das companhias de seguro da cólera de pacientes enfurecidos. O comportamento deles nos amedrontava, é claro, mas também me intrigava.
Em casa, minha mulher e eu enfrentávamos problemas parecidos com nossos filhos pequenos, tomados de acessos de raiva quando os mandávamos comer espinafre ou calçar meias mais grossas. Por que a conduta imatura de meus filhos não me aborrecia, enquanto me preocupava tanto o que acontecia com os veteranos (além do tamanho dos ex-combatentes, que lhes conferia potencial de causar muito mais estragos do que meus garotinhos)? Eu tinha certeza absoluta de que, com cuidado e carinho, os meninos aprenderiam a aceitar frustrações e desapontamentos, mas não acreditava que eu pudesse ajudar os veteranos a readquirir a capacidade de autocontrole e contenção que tinham perdido na guerra.
Infelizmente, nada em minha formação psiquiátrica me preparara para lidar com os problemas apresentados por Tom e outros veteranos. Fui à biblioteca da av em busca de livros sobre neurose de guerra, estado de choque, fadiga de combate ou qualquer outra terminologia ou diagnóstico que esclarecesse os dramas de meus pacientes. Para minha surpresa, a biblioteca não tinha um só livro a respeito de qualquer um desses problemas. Cinco anos depois que o último americano havia deixado o Vietnã, ninguém estava interessado na questão do trauma de guerra. Por fim, na Biblioteca Countway, na Escola de Medicina de Harvard, descobri The Traumatic Neuroses of War (Neuroses traumáticas de guerra), publicado em 1941 pelo psiquiatra Abram Kardiner. O livro, que descrevia as observações do autor a respeito de veteranos da Primeira Guerra Mundial, foi lançado devido à expectativa do surgimento de um grande número de soldados traumatizados pela Segunda Guerra Mundial.1
Kardiner relatava os mesmos fenômenos que eu estava presenciando. Depois da guerra, seus pacientes foram dominados por uma sensação de inutilidade; tornaram-se alheios e silenciosos, quando antes tinham um comportamento normal. O que ele chamava de “neuroses traumáticas” agora era classificado como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Kardiner notara que as vítimas de neuroses traumáticas desenvolviam uma vigilância crônica em relação a ameaças, às quais eram altamente sensíveis. Sua síntese atraiu minha atenção: “O núcleo da neurose é uma fisioneurose.”2 Em outras palavras, nem todo estresse pós-traumático “está na cabeça da pessoa”, como supunham alguns: pode ter uma base fisiológica. Já naquela época o autor entendera que os sintomas têm origem na resposta de todo o corpo ao trauma original.
O livro corroborava minhas próprias observações, o que era tranquilizador, mas pouco orientava sobre a melhor forma de ajudar os veteranos. A carência de literatura sobre o assunto era um obstáculo, porém meu grande professor, Elvin Semrad, nos ensinara a sermos céticos quanto a compêndios. Só havia um compêndio real, ele dizia: os pacientes. Devíamos confiar apenas no que pudéssemos aprender com eles – e em nossa experiência. Pode parecer muito simples, mas se Semrad nos estimulava a confiar no conhecimento adquirido na prática, também nos advertia sobre a dificuldade desse processo, já que as pessoas são extremamente hábeis na arte do autoengano e de obscurecer a verdade. Lembro de ouvi-lo dizer: “As maiores fontes do sofrimento humano são as mentiras que contamos para nós mesmos.” Trabalhando na AV, logo descobri como pode ser doloroso enfrentar a realidade. Valia tanto para meus pacientes como para mim.
Não queremos saber o que os soldados passam em combate. Na verdade, não queremos nem saber quantas crianças estão sendo molestadas ou sofrendo abusos em nossa sociedade, ou quantos casais – quase um terço, como se sabe – usam de violência em algum ponto de seu relacionamento. Queremos ver a família como um abrigo seguro num mundo impiedoso e acreditar que nosso país é povoado por pessoas esclarecidas e civilizadas. Preferimos pensar que a crueldade só ocorre em lugares distantes. Se é difícil testemunhar cenas de dor, por que nos espantamos que as próprias vítimas de traumas não suportem recordá-los e que muitas vezes recorram a drogas, ao álcool ou à automutilação para bloquear suas lembranças?
Tom e outros veteranos foram meus primeiros mestres na tentativa de compreender como experiências devastadoras destroem vidas e descobrir o que fazer para que as vítimas possam se sentir plenamente vivas de novo.
O TRAUMA E A PERDA DO SELF
No primeiro estudo que fiz na AV, eu perguntava aos veteranos o que lhes havia acontecido no Vietnã. Queria saber o que os empurrara ladeira abaixo e por que alguns tinham sido destruídos, enquanto outros haviam conseguido levar a vida adiante.3 Os homens que entrevistei, em sua maioria, tinham ido para a guerra com a sensação de que estavam bem preparados, unidos pelos rigores do treinamento básico e pelo perigo comum. Mostravam fotografias das famílias e das namoradas, toleravam os defeitos, uns dos outros. E estavam dispostos a arriscar a vida pelos companheiros. Boa parte confiava seus maiores segredos a um amigo, e alguns chegavam a compartilhar camisas e meias.
Muitos daqueles homens eram amigos, como Tom e Alex. Tom tinha conhecido Alex, um rapaz de família italiana de Malden, Massachusetts, em seu primeiro dia no Vietnã, e no mesmo instante se tornaram amigos. Usavam o mesmo jipe, ouviam as mesmas músicas e um lia as cartas que o outro recebia de casa. Bebiam juntos e saíam com as mesmas garotas vietnamitas.
Uma tarde, cerca de três meses depois de chegarem ao Vietnã, pouco antes do pôr do sol, Tom liderava seu pelotão, que fazia patrulha num arrozal. De repente, soaram tiros que vinham da muralha verde da selva ao redor, e, um a um, os homens que o rodeavam foram abatidos. Ele me contou que assistiu, horrorizado e sem nada poder fazer, a todos os membros de seu pelotão serem mortos ou feridos em questão de segundos. Uma imagem jamais lhe saiu da memória: a nuca de Alex, caído de bruços no arrozal e com os pés no ar. Tom chorava ao narrar a cena: “Ele foi o único amigo de verdade que tive.” À noite, naquele mesmo dia, Tom continuava a ouvir os gritos de seus homens e a ver os corpos afundando na água do arrozal. Todo som, cheiro ou imagem que lhe lembrasse a emboscada (como o estalar de fogos no 4 de Julho) o deixava tão paralisado, aterrorizado e furioso como no dia em que o helicóptero o resgatara do arrozal.
A lembrança do que aconteceu em seguida talvez fosse ainda pior do que as recordações recorrentes da emboscada. Não tive dificuldade em entender como a raiva pela morte do amigo conduziu Tom à desgraça que se sucedeu. Demorou alguns meses para que Tom superasse a vergonha paralisante e conseguisse me contar. Desde o início dos tempos, guerreiros, como Aquiles, na Ilíada, de Homero, reagiram à morte dos camaradas com indescritíveis atos de vingança. No dia seguinte ao da emboscada, Tom, desvairado, foi a uma aldeia próxima, matou crianças, atirou num camponês inocente e estuprou uma vietnamita. Depois disso, foi impossível voltar plenamente à vida normal. Como você pode encarar a namorada e contar a ela que violentou com brutalidade uma moça? Ou ver seu filho ensaiar os primeiros passos sem se lembrar das crianças que assassinou? Tom vivenciou a morte de Alex como se uma parte dele tivesse sido destruída para sempre – aquela parte que era boa, honrada e confiável. O trauma, quer resulte de algum mal que a pessoa sofreu, quer decorra de algo que ela mesma fez, quase sempre dificulta a criação de intimidade. Depois de ter vivenciado tal monstruosidade, como reaprender a confiar em si mesmo ou em outra pessoa? Ou, em outros termos, como você consegue se entregar a um relacionamento íntimo depois de ter sido brutalmente violentado?
Tom comparecia às consultas com assiduidade. Eu me tornara uma tábua de salvação – o pai que ele nunca tivera, um Alex que houvesse sobrevivido à emboscada. É preciso reunir muita confiança e coragem para se permitir recordar. Uma das maiores dificuldades para as vítimas de trauma é confrontar a vergonha por seu comportamento durante um episódio traumático, quer esse comportamento se traduza em atos objetivos (como o soldado que comete atrocidades), quer não (como no caso de uma criança que tenta tranquilizar o abusador). Uma das primeiras pessoas a escrever a respeito desse fenômeno foi Sarah Haley, que trabalhava numa sala ao lado da minha na av. No artigo “When the Patient Reports Atrocities” (Quando o paciente relata atrocidades),4 de grande importância na formulação do diagnóstico de tept, ela discutiu a dificuldade quase intransponível de conversar sobre os atos horrendos frequentemente cometidos por soldados em combate – ou até de ouvi-los. Já é bastante difícil enfrentar o sofrimento infligido por outros, porém, no fundo, muitas vítimas de trauma sofrem ainda mais pela vergonha que sentem do que fizeram (ou não fizeram) naquelas circunstâncias. Eles se desprezam porque se sentiram apavorados, fragilizados, emocionados ou furiosos.
Anos depois me confrontei com um fenômeno semelhante em vítimas de abuso infantil: a maioria experimentava uma torturante vergonha de tudo o que fez para continuar a viver e manter uma ligação com quem abusou dela – sobretudo quando o abusador era alguém próximo, como tantas vezes acontece. O resultado pode ser, por parte de quem sofreu o abuso, uma dúvida quanto a seu papel: foi uma vítima ou um participante voluntário? E isso, por sua vez, acaba embaralhando a diferença entre amor e terror, dor e prazer. Voltarei a esse dilema no decorrer de todo o livro.
APATIA
Talvez o pior dos sintomas de Tom fosse a paralisia emocional. Ele queria, com todas as forças, amar a família, mas não conseguia evocar nenhum sentimento profundo por ela. Sentia-se emocionalmente distante de todos, como se o coração estivesse congelado e ele vivesse atrás de uma parede de vidro. Essa apatia se estendia também a ele mesmo. Na verdade, Tom não sentia nada, a não ser surtos episódicos de raiva e vergonha. Contou que mal se reconhecia quando se olhava no espelho ao fazer a barba. Ao ouvir sua voz defendendo uma causa no tribunal, buscava se observar à distância e pensava como aquele sujeito, parecido com ele e falando como ele, era capaz de desfiar argumentos tão persuasivos. Se ganhava uma causa, fingia estar satisfeito; se a perdia, era como se tivesse percebido a derrota iminente e se resignasse a ela. Embora fosse um advogado muito competente, sempre se sentia flutuando no espaço, sem objetivo ou direção.
A única válvula de escape para aliviar a sensação de falta de propósito era o envolvimento intenso num determinado processo. Ao longo da terapia, ele defendeu um mafioso acusado de homicídio. Durante o julgamento, esteve totalmente concentrado em formular uma estratégia para ganhar a causa, e foram muitas as ocasiões em que ficou acordado a noite toda, mergulhado numa atividade que realmente o empolgava. Era como estar em combate, ele dizia – estava plenamente vivo, e nada mais interessava.
Contudo, no momento em que ganhou a causa, Tom perdeu a energia e ficou novamente sem propósito. Voltaram os pesadelos, assim como os acessos de raiva – tão intensos que ele teve de se mudar para um hotel para não fazer mal à mulher e aos filhos. No entanto, estar sozinho também era aterrador, pois os demônios da guerra voltavam com força total. Tom procurava se manter ocupado, trabalhando, bebendo e se drogando – fazendo de tudo para evitar o confronto com seus demônios.
Tom vivia folheando edições da revista Soldier of Fortune, com a fantasia de se alistar como mercenário numa das muitas guerras em regiões da África. Naquela primavera, ele pegou a Harley-Davidson e saiu pela Kancamagus Highway, em New Hampshire. As vibrações, a velocidade e o perigo o ajudaram a se recompor, a ponto de poder deixar o quarto de hotel e voltar para a família.
A ORGANIZAÇÃO DA PERCEPÇÃO
Outro estudo que fiz na Administração de Veteranos, que começou como uma pesquisa sobre pesadelos, acabou explorando as modificações operadas pelo trauma na percepção e na imaginação das pessoas. Bill, ex-membro do serviço médico do Exército, que tinha participado de ações sangrentas no Vietnã dez anos antes, foi o primeiro a se inscrever nessa investigação. Ao dar baixa, ele havia se matriculado num seminário de teologia e fora designado para sua primeira paróquia, uma igreja congregacional num subúrbio de Boston. Tudo ia bem, até o nascimento de seu primeiro filho. Pouco depois do parto, a esposa, enfermeira, retomou o serviço. Ele ficaria em casa, trabalhando no sermão semanal, cumprindo outras obrigações paroquiais e tomando conta do bebê. Logo no primeiro dia o bebê se pôs a chorar e, de repente, Bill se viu inundado por imagens insuportáveis de crianças morrendo no Vietnã.
Bill precisou chamar a mulher e, em pânico, procurou a clínica. Disse que não parava de ouvir o choro de bebês e de ver imagens de rostos infantis queimados e ensanguentados. Meus colegas acreditavam que Bill estivesse psicótico, pois os livros da época afirmavam que alucinações auditivas e visuais eram sintomas de esquizofrenia paranoide. Os mesmos textos que ofereciam esse diagnóstico também propunham uma causa: talvez a psicose tivesse sido desencadeada porque Bill sentia que toda a afeição da mulher se voltava para o filho.
Ao chegar à área de internação naquele dia, vi Bill cercado por médicos preocupados, que se preparavam para lhe injetar um antipsicótico forte e mandá-lo para uma enfermaria isolada. Descreveram seus sintomas e pediram minha opinião. Como, num emprego anterior, eu havia trabalhado numa enfermaria especializada no tratamento de esquizofrênicos, percebi algo estranho naquele diagnóstico. Perguntei a Bill se podíamos conversar e, depois de ouvir sua história, parafraseei sem querer as palavras que Freud tinha dito a respeito de trauma em 1895: “Creio que este homem está sofrendo de lembranças.” Disse-lhe que procuraria ajudá-lo e, depois de lhe dar alguns remédios para controlar o pânico, perguntei se estaria disposto a voltar à clínica dali a alguns dias para participar da minha pesquisa sobre pesadelos.5 Ele concordou.
No estudo, os participantes eram submetidos a um teste de Rorschach.6 Ao contrário do que ocorre em testes que propõem perguntas objetivas, é quase impossível falsificar respostas no Rorschach – ele nos permite acompanhar como as pessoas geram uma imagem mental a partir de algo que, em essência, é um estímulo sem sentido: uma mancha de tinta. Como o ser humano é um produtor de significados, tendemos a criar algum tipo de imagem ou história com base nessas manchas, assim como fazemos quando, deitados num parque num dia de verão, observamos as nuvens que se movem no céu. O que as pessoas imaginam com base nessas manchas pode nos informar muito sobre o funcionamento de sua mente.
Ao ver o segundo cartão do teste, Bill exclamou, horrorizado: “Essa é a criança que vi morrer numa explosão no Vietnã. No meio vejo a carne queimada, as feridas e o sangue esguichando para todo lado.” Ofegando e com o suor escorrendo pela testa, Bill passava por uma crise de pânico semelhante à que o levara, inicialmente, à clínica da AV. Eu já havia ouvido descrições de flashbacks, mas aquela era a primeira vez que eu assistia a um deles. Naquele exato momento, em minha sala, Bill estava obviamente vendo as mesmas imagens, sentindo os mesmos cheiros e tendo as mesmas sensações físicas que experimentara originalmente. Dez anos depois de ter um bebê morto nos braços, Bill revivia o trauma ao ver uma mancha de tinta.
Testemunhar seu flashback me ajudou a compreender a agonia pela qual passavam os veteranos que eu tentava ajudar e contribuiu para que eu percebesse, mais uma vez, como era urgente encontrar uma solução. O fato traumático em si, por mais horrendo que fosse, tinha um começo, um meio e um fim, mas agora eu me dava conta de que os flashbacks podiam ser até piores. A vítima nunca sabe quando será atacada, quando a coisa começa ela não sabe se vai parar. Levei anos para aprender a tratar os flashbacks, e, nesse processo, Bill veio a ser um dos meus mais importantes orientadores.
Ao submeter 21 outros veteranos ao teste, a resposta foi consistente: dezesseis deles, diante do segundo cartão, reagiram como se estivessem experimentando um trauma de guerra. Esse cartão é o primeiro a ter cor, e muitas vezes provoca como resposta o chamado choque cromático. Os veteranos interpretavam a mancha com comentários como “Esses são os intestinos de meu amigo Jim depois que um morteiro o abriu ao meio” ou “É o pescoço de meu amigo Danny depois que uma granada arrancou a cabeça dele enquanto a gente almoçava”. Ninguém aludiu a monges dançando, borboletas esvoaçantes, motociclistas ou alguma das imagens corriqueiras, às vezes fantasiosas, que quase todo mundo vê.
Enquanto a maioria dos veteranos se mostrava muito perturbada com o que via, as reações dos outros cinco foram ainda mais alarmantes: eles ficaram mudos. Um deles disse: “Essas coisas não são nada, apenas manchas.” Sim, é claro, mas a reação humana normal a estímulos ambíguos consiste em usar a imaginação para enxergar algo neles.
Com esses testes descobrimos que pessoas traumatizadas têm a tendência de projetar seus traumas em tudo que as cerca, e têm dificuldade em decifrar o que ocorre à sua volta. Descobrimos também que o trauma afeta a imaginação. Os cinco homens que não viram nada nas manchas tinham perdido a capacidade de deixar a mente correr solta. No entanto, o mesmo acontecera com os outros dezesseis: ao ver naqueles cartões cenas do passado, eles não mostravam a flexibilidade mental que é a marca da imaginação. Continuavam fechados, tocando na mesma tecla.
A imaginação é absolutamente fundamental para a qualidade da vida. Ela nos permite abandonar a rotina do dia a dia – fantasiamos viagens, refeições exóticas, sexo, namoros e ter a última palavra numa discussão: tudo o que torna a vida interessante. Ela nos dá oportunidade de contemplar novas possibilidades – é uma alavanca fundamental para fazer com que esperanças se tornem realidade. Aciona a criatividade, alivia o tédio, realça os prazeres e enriquece os relacionamentos mais próximos. Quando as pessoas são arrastadas para o passado de modo compulsivo e constante, para a última vez em que sentiram um envolvimento intenso e emoções profundas, elas padecem de uma falha na imaginação, de uma perda da flexibilidade mental. Sem imaginação não há esperança, nenhuma possibilidade de antever um futuro melhor, nenhum lugar aonde ir, nenhuma meta a alcançar.
Os testes de Rorschach nos ensinaram também que as vítimas de trauma veem o mundo de uma maneira radicalmente diversa. Para a maioria das pessoas, um homem na rua é só um transeunte. No entanto, uma mulher que tenha sido vítima de estupro pode entrar em pânico ao identificá-lo como alguém capaz de molestá-la. Uma professora primária severa pode ser uma presença intimidante para qualquer criança, mas o garoto espancado pelo padrasto pode vê-la como uma torturadora, o que vai lhe provocar um ataque de fúria ou fazê-lo se encolher num canto, assustado.
O TRAUMA COMO PRISÃO
A clínica se encheu de veteranos em busca de ajuda psiquiátrica. Devido a uma escassez aguda de profissionais qualificados, só nos restava pôr a maioria deles numa lista de espera, ainda que continuassem a agredir a si mesmos e à família. Percebemos um nítido aumento de prisões de veteranos por delitos violentos e brigas em bares, bem como um número alarmante de suicídios. Criei, então, um grupo de jovens veteranos do Vietnã que serviria como uma espécie de “tanque de contenção” até que a terapia “real” pudesse começar.
Na reunião inicial com um grupo de ex-fuzileiros navais, o primeiro a se manifestar foi taxativo: “Não quero falar sobre a guerra.” Respondi que os participantes poderiam discutir sobre o que quisessem. Depois de meia hora de doloroso silêncio, um veterano começou enfim a discorrer sobre o desastre de seu helicóptero. Para meu espanto, na mesma hora os demais ganharam vida, falando com grande intensidade de suas experiências traumáticas. Todos voltaram na semana seguinte e na outra. No grupo, encontravam ressonância e sentido para o que antes não passava de sensações de terror e vazio. Voltavam a experimentar aquele companheirismo tão vital na época da guerra. Insistiam para que eu compartilhasse daquela irmandade recém-descoberta, e, no meu aniversário, me deram um uniforme de capitão dos fuzileiros. Em retrospecto, aquele gesto revelou parte do problema: ou você estava dentro ou estava fora – ou você pertencia à unidade ou não era ninguém. Depois do trauma, o mundo se divide nitidamente entre quem sabe e quem não sabe. As pessoas que não vivenciaram a experiência traumática não são dignas de confiança, pois não são capazes de compreendê-la. Infelizmente, essa exclusão muitas vezes abrange cônjuges, filhos e colegas de trabalho.
Mais tarde liderei outro grupo, dessa vez para veteranos da tropa de Patton – homens já bem entrados na casa dos 70, todos com idade suficiente para ser meu pai. Nossos encontros aconteciam toda segunda-feira, às oito da manhã. Em Boston, no inverno, vez por outra as tempestades de neve paralisam o sistema de transporte público, mas mesmo assim todos eles compareciam às reuniões mesmo tendo que caminhar muitos quilômetros pela neve. No Natal, eles me presentearam com um relógio de pulso usado pelos soldados na década de 1940. Tal como acontecera com meu grupo de fuzileiros navais, eu não poderia tratá-los se não me transformasse num deles.
Por mais tocantes que fossem as experiências, os limites da terapia de grupo ficaram claros quando pedi que falassem dos problemas que enfrentavam na vida diária: o relacionamento com as mulheres, os filhos, as namoradas e a família; a relação com os chefes e com o trabalho; o alcoolismo. Em geral, relutavam e desconversavam, contando mais uma vez o episódio em que haviam metido um punhal no coração de um soldado alemão na floresta de Hürtgen, ou como tinha sido a queda do helicóptero nas selvas do Vietnã.
A situação traumática podia ter acontecido dez ou mais de quarenta anos antes, não importava: eles não conseguiam transpor o fosso entre as experiências de guerra e a vida atual. Aquilo que lhes causava tanto sofrimento era também a única coisa que fazia sentido para eles. Só se sentiam plenamente vivos ao revisitar o passado traumático.
O DIAGNÓSTICO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO
Naquele tempo, os veteranos recebiam diversos diagnósticos – de alcoolismo, abuso de substâncias, depressão e transtorno de humor até esquizofrenia –, e tentávamos todos os tratamentos indicados nos manuais. Contudo, apesar do nosso esforço, obtíamos escassos resultados. A medicação prescrita, bastante forte, às vezes deixava os homens praticamente imprestáveis. Quando os incentivávamos a detalhar um fato traumático, em vez de ajudá-los a resolver o problema, muitas vezes, provocávamos um intenso flashback. Muitos abandonaram o tratamento, porque, além de não conseguirmos ajudar, só piorávamos a situação.
A mudança veio em 1980. Com a ajuda de dois psicanalistas de Nova York, Chaim Shatan e Robert J. Lifton, um grupo de veteranos do Vietnã conseguiu convencer a Associação Americana de Psiquiatria (AAP) a criar um novo diagnóstico: o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A identificação sistemática dos sintomas – que, em maior ou menor grau, eram comuns a todos os nossos veteranos – e seu agrupamento num transtorno, enfim, deu um nome ao sofrimento de pessoas destruídas pelo horror e pelo desespero. Uma vez instituído o quadro conceitual do TEPT, abria-se o caminho para uma mudança radical no modo como enxergávamos os pacientes, o que levou à multiplicação de pesquisas e experimentos para encontrar tratamentos eficazes.
Animado pelas possibilidades apresentadas por esse novo diagnóstico, propus à AV um estudo biológico das memórias traumáticas. As memórias das vítimas do TEPT eram diferentes das memórias de outros pacientes? No caso da maioria das pessoas, a lembrança de um fato desagradável acaba por se dissipar ou se transforma em algo mais positivo. No entanto, muitos de nossos pacientes não conseguiam transformar o passado numa história ocorrida muito tempo atrás.7
A primeira frase da carta de recusa da verba dizia: “Nunca se demonstrou que o TEPT seja relevante para a missão da Administração de Veteranos.” Algum tempo depois, a missão da AV se organizou em torno do diagnóstico de TEPT e de lesão cerebral, e passou a destinar recursos consideráveis em “tratamentos baseados em evidências” a veteranos de guerra traumatizados, mas naquela época a situação era diferente. Como eu não desejava trabalhar numa organização cuja visão da realidade ia de encontro à minha, pedi demissão. Em 1982, assumi um cargo no Centro de Saúde Mental de Massachusetts (CSMM), o hospital da Universidade de Harvard, onde havia feito minha formação. Fui lecionar em uma área então recente, a psicofarmacologia, a utilização de medicamentos para aliviar doenças mentais.
Em meu novo emprego, passei a enfrentar quase todos os dias questões que eu julgava ter deixado para trás na AV. Minha experiência com veteranos de guerra me sensibilizara de tal forma para o impacto do trauma que agora eu escutava com outros ouvidos as histórias de abuso sexual e violência doméstica que pacientes deprimidos e ansiosos me contavam. Impressionava-me, em particular, o número de pacientes do sexo feminino que relatavam ter sofrido abuso sexual na infância. Ora, o tratado de psiquiatria clássico na época afirmava que o incesto era raríssimo nos Estados Unidos – o número de casos era da ordem de um para 1 milhão de mulheres.8 Na época, a população feminina no país contava 100 milhões. Como, então, 47 mulheres, quase metade das vítimas, segundo o tratado, tinham ido parar no meu consultório?
Além disso, o manual afirmava: “Há pouca concordância em relação ao papel do incesto entre pai e filha como fonte de uma séria psicopatologia subsequente.” As pacientes que me narravam histórias de incesto não estavam de modo algum isentas de “psicopatologia subsequente” – encontravam-se profundamente deprimidas, confusas e, com frequência, tinham comportamentos bizarros e autodestrutivos, como cortar-se com giletes. E o tratado passava praticamente a endossar o incesto, explicando que “essa atividade incestuosa reduz a possibilidade de a paciente vir a sofrer de psicose e permite um melhor ajuste ao mundo externo”.9 Na verdade, o incesto tinha efeitos devastadores sobre o bem-estar das mulheres.
Em muitos aspectos, essas pacientes não eram tão diferentes dos veteranos que eu deixara na AV. Também sofriam de pesadelos e flashbacks. Elas também alternavam crises ocasionais de raiva explosiva com longos períodos de insensibilidade emocional. A maioria tinha enorme dificuldade em lidar com outras pessoas, além de problemas para manter relacionamentos sérios.
Como é sabido hoje, a guerra não é a única tragédia que arruína vidas humanas. Embora se estime que cerca de um quarto dos soldados que servem em zonas de guerra venha a desenvolver sérios problemas pós-traumáticos,10 a maioria dos americanos enfrenta um crime violento em algum momento da vida, e registros mais precisos revelam que 12 milhões de mulheres nos Estados Unidos foram estupradas. Mais da metade dos estupros tem como vítimas adolescentes com menos de 15 anos.11 Para muitas pessoas, a guerra começa em casa: a cada ano, cerca de 3 milhões de crianças no país são apontadas como vítimas de abuso e negligência. Desses casos, um milhão é grave o suficiente para que serviços municipais de proteção à infância ou tribunais intervenham.12 Em outras palavras, para cada soldado que serve numa zona de guerra no exterior, há dez crianças em situação de risco no próprio lar. Uma situação particularmente trágica pela dificuldade de os pequenos se recuperarem quando a fonte de terror e de dor não são soldados inimigos, mas seus próprios cuidadores.
UMA NOVA COMPREENSÃO
Nas três décadas transcorridas desde que conheci Tom, aprendemos não apenas a respeito do impacto e das manifestações do trauma, como também sobre como ajudar traumatizados a encontrar o caminho de volta. Nos primeiros anos da década de 1990, novas técnicas de obtenção de imagens cerebrais revelaram o que de fato acontece no cérebro de vítimas de trauma, o que foi essencial para compreender a extensão do dano e nos orientar na formulação de meios de cura inteiramente novos.
Entendemos como experiências arrasadoras afetam nossas sensações mais íntimas e nossa relação com a realidade física – o núcleo do que somos. Aprendemos que o trauma não é apenas um fato que ocorreu num momento do passado; é também a marca que essa experiência deixou na mente, no cérebro e no corpo. Marca com consequências duradouras na maneira como o organismo humano consegue sobreviver no presente.
O trauma provoca uma reorganização fundamental no processo do cérebro e da mente administrarem as percepções. Ele modifica não só o modo como pensamos e o que pensamos como a própria capacidade de pensar. Descobrimos que ajudar as vítimas a encontrar palavras para descrever o que lhes aconteceu é de enorme importância, mas às vezes não basta. Contar a história não necessariamente altera as respostas físicas e hormonais, automáticas, de corpos que permanecem hipervigilantes, preparados para ser agredidos ou violados a cada momento. Para que ocorra uma mudança real, o corpo precisa aprender que o perigo passou e a viver na realidade do momento atual. Nosso esforço para compreender o trauma nos levou a encarar de outro modo não só a estrutura da mente, mas também os processos pelos quais ela se cura.