O espião e o traidor | Sextante
Livro

O espião e o traidor

Ben Macintyre

O caso de espionagem que acelerou o fim da Guerra Fria.

O caso de espionagem que acelerou o fim da Guerra Fria.

 

Uma trama de traição, duplicidade e coragem que mudou o curso da história.

“A melhor história verídica de espionagem que eu já li.” – John le Carré

 “Um suspense de não ficção tão tenso quanto as tramas de John le Carré e Ian Fleming.” – The Economist

 

Seguindo os passos do pai e do irmão, Oleg Gordievsky se tornou oficial da KGB após frequentar as melhores instituições soviéticas. Porém, ao contrário deles, nutria uma secreta aversão pelo regime da URSS.

Ele resolveu assumir seu primeiro posto da inteligência russa em 1966. Em 1974, tornou-se agente duplo do MI6, o serviço de inteligência britânico, e dez anos depois era o homem mais importante da União Soviética em Londres.

Gordievsky ajudou o Ocidente a virar o jogo contra a KGB na Guerra Fria, expondo espiões russos, fornecendo informações de extrema relevância e frustrando incontáveis planos de espionagem. Ele foi fundamental para distensionar a relação com a liderança soviética, que estava cada vez mais paranoica com a possibilidade de um ataque nuclear dos Estados Unidos.

O MI6 tentou ao máximo proteger seu espião, nunca revelando o nome de Oleg para seus colegas da CIA. Só que a agência americana estava determinada a descobrir a identidade da fonte britânica privilegiada.

Essa obsessão acabou condenando Gordievsky: o homem designado para identificá-lo era ninguém menos que Aldrich Ames, que se tornaria famoso por espionar secretamente para os soviéticos. Agora o russo estava em perigo.

Com base em diversas entrevistas com ex-membros do MI6, da KGB e da CIA, Ben Macintyre entremeia a vida de Gordievsky e Ames, apresentando um dos episódios mais extraordinários da espionagem mundial.

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Ficha técnica
Lançamento 07/10/2021
Título original The Spy and the Traitor
Tradução Simone Reisner
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 384
Peso 450 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-217-9
EAN 9786555642179
Preço R$ 69,90
Ficha técnica e-book
eISBN 978-65-5564-218-6
Preço R$ 44,99
Ficha técnica audiolivro
ISBN 9786555643251
Duração 15h 19min
Locutor Fernando Lauletta
Lançamento 07/10/2021
Título original The Spy and the Traitor
Tradução Simone Reisner
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 384
Peso 450 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-217-9
EAN 9786555642179
Preço R$ 69,90

E-book

eISBN 978-65-5564-218-6
Preço R$ 44,99

Audiolivro

ISBN 9786555643251
Duração 15h 19min
Locutor Fernando Lauletta
Preço US$ 7,99

Leia um trecho do livro

Introdução

19 DE MAIO DE 1985

Para a Diretoria K, o setor de contrainteligência da KGB, aquele era um trabalho de escuta rotineiro.

Demorou menos de um minuto para destravarem as fechaduras da porta da frente de um apartamento no oitavo andar do número 103 da Leninsky Prospekt, um edifício de Moscou ocupado por oficiais da KGB e suas famílias. Enquanto dois homens de luvas e macacões vasculhavam metodicamente o lugar, dois técnicos instalaram dispositivos de escuta de modo ágil e discreto, ocultando grampos atrás do papel de parede e dos rodapés e inserindo um microfone no bocal do telefone e câmeras de vídeo nas luminárias da sala de estar, do quarto e da cozinha. Uma hora depois, quando terminaram a operação, a KGB tinha olhos e ouvidos em praticamente todos os cantos do apartamento. Por fim, colocaram máscaras e espalharam pó radioativo nas roupas e nos sapatos que estavam no armário, em uma concentração suficientemente baixa para evitar envenenamento, mas o bastante para permitir que os contadores Geiger da KGB rastreassem os movimentos de quem os usasse. Em seguida, saíram e, com muito cuidado, trancaram a porta da frente outra vez.

Algumas horas depois, um alto funcionário da inteligência russa pousou no aeroporto de Moscou, em um voo da Aeroflot vindo de Londres.

O coronel Oleg Antonyevich Gordievsky estava no auge de sua carreira. Um prodígio do serviço de inteligência soviético, ele tinha subido diligentemente pela hierarquia, servindo na Escandinávia, em Moscou e na Grã-Bretanha sem nenhuma mancha em sua trajetória. E agora, aos 46 anos, fora promovido a chefe da estação da KGB em Londres, um posto bastante desejado, e convidado a voltar a Moscou para ser formalmente investido no cargo pelo diretor da organização. Espião de carreira, Gordievsky era o favorito para ascender ao alto escalão daquela vasta e implacável rede de segurança e inteligência que controlava a União Soviética.

Uma figura robusta e atlética, ele caminhava de forma confiante em meio à aglomeração do aeroporto. Por dentro, porém, sentia um leve terror borbulhar. Isso porque Oleg Gordievsky, veterano da KGB, fiel servo secreto da União Soviética, era um espião.

Recrutado doze anos antes pelo MI6 – o serviço de inteligência estrangeira da Grã-Bretanha –, o agente usava o codinome Nocton e provara ser um dos espiões mais valiosos da história. A imensa quantidade de informações que ele entregara a seus controladores britânicos mudou o curso da Guerra Fria, expondo redes de espionagem soviéticas, ajudando a evitar uma guerra nuclear e fornecendo ao Ocidente uma visão única do pensamento do Kremlin durante um período criticamente perigoso no cenário mundial. Tanto Ronald Reagan quanto Margaret Thatcher haviam sido informados sobre os extraordinários segredos fornecidos pelo espião russo, embora nem o presidente americano nem a primeira-ministra britânica tivessem conhecimento de sua real identidade. Nem mesmo a jovem esposa de Gordievsky sabia de sua vida dupla.

A nomeação de Gordievsky para rezident (o termo russo para um chefe de estação da KGB, conhecida como rezidentura) provocara grande contentamento no pequeno círculo de oficiais do MI6 que estava a par do caso. Como principal agente da inteligência soviética atuando na Grã-Bretanha, Gordievsky teria, a partir de então, acesso aos segredos mais íntimos da espionagem russa: seria capaz de informar ao Ocidente o que a KGB planejava fazer; a KGB na Grã-Bretanha seria neutralizada. Porém, a convocação abrupta para voltar a Moscou deixara a equipe Nocton preocupada. Alguns suspeitaram de uma armadilha. Em uma reunião convocada às pressas com seus supervisores do MI6 em um esconderijo em Londres, Gordievsky recebera a proposta de desertar e permanecer na Grã-Bretanha com sua família. Todos na reunião entendiam os riscos: se ele retornasse como oficial rezident da KGB, então o MI6, a CIA e seus aliados ocidentais atingiriam o cerne da inteligência russa; por outro lado, se estivesse se dirigindo para uma armadilha, ele perderia tudo, inclusive a própria vida. Gordievsky havia refletido muito antes de tomar uma decisão:

– Eu vou voltar.

Mais uma vez, os oficiais do MI6 reviram o plano de fuga de emergência do coronel, denominado Pimlico, elaborado sete anos antes, na esperança de que não precisasse ser ativado. O MI6 nunca tinha extraído ninguém da União Soviética, muito menos um oficial da KGB. Complexo e perigoso, o plano só poderia ser acionado como último recurso.

Gordievsky fora treinado para detectar o perigo. Enquanto caminhava pelo aeroporto de Moscou, com os nervos em frangalhos pelo estresse, ele via sinais de ameaça em todos os lugares. O agente da imigração pareceu estudar seus documentos por tempo demais antes de mandá-lo seguir em frente. Onde estava o oficial que deveria encontrá-lo, uma cortesia básica para um coronel da KGB que chegava do exterior? O aeroporto era sempre rígido em relação à vigilância, mas naquele dia homens e mulheres comuns, aparentemente ociosos, pareciam ainda mais numerosos do que o normal. Ele entrou em um táxi, dizendo a si mesmo que, se a KGB soubesse a verdade, teria sido preso no instante em que pisara em solo soviético e já estaria a caminho da prisão, onde enfrentaria interrogatório e tortura, seguidos de execução.

Até onde podia perceber, ninguém o havia seguido quando entrou no familiar bloco de apartamentos na Leninsky Prospekt e pegou o elevador para o oitavo andar. Ele não entrava naquele apartamento desde janeiro.

A primeira fechadura abriu com facilidade, assim como a segunda. Mas a porta da frente não se movia. A terceira, um ferrolho à moda antiga que datava da construção do edifício, tinha sido trancada.

Gordievsky, porém, nunca usava a terceira fechadura. Na verdade, ele não tinha a chave. Isso só podia significar que alguém com uma chave mestra estivera lá e, ao sair, trancara as três fechaduras da porta por engano. Esse alguém devia ser integrante da KGB.

Ele sentiu um frio na espinha ao ter a percepção paralisante e assustadora de que seu apartamento havia sido invadido, revistado e provavelmente grampeado. Ele estava sob suspeita. Alguém o traíra. A KGB o vigiava. O espião estava sendo espionado.

A KGB

Oleg Gordievsky nasceu na KGB e foi moldado, amado, ferido e quase destruído por ela. O serviço de espionagem soviético estava em seu coração e em seu sangue. O pai trabalhara para o serviço de inteligência durante toda a vida e usava o uniforme todos os dias, inclusive nos fins de semana. Os Gordievsky viviam em meio a uma fraternidade de espiões em um bloco de apartamentos específico, comiam as refeições especiais reservadas para os oficiais e passavam o tempo livre socializando com outras famílias de agentes. Gordievsky era filho da KGB.

A KGB – o Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, ou Comitê de Segurança do Estado – era a agência de inteligência mais complexa e ampla já criada. Sucessora direta da rede de espionagem de Stalin, coletava informações estrangeiras e domésticas e implementava a segurança interna, assim como tinha função de polícia estatal. Opressiva, misteriosa e onipresente, a KGB alcançava e controlava todos os aspectos da vida soviética. A organização erradicou a dissidência interna, protegeu a liderança comunista, montou operações de espionagem e contrainteligência tendo como alvo os poderes inimigos e intimidou os povos da URSS a lhe prestarem uma obediência abjeta. Recrutou agentes e plantou espiões no mundo inteiro, reunindo, comprando e roubando segredos militares, políticos e científicos de todo lugar. No auge do poder, quando contava com mais de um milhão de oficiais, agentes e informantes, a KGB moldou a sociedade soviética de forma mais profunda do que qualquer outra instituição.

Para o Ocidente, a sigla era sinônimo de terror interno, agressão externa e subversão, resumindo toda a crueldade de um regime totalitário dirigido por uma máfia oficial sem rosto. Mas a KGB não era vista dessa forma por quem vivia sob o seu inflexível governo. Apesar de inspirar medo e obediência, era venerada como uma guarda pretoriana, um baluarte contra a agressão imperialista e capitalista ocidental e uma guardiã do comunismo. A adesão a essa privilegiada força de elite era fonte de admiração e orgulho. Aqueles que aderiam ao serviço tomavam uma decisão para toda a vida. “Não existem ex-membros da KGB”, disse certa vez Vladimir Putin, anteriormente oficial da agência. Tratava-se de um clube exclusivo, do qual era impossível sair. Entrar nas fileiras da KGB era uma honra e um dever para quem tivesse talento e ambição suficientes para fazê-lo.

Oleg Gordievsky jamais cogitara fazer outra coisa.

Seu pai, Anton Lavrentyevich Gordievsky, filho de um trabalhador ferroviário, tinha sido professor antes que a Revolução de 1917 o transformasse em um comunista dedicado e incondicional, um rígido executor da ortodoxia ideológica. “O Partido era Deus”, escreveu seu filho mais tarde, e Gordievsky pai jamais vacilou em sua devoção, mesmo quando sua fé exigia que ele cometesse crimes inomináveis. Em 1932, ajudou a impor a “sovietização” do Cazaquistão, organizando a expropriação de alimentos dos camponeses para alimentar as cidades e os exércitos soviéticos. Por causa disso, cerca de 1,5 milhão de pessoas morreram de fome. Anton viu de perto a fome induzida pelo Estado. Naquele ano, ele se juntou ao Gabinete de Segurança, depois à NKVD – o Comissariado do Povo para Assuntos Internos, que era a polícia secreta de Stalin e viria a se tornar a KGB. Como oficial da Diretoria Política, ele era responsável pela disciplina e pela doutrinação dessa área. Anton casou-se com Olga Nikolayevna Gornova, uma estatística de 24 anos, e os dois se mudaram para um edifício de Moscou reservado para a elite da inteligência. O primeiro filho, Vasili, nasceu em 1932. Os Gordievsky prosperaram sob o regime stalinista.

Quando o camarada Stalin anunciou que a Revolução estava enfrentando uma ameaça letal vinda de dentro, Anton Gordievsky logo se prontificou a ajudar a eliminar os traidores. O Grande Expurgo de 1936 a 1938 testemunhou a liquidação por atacado de “inimigos do Estado”: suspeitos de serem membros da quinta-coluna, trotskistas disfarçados, terroristas e sabotadores, espiões contrarrevolucionários, oficiais do Partido e do governo, camponeses, judeus, professores, generais, membros da inteligência, poloneses, soldados do Exército Vermelho e muitos outros. A maioria era totalmente inocente. Na paranoica polícia de Estado de Stalin, a maneira mais segura de garantir a sobrevivência era denunciar alguém. “É melhor que dez pessoas inocentes sofram do que um espião escape”, dizia Nikolai Yezhov, chefe da NKVD. “Quando você corta madeira, lascas se soltam.” Os informantes sussurravam, os torturadores e carrascos começavam a trabalhar, os gulags siberianos quase transbordavam. Mas, como em toda revolução, os próprios executores inevitavelmente se tornavam suspeitos. A NKVD começou a investigar a si mesma e a expurgar os próprios integrantes. No auge da sangria, o bloco de apartamentos dos Gordievsky foi invadido mais de uma dúzia de vezes em um período de seis meses. As prisões ocorriam à noite: o chefe da família era levado primeiro, depois o restante.

É provável que alguns desses inimigos do Estado tivessem sido identificados por Anton Gordievsky. “A NKVD está sempre certa”, dizia ele – uma conclusão completamente sensata e, ao mesmo tempo, equivocada.

O segundo filho de Anton, Oleg Antonyevich, nasceu em 10 de outubro de 1938, quando o Grande Terror estava quase no fim e a guerra já era iminente. Para amigos e vizinhos, os Gordievsky pareciam cidadãos soviéticos perfeitos, ideologicamente puros, leais ao Partido e ao Estado, e agora pais de dois robustos meninos. Marina, a única menina, nasceu sete anos depois de Oleg. Os Gordievsky eram bem alimentados e privilegiados e viviam em segurança.

Um exame mais aprofundado, porém, revelaria fissuras na fachada da família e camadas de mentiras sob a superfície. Anton nunca falava sobre o que tinha feito durante a fome, os expurgos e o terror. Ele era um exemplo da espécie Homo sovieticus, um servo obediente do Estado forjado pela repressão comunista. Mas, na verdade, tinha medo e se sentia horrorizado e talvez consumido pela culpa. Mais tarde, Oleg passaria a ver o pai como “um homem assustado”.

Olga, a mãe de Oleg, era feita de um material menos maleável. Ela nunca se juntou ao Partido e não acreditava que a NKVD fosse infalível. O moinho d’água de seu pai havia sido desapropriado pelos comunistas; seu irmão fora enviado para o gulag da Sibéria Oriental por criticar a agricultura coletiva; ela vira muitos amigos serem arrastados de suas casas e levados embora durante a noite. Com o senso comum arraigado dos camponeses, ela percebia todo o arbítrio e o espírito vingativo do terror estatal, mas mantinha a boca fechada.

Oleg e Vasili, que tinham seis anos de diferença, cresceram em tempos de guerra. Uma das primeiras lembranças de Oleg eram as filas de prisioneiros alemães enlameados sendo exibidos pelas ruas de Moscou, “presos, vigiados e conduzidos como animais”. Anton costumava se ausentar por longos períodos, dando palestras sobre a ideologia do Partido para as tropas.

Obedientemente, Oleg aprendeu os princípios da ortodoxia comunista: estudou no Liceu 130, onde demonstrou uma aptidão inicial para história e línguas; conheceu os heróis do comunismo em seu país e no exterior. Apesar do véu espesso de desinformação que cercava o Ocidente, os países estrangeiros o fascinavam. Aos 6 anos, começou a ler o British Ally, um jornal de propaganda publicado em russo pela embaixada britânica para encorajar o entendimento anglo-russo. Estudou alemão. Como esperado de todos os adolescentes, juntou-se ao Komsomol, a Liga da Juventude Comunista.

Seu pai trazia para casa três jornais oficiais e recitava a propaganda comunista que eles veiculavam. A NKVD se transformou na KGB e Anton Gordievsky acompanhou a mudança, submisso. A mãe de Oleg exalava uma resistência silenciosa, que se revelava ocasionalmente sob a forma de uma insolência sussurrada. A adoração religiosa era ilegal no regime comunista, portanto os meninos eram criados como ateus, mas sua avó materna fez com que Vasili fosse secretamente batizado na Igreja Ortodoxa Russa, e teria batizado Oleg também se Anton, horrorizado, não tivesse descoberto o plano e proibido.

Oleg cresceu em uma família unida e amorosa, embora repleta de falsidades. Anton venerava o Partido e se considerava um destemido defensor do comunismo, mas, na verdade, era um homem pequenino e aterrorizado que fora testemunha de eventos terríveis. Olga, a esposa ideal da KGB, alimentava um desdém secreto pelo sistema. A avó de Oleg adorava um deus ilegal e proscrito. Nenhum dos adultos da família revelava o que de fato sentia – nem uns aos outros, nem a qualquer outra pessoa. Em meio à sufocante conformidade da Rússia de Stalin, era possível acreditar em ideias diferentes, mas muito perigoso expressá-las, mesmo aos familiares. Desde a infância, Oleg viu que podia levar uma vida dupla, amar aqueles ao redor enquanto ocultava o verdadeiro eu, ser uma pessoa e parecer outra.

Oleg saiu da escola com uma medalha de prata e o título de chefe do Komsomol, um competente, inteligente, atlético, inquestionável e extraordinário produto do sistema soviético. Mas ele também tinha aprendido a separar as coisas. De diferentes maneiras, o pai, a mãe e a avó eram pessoas que viviam disfarçadas. O jovem Gordievsky cresceu rodeado de segredos.

O “Degelo de Khrushchev” foi breve e restrito, mas também um período de genuína liberalização, que testemunhou o relaxamento da censura e a libertação de milhares de presos políticos. Eram tempos empolgantes para quem era jovem, russo e esperançoso.

Aos 17 anos, Oleg se matriculou no prestigiado Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou. Lá, entusiasmado com a nova atmosfera, envolveu-se em sérias discussões com colegas sobre como criar um “socialismo humano”. Mas foi longe demais. Algumas das inconformações da mãe estavam entranhadas em sua mente. Um dia, Oleg escreveu um discurso ingênuo em defesa da liberdade e da democracia, conceitos que ele mal entendia. Ele gravou o texto no laboratório de idiomas e o reproduziu para alguns colegas. Todos ficaram perplexos. “É melhor você destruir isso agora mesmo, Oleg, e jamais mencionar essas ideias novamente.” Com um medo repentino, ele se perguntou se algum de seus colegas teria informado as autoridades sobre suas opiniões “radicais”. A KGB mantinha espiões dentro do instituto.

Os limites do reformismo de Khrushchev foram brutalmente demonstrados em 1956, quando os tanques soviéticos entraram na Hungria com o intuito de reprimir uma revolta nacional contra o governo soviético. Apesar da censura e da propaganda soviéticas abrangentes, as notícias da rebelião esmagada chegaram à Rússia. “Todo o entusiasmo desapareceu”, lembrou Oleg sobre a repressão que se seguiu. “Um vento gelado fustigou a todos.”

O Instituto Estatal de Relações Internacionais era a universidade mais elitista da União Soviética, descrita por Henry Kissinger como “a Harvard russa”. Administrado pelo Ministério das Relações Exteriores, era o principal campo de treinamento de diplomatas, cientistas, economistas, políticos… e espiões. Gordievsky estudou história, geografia, economia e relações internacionais, tudo sob o prisma distorcido da ideologia comunista. O instituto ensinava 56 idiomas, mais do que qualquer outra universidade no mundo. As habilidades linguísticas ofereciam um caminho claro para a KGB e as viagens internacionais que ele tanto almejava. Já fluente em alemão, Oleg se inscreveu para estudar inglês, mas os cursos estavam lotados. “Aprenda sueco”, sugeriu o irmão mais velho, que já havia se juntado à KGB. “É a porta de entrada para a Escandinávia.” Gordievsky seguiu o conselho.

A biblioteca do instituto guardava alguns periódicos estrangeiros que, embora fortemente censurados, proporcionavam um vislumbre do resto do mundo. Ele começou a lê-los de forma discreta, pois mostrar um interesse declarado pelo Ocidente era, por si só, motivo para suspeita. Às vezes, à noite, ouvia secretamente o Serviço Mundial da BBC ou a Voz da América, apesar do sistema de interferência de rádio imposto pelos censores soviéticos. Dessa maneira, captou “o primeiro aroma suave da verdade”.

Como todas as pessoas, quando ficou mais velho, Gordievsky tendia a ver seu passado através das lentes da experiência, imaginando que sempre havia guardado dentro de si as sementes da insubordinação e acreditando que seu destino estava de alguma forma ligado ao seu caráter. Porém, não era verdade. Como estudante, ele era um comunista convicto, ansioso para servir ao Estado soviético na KGB como o pai e o irmão. A Revolução Húngara atraíra a sua imaginação juvenil, só que ele não era um revolucionário. “Eu ainda pertencia ao sistema, mas minha desilusão começava a crescer.” Nisso ele não era diferente de muitos dos colegas daquela época.

Aos 19 anos, Gordievsky começou a se dedicar à corrida cross country. Havia algo que o atraía no esforço intenso que precisava fazer durante um longo período, em uma competição particular consigo mesmo, testando os próprios limites. Oleg sabia ser sociável, atraente e galanteador. Era um homem bonito, com o cabelo penteado para trás e traços suaves. Sua expressão parecia severa, mas, quando os olhos brilhavam com humor, seu rosto se iluminava. Quando estava em meio a outras pessoas, ele era muitas vezes comunicativo e amistoso, mas escondia algo duro dentro de si. Oleg não era um solitário, mas sentia-se confortável na própria companhia. Raramente revelava seus sentimentos. Sempre em busca de autoaperfeiçoamento, acreditava que a corrida cross country contribuía para a “construção do caráter”. Durante horas, corria por ruas e parques de Moscou, sozinho com seus pensamentos.

Um dos poucos alunos de quem se tornou amigo foi Stanislaw Kaplan, um colega corredor da equipe de atletismo da universidade. “Standa” Kaplan era tchecoslovaco e já tinha um diploma da Universidade Carolina de Praga quando chegou ao Instituto Estatal, mais um entre centenas de estudantes talentosos do bloco soviético. Assim como acontecera com alunos de outros países recentemente subjugados ao comunismo, a “personalidade de Kaplan não havia sido sufocada”, como escreveu Gordievsky anos mais tarde. Um ano mais velho, ele estava estudando para ser tradutor militar. Os dois jovens descobriram que compartilhavam ambições e ideias semelhantes. “Ele era liberal e tinha uma visão fortemente cética sobre o comunismo”, acrescentou Oleg, que achava empolgantes e ligeiramente alarmantes as opiniões francas de Kaplan. Com sua beleza morena, Standa atraía as mulheres como um ímã. Os dois estudantes tornaram-se grandes amigos, correndo juntos, indo atrás de garotas e comendo em um restaurante tchecoslovaco nas redondezas do Parque Gorky.

Uma influência igualmente importante foi Vasili, seu idolatrado irmão mais velho, que agora estava treinando para se tornar um “ilegal”, ou seja, membro de um dos amplos exércitos globais de agentes infiltrados da União Soviética.

A KGB dirigia duas espécies distintas de espionagem em países estrangeiros. A primeira trabalhava sob cobertura formal, como um membro da equipe diplomática ou consular soviética, adido cultural ou militar, jornalista credenciado ou representante comercial. A proteção diplomática significava que esses espiões “legais” não podiam ser processados por espionagem caso suas atividades fossem descobertas, mas apenas declarados persona non grata e expulsos do país. Por outro lado, um espião “ilegal” (nelegal, em russo) não tinha nenhuma função oficial, geralmente viajava sob nome falso, com documentos falsos, e se misturava de maneira invisível aos habitantes de qualquer país para onde fosse enviado. (No Ocidente, tais espiões são conhecidos como NOCs, de Non-Official Cover, ou infiltrado não oficial.) A KGB plantou ilegais no mundo inteiro, fingindo serem cidadãos comuns, submersos e subversivos. Como os espiões legais, eles reuniam informações, recrutavam agentes e conduziam várias formas de espionagem. Às vezes permaneciam à sombra por longos períodos antes de serem ativados. Também serviam como potenciais quinta-colunistas, prontos para entrar em batalha caso a guerra eclodisse entre o Oriente e o Ocidente. Os ilegais operavam fora do radar oficial, portanto não podiam ser financiados de maneiras rastreáveis nem se comunicar por meio de canais diplomáticos seguros. Ao contrário dos espiões credenciados em uma embaixada, deixavam poucas evidências para os investigadores da contrainteligência seguirem. Todas as embaixadas soviéticas continham um departamento permanente da KGB, ou rezidentura, com oficiais da KGB em vários disfarces oficiais, todos sob o comando de um rezident. Assim, a contrainteligência ocidental precisava descobrir quais oficiais soviéticos eram diplomatas genuínos e quais eram realmente espiões. Rastrear os ilegais era muito mais difícil.

A Primeira Diretoria-Geral (PDG) era o departamento da KGB responsável pela inteligência estrangeira. Dentro dela, a Diretoria S (de special, ou especial) treinava, implantava e gerenciava os ilegais, e foi a que recrutou Vasili Gordievsky em 1960.

A KGB mantinha um escritório dentro do Instituto Estatal de Relações Internacionais, onde dois oficiais sempre procuravam potenciais recrutas. Vasili mencionou aos chefes da Diretoria S que o irmão mais novo, proficiente em línguas, poderia estar interessado na mesma linha de trabalho.

No início de 1961, Oleg foi convidado para uma conversa. Ordenaram-lhe que fosse a um prédio perto da sede da KGB, na praça Dzerzhinsky, onde foi educadamente entrevistado em alemão por uma mulher de meia-idade, que o elogiou por sua fluência. Dali em diante, ele passou a fazer parte do sistema. Não foi Gordievsky quem procurou se juntar à KGB; a organização não era um clube no qual você se inscrevia. Era a agência que o escolhia.

Oleg estava concluindo a universidade quando foi enviado a Berlim Oriental para passar seis meses como tradutor na embaixada russa. Ele já estava entusiasmado com a perspectiva de viajar pela primeira vez ao exterior, e sua empolgação aumentou quando foi chamado à Diretoria S para uma reunião sobre a Alemanha Oriental. A República Democrática Alemã, governada pelos comunistas, era um satélite soviético, mas isso não a tornava imune às atenções da KGB. Vasili já vivia lá como ilegal. Oleg prontamente concordou em fazer contato com o irmão e realizar algumas “pequenas tarefas” para seu novo empregador não oficial. Chegou a Berlim Oriental em 12 de agosto de 1961, instalando- -se em um albergue estudantil dentro do enclave da KGB, no subúrbio de Karlshorst.

Nos meses anteriores, o fluxo de alemães orientais que fugiam para o Ocidente através de Berlim Ocidental atingira o ápice. Em 1961, em torno de 3,5 milhões de alemães orientais, cerca de vinte por cento de toda a população, haviam aderido ao êxodo em massa do regime comunista.

Na manhã seguinte, Gordievsky descobriu que Berlim Oriental tinha sido invadida por escavadeiras. A pedido de Moscou, o governo da Alemanha Oriental tomava medidas radicais para conter o fluxo: iniciara a construção do Muro de Berlim, uma barreira para separar os dois lados de Berlim e cercar a Alemanha Oriental. O “muro de proteção antifascista” era, na realidade, um perímetro prisional, erguido pela Alemanha Oriental para manter presos os próprios cidadãos. Com mais de 240 quilômetros de concreto e arame farpado, com bunkers e trincheiras antiveículos, o Muro de Berlim era a manifestação física da Cortina de Ferro e uma das estruturas mais repugnantes que o homem já construiu.

Oleg assistiu horrorizado quando trabalhadores da Alemanha Oriental quebraram as ruas ao longo da fronteira para torná-las intransitáveis para veículos, enquanto tropas desenrolavam quilômetros de arame farpado. Alguns alemães orientais, desesperados, percebendo que sua rota de fuga estava se fechando rapidamente, tentaram escalar as barricadas ou nadar pelos canais que faziam parte da fronteira. Guardas foram alinhados ao longo da divisa com ordens para atirar em quem se arriscasse a atravessar do Leste para o Oeste. O novo muro causou uma impressão poderosa naquele Oleg de 22 anos: “Só mesmo uma barreira física, reforçada por guardas armados em suas torres de vigilância, poderia manter os alemães orientais em seu paraíso socialista e impedi-los de fugir para o Ocidente.”

Seu choque em relação à construção repentina do Muro de Berlim não o impediu de cumprir fielmente as ordens da KGB. O medo da autoridade era instintivo, o hábito da obediência, arraigado. A Diretoria S fornecera o nome de uma mulher alemã, uma antiga informante da KGB, para que Oleg a sondasse e avaliasse se estava preparada para continuar repassando informações. Ele descobriu o endereço dela por meio de uma delegacia local. A mulher de meia-idade que atendeu a porta parecia inquieta com a visita do jovem com um buquê de flores. Durante uma xícara de chá, ela deixou claro que estava preparada para continuar a cooperar. Ansioso, Gordievsky escreveu seu primeiro relatório para a KGB. Poucos meses depois, percebeu o que realmente havia acontecido: “Era eu, e não ela, que estava sendo testado.”

Naquele Natal, Oleg se comunicou com Vasili, que vivia sob identidade falsa em Leipzig. Ele não revelou ao irmão seu horror com a construção do Muro de Berlim. O outro já era um oficial profissional da KGB e não teria aprovado tal hesitação ideológica. Assim como a mãe escondia do marido seus verdadeiros sentimentos, os dois irmãos guardavam seus segredos um do outro: Oleg não tinha ideia do que Vasili estava fazendo na Alemanha Oriental e Vasili não podia nem imaginar como Oleg de fato se sentia. Eles assistiram a uma apresentação do Oratório de Natal, que deixou Oleg “intensamente comovido”. Em comparação, a Rússia parecia “um deserto espiritual”, onde apenas compositores aprovados podiam ser ouvidos e a música sacra, como a de Bach, era considerada “hostil às classes”, vista como decadente e burguesa, por isso fora banida.

Os poucos meses que passou na Alemanha Oriental o afetaram profundamente: ele testemunhou a divisão física e simbólica da Europa em ideologias rivais e provou frutos culturais proibidos a ele em Moscou. E começou a espionar. “Era emocionante ter um gostinho do que eu talvez fizesse se me juntasse à KGB.”

Na realidade, ele já havia se juntado à agência.

De volta a Moscou, Oleg foi instruído a se apresentar à KGB em 31 de julho de 1962. Por que ele resolvera ingressar em uma organização que impunha uma ideologia que já havia começado a questionar? O trabalho da KGB era glamouroso, oferecendo a promessa de viagens ao exterior. O sigilo se mostrava sedutor. Ele também era ambicioso. A KGB poderia mudar. Ele poderia mudar. A Rússia poderia mudar. E o salário e os privilégios eram bons.

Olga ficou consternada ao saber que seu filho mais novo seguiria os passos do pai e do irmão no serviço de inteligência. Pela primeira vez, expressou abertamente sua raiva contra o regime e o aparato de opressão que o sustentava. Oleg ressaltou que não trabalharia para a KGB interna, mas na divisão estrangeira, a PDG, uma organização de elite composta por intelectuais que falavam vários idiomas, fazendo um trabalho sofisticado que exigia habilidade e conhecimento. “Não é como ser um agente da KGB de verdade”, explicou ele. “É realmente inteligência e trabalho diplomático.” Olga virou-se e saiu da sala. Anton não disse nada. Oleg não detectara orgulho no comportamento do pai. Anos mais tarde, quando passou a entender a verdadeira escala da repressão stalinista, Oleg se perguntou se o pai, agora se aproximando da aposentadoria, sentia-se “envergonhado de todos os crimes e atrocidades cometidos pela KGB e simplesmente temia discutir o trabalho da organização com o próprio filho”. Ou talvez Anton estivesse lutando para manter sua vida dupla, um pilar da KGB aterrorizado demais para alertar o filho quanto ao lugar em que estava se metendo.

Em seu último verão como civil, Oleg se juntou a Standa Kaplan no acampamento de férias do Instituto de Relações Internacionais, na costa do mar Negro. Kaplan decidira ficar por mais um mês antes de voltar para se juntar ao StB, o grandioso serviço de inteligência da Tchecoslováquia. Os dois amigos logo seriam colegas, aliados na espionagem em nome do bloco soviético. Por um mês, acamparam sob os pinheiros, correram todos os dias, nadaram, tomaram sol e conversaram sobre mulheres, música e política. Kaplan se tornava cada vez mais um crítico do sistema comunista. Gordievsky se sentia lisonjeado por ser o ouvinte de tantas confidências perigosas: “Havia um entendimento entre nós, uma confiança.”

Logo após seu retorno à Tchecoslováquia, Kaplan escreveu uma carta para Oleg. Entre os mexericos sobre as meninas que conhecera e o bom tempo que teriam juntos se o amigo fosse lhe fazer uma visita (“Vamos esvaziar todos os bares e adegas de Praga”), Kaplan fez um pedido altamente significativo: “Você teria um exemplar do Pravda com o poema de Yevgeny Yevtushenko sobre Stalin?” O poema em questão era “Os herdeiros de Stalin”, um ataque direto ao stalinismo feito por um dos poetas mais independentes e influentes da Rússia. Tratava-se de uma exigência para que o governo soviético garantisse que Stalin “nunca mais se levantaria” e um aviso de que alguns na liderança ainda ansiavam pelo brutal passado stalinista: “Quando digo passado, não me refiro ao passado grandioso […] é o passado do descaso com o povo, das intrigas, dos réus sem crime […] ‘Por que se importar?’, perguntam alguns, mas eu não posso me omitir. Enquanto houver herdeiros de Stalin neste mundo.” O poema causou sensação ao ser publicado no jornal oficial do Partido Comunista, sendo também reimpresso na Tchecoslováquia. “Ele provocou um efeito poderoso em alguns de nosso povo, com certo descontentamento”, escreveu Kaplan a Gordievsky. Ele disse que queria comparar a tradução tcheca com o original russo. Mas, na realidade, Kaplan estava enviando a seu amigo uma mensagem codificada de cumplicidade, reconhecendo que compartilhavam os sentimentos expressos por Yevtushenko e, como o poeta, não se omitiriam diante do legado de Stalin.

A academia de treinamento de elite “Red Banner” da KGB, nas profundezas de uma floresta 80 quilômetros ao norte de Moscou, tinha o codinome Escola 101, um eco irônico e totalmente inconsciente do Quarto 101 de George Orwell em sua obra 1984, a câmara de tortura do porão onde o Partido quebrava a resistência de um prisioneiro submetendo-o ao seu pior pesadelo.

Ali, Gordievsky e outros 120 estagiários da KGB seriam apresentados aos segredos mais profundos da espionagem soviética: inteligência e contrainteligência, recrutamento e execução de espiões, legais e ilegais, agentes comuns e agentes duplos, armas, combate e vigilância desarmados, ciências ocultas e a linguagem daquele estranho ofício. Algumas das instruções mais importantes eram voltadas para detecção de vigilância e evasão, processo conhecido como “lavagem a seco”, ou proverka, no jargão da KGB: como detectar quando estiver sendo seguido e se esquivar da vigilância de uma maneira que pareça acidental em vez de intencional, pois um alvo que tem consciência de que está sendo vigiado é provavelmente um agente de inteligência bem treinado. “O comportamento do oficial de inteligência não deve provocar suspeitas”, declaravam os instrutores da KGB. “Se uma equipe de vigilância perceber que alguém claramente verifica se está sendo seguido, ela será estimulada a trabalhar de maneira ainda mais secreta, tenaz e astuciosa.”

Ser capaz de fazer contato com um agente sem ser observado – ou mesmo enquanto estiver sob vigilância – é crucial para todas as operações clandestinas. Na linguagem da espionagem ocidental, um oficial ou agente passa a agir “na sombra” quando opera sem ser detectado. Em inúmeros testes, os alunos da KGB eram enviados para se conectar com uma pessoa específica em um local preciso, levar ou trazer informações, tentar identificar se e como estavam sendo seguidos, livrar-se de todas as evidências sem parecer que o estavam fazendo e chegar ao lugar designado impecavelmente “lavado a seco”. A vigilância era responsabilidade da Sétima Diretoria da KGB. Observadores profissionais altamente treinados na arte de seguir um suspeito participavam dos exercícios e, no fim de cada dia, o aluno-estagiário e a equipe de vigilância comparavam suas anotações. A proverka era exaustiva, competitiva, demorada e emocionalmente destrutiva; Gordievsky descobriu que era muito bom nela.

Ele aprendeu a configurar um “local de sinalização”, deixar um sinal secreto em algum espaço público – uma marca de giz em um poste de luz, por exemplo – que não significava nada para um observador casual, mas diria a um espião para se encontrar em determinados lugar e hora. Também aprendeu a fazer um “contato de passagem”, ou seja, passar uma mensagem ou item para outra pessoa sem ser notado, e a criar um “dead drop”, deixando uma mensagem ou dinheiro para ser pego por outra pessoa sem fazer contato direto. Estudou códigos e criptografia, sinais de reconhecimento, escrita secreta, preparação de “microdots” – mensagem escrita ou fotográfica bem reduzida –, fotografia e disfarce. Havia aulas sobre economia e política, bem como preleções ideológicas para reforçar o compromisso dos jovens espiões com o marxismo-leninismo. Como observou um dos colegas de Oleg, “essas fórmulas e conceitos clichês tinham o caráter de encantamentos rituais, algo semelhante a afirmações diárias e constantes de lealdade”. Oficiais veteranos que já haviam servido no exterior davam palestras sobre cultura e etiqueta ocidentais, buscando preparar os recrutas para compreender e combater o capitalismo burguês.

Oleg adotou seu primeiro nome de espião. Os serviços soviéticos e ocidentais de inteligência usavam o mesmo método para escolher um pseudônimo: deveria ser parecido com o nome real, com a mesma letra inicial, pois, dessa forma, se uma pessoa se referisse a ele pelo seu nome real, alguém que só o conhecesse pelo nome de espião poderia muito bem assumir que tinha ouvido mal. Gordievsky escolheu o nome “Guardiyetsev”.

Como todos os outros estudantes, jurou lealdade eterna à KGB: “Eu me comprometo a defender meu país até a última gota de sangue e a manter os segredos de Estado.” Ele o fez sem hesitar. Também se filiou ao Partido Comunista, outro requisito para a admissão. Gordievsky podia ter suas dúvidas – muitos as tinham –, mas isso não o impediu de se juntar à KGB e ao Partido com total compromisso e sinceridade. Além disso, a KGB era empolgante. Longe de ser um pesadelo orwelliano, o treinamento de um ano na Escola 101 foi o período mais agradável de sua juventude, um tempo de animação e expectativas. Seus colegas recrutas haviam sido selecionados pela inteligência e a conformidade ideológica, mas também pelo espírito de aventura comum a todos os serviços de inteligência. “Nós havíamos escolhido carreiras na KGB porque ofereciam uma perspectiva de ação.” O sigilo forja laços intensos. Nem os pais de Oleg tinham ideia de onde ele estava ou do que estava fazendo. “Conseguir entrar na Primeira Diretoria- -Geral era o sonho da maioria dos jovens oficiais, mas apenas alguns poucos eram dignos de tal honra”, escreveu Leonid Shebarshin, que frequentou a Escola 101 na mesma época de Oleg e acabaria como general da KGB. “O trabalho unia oficiais de inteligência em uma camaradagem única, por meio de suas próprias tradições, disciplina, convenções e linguagem especial.” No verão de 1963, Oleg tinha sido totalmente aceito na irmandade da KGB. Quando jurou defender a mãe-pátria até o último suspiro e o último segredo, ele o fez de coração.

Vasili estava trabalhando arduamente para a Diretoria S, o departamento de ilegais da PDG. Também começou a beber em excesso – o que não era uma desvantagem em um serviço que valorizava a capacidade de ingerir, sem cair, grandes quantidades de vodca após o trabalho. Especialista em infiltrados ilegais, ele se mudava de um lugar para outro sob diferentes pseudônimos, a serviço da rede clandestina, passando mensagens e dinheiro para outros agentes ocultos. Vasili nunca revelava o que estava fazendo ao irmão mais novo, mas insinuava sua presença em locais exóticos, incluindo Moçambique, Vietnã, Suécia e África do Sul.

Oleg esperava seguir os passos do irmão naquele empolgante mundo secreto no exterior. Em vez disso, foi orientado a se apresentar à Diretoria S em Moscou, onde prepararia a documentação para outros ilegais. Em 20 de agosto de 1963, tentando disfarçar sua decepção, Gordievsky vestiu seu melhor terno e foi trabalhar na sede da KGB, o complexo de edifícios situado perto do Kremlin, parte prisão, parte arquivo, o centro nervoso da inteligência soviética. No coração do complexo ficava a sinistra Lubyanka, um palácio neobarroco originalmente construído para a sede da Companhia Russa de Seguros cujo porão abrigava as células de tortura da KGB. Entre seus oficiais, o centro de controle da KGB era conhecido como “O Mosteiro” ou apenas “O Centro”.

Em vez de ser enviado para trabalhar infiltrado em algum glamouroso local estrangeiro, Gordievsky se viu em meio a uma enorme papelada, “um escravo de galera”, preenchendo formulários. Cada ilegal exigia uma persona falsa, com uma história convincente, uma nova identidade com biografia completa e documentos falsos. Todos tinham que ser sustentados, instruídos e financiados, exigindo um complexo arranjo de locais de sinalização, “dead drops” e contatos de passagem. A Grã-Bretanha era vista como um terreno particularmente fértil para a infiltração de ilegais, uma vez que não havia nenhum sistema de carteiras de identidade no país e nenhum escritório central de registros. A Alemanha Ocidental, os Estados Unidos, a Austrália, o Canadá e a Nova Zelândia eram os alvos principais. Alocado na seção alemã, Oleg passava os dias inventando pessoas. Durante dois anos habitou um mundo de vidas duplas, enviando espiões para o mundo exterior e conhecendo aqueles que haviam retornado.

O Centro era assombrado por fantasmas vivos, heróis da espionagem soviética em sua velhice. Nos corredores da Diretoria S, Gordievsky foi apresentado a Konon Trofimovich Molody, conhecido como “Gordon Lonsdale”, um dos ilegais mais bem-sucedidos da história. Em 1943, a KGB se apropriou da identidade de uma criança canadense morta chamada Gordon Arnold Lonsdale e a entregou a Molody, que crescera na América do Norte e falava um inglês impecável. Ele se estabeleceu em Londres em 1954 e, passando-se por um jovial vendedor de jukeboxes e máquinas de chiclete, recrutou o chamado Portland Spy Ring, uma rede de informantes que coletava segredos navais. (Um dentista da KGB fez vários buracos desnecessários em seus dentes antes de deixar Moscou, assim Molody poderia apenas abrir a boca e apontar as cavidades para confirmar sua identidade para outros espiões soviéticos.) Uma denúncia de um espião da CIA levou à prisão e à condenação de Molody por espionagem, embora nem mesmo durante seu julgamento o tribunal britânico soubesse seu nome verdadeiro.

Quando Gordievsky o conheceu, Molody tinha acabado de voltar para Moscou depois de ser trocado por um empresário britânico preso sob acusação de espionagem em Moscou. Uma figura igualmente lendária era Vilyam Genrikhovich Fisher, conhecido como Rudolf Abel, o ilegal cuja espionagem nos Estados Unidos lhe rendeu uma sentença de trinta anos de prisão, mas que fora trocado por Gary Powers, piloto abatido do U-2, em 1962.

O espião soviético mais famoso na semiaposentadoria era britânico. Kim Philby fora recrutado pela NKVD em 1933, subiu na hierarquia do MI6 e passou informações para a KGB até que finalmente desertou para a União Soviética em janeiro de 1963, para grande constrangimento do governo britânico. Ele agora vivia em um apartamento confortável em Moscou, assistido por guarda-costas, “um inglês até o último fio de cabelo”, como um oficial da KGB costumava dizer, lendo as pontuações de críquete em exemplares antigos do The Times, comendo geleia de Oxford e frequentemente bebendo até cair. Philby era reverenciado dentro da KGB e continuou a fazer trabalhos esporádicos para a inteligência soviética, inclusive realizando um curso de treinamento para oficiais de língua inglesa, analisando casos e até mesmo ajudando a motivar o time soviético de hóquei no gelo.

Como Molody e Fisher, Philby dava palestras para jovens espiões, que o admiravam. Mas a realidade da vida após a espionagem na KGB era tudo menos feliz. Molody passou a beber e morreu em circunstâncias misteriosas durante uma expedição para colher cogumelos. Abel ficou profundamente desiludido. Philby tentou se matar. Os três foram celebrados em selos postais soviéticos.

Para quem se desse ao trabalho de olhar de perto (e poucos russos o faziam), o contraste entre o mito e a realidade da KGB era evidente por si mesmo. O Centro constituía uma burocracia impecável, iluminada e amoral, um lugar ao mesmo tempo implacável, presunçoso e puritano, onde crimes internacionais eram concebidos com meticulosa atenção aos detalhes. Desde o início, a inteligência soviética operava sem restrições éticas. Além de coletar e analisar informações, a KGB organizava guerras políticas, manipulação da mídia, desinformação, falsificações, intimidações, sequestros e assassinatos. O 13º Departamento, ou “Diretoria de Tarefas Especiais”, especializou-se em sabotagem e assassinatos. A homossexualidade era ilegal na URSS, mas recrutavam-se homossexuais para atrair estrangeiros gays, que seriam depois chantageados. A KGB não tinha princípios e não se desculpava por isso. No entanto, era um lugar hipócrita e moralista. Oficiais eram proibidos de beber durante o expediente, embora muitos bebessem sem reservas em todos os outros momentos. Fofocas sobre a vida privada dos colegas circulavam pela KGB, como na maioria dos escritórios, com a diferença de que, no Centro, escândalos e conversas-fiadas podiam destruir carreiras e acabar em morte. A KGB tinha um interesse invasivo nos arranjos domésticos de seus funcionários, pois nenhuma vida era privada na União Soviética. Esperava-se que os oficiais se casassem, tivessem filhos e permanecessem casados. Havia um cálculo preciso nisso: um oficial casado era considerado menos propenso a desertar enquanto estava no exterior, uma vez que sua esposa e a família poderiam ser mantidas como reféns.

Dois anos depois de ingressar na Diretoria S, Oleg se deu conta de que não ia seguir os passos do irmão como espião infiltrado no exterior. O próprio Vasili pode ter sido a razão que levou Oleg a ser rejeitado para fazer trabalhos como ilegal: de acordo com a lógica da KGB, ter mais de um membro da família no exterior, e particularmente ter dois no mesmo país, podia ser um incentivo à deserção.

Oleg estava entediado e frustrado. Um trabalho que parecia prometer aventura e empolgação acabou por ser extremamente enfadonho. O mundo além da Cortina de Ferro, sobre o qual ele tinha lido nos jornais ocidentais, parecia irresistivelmente fora de seu alcance. Então ele decidiu se casar. “Eu queria ir para o exterior o mais rápido possível e a KGB nunca enviava homens solteiros. Eu tinha pressa para encontrar uma esposa.” Uma mulher com habilidades em alemão seria ideal, já que os dois poderiam ser enviados juntos para a Alemanha.

Yelena Akopian estava treinando para ser professora de alemão. Tinha 21 anos, era metade armênia, inteligente, de olhos escuros e muito astuciosa. Era a rainha do sarcasmo, algo que ele achou atraente e sedutor por algum tempo. Eles se conheceram na casa de um amigo em comum. O que os aproximou tinha menos a ver com paixão e mais com uma ambição compartilhada. Como Oleg, Yelena ansiava por viajar para o exterior e imaginava para si uma vida muito além dos limites do apartamento apertado onde morava com os pais e cinco irmãos. Os poucos relacionamentos anteriores de Gordievsky tinham sido breves e insatisfatórios. Yelena parecia oferecer um vislumbre do que uma mulher soviética moderna poderia ser, menos convencional do que as estudantes que ele conhecera, com um senso de humor imprevisível. Ela se declarava feminista, embora, na Rússia dos anos 1960, o termo fosse estritamente limitado. Ele se convenceu de que a amava. Ficaram noivos, Oleg mais tarde observou, “sem refletir muito e sem que nenhum dos dois fizesse uma autoanálise”, e depois se casaram, sem muito alarde, por razões que nada tinham a ver com romantismo: ela aumentaria as chances de promoção para ele, que seria o passaporte de Yelena para fora de Moscou. Um casamento de conveniência da KGB, embora não admitissem isso um para o outro.

No fim de 1965 apareceu a oportunidade que ele estava esperando. Foi aberta uma vaga para um posto de gerenciamento de ilegais na Dinamarca. Seu disfarce seria o de um funcionário consular oficial que lidava com vistos e heranças; na realidade, ele estaria trabalhando para a Linha N (de nelegalniy, ou ilegais), responsável pelo trabalho de campo operacional da Diretoria S.

Ofereceram o posto a Oleg, para coordenar uma rede de espiões disfarçados na Dinamarca. Ele aceitou com entusiasmo e prazer. Como Kim Philby observou depois de ter sido recrutado pela NKVD em 1933: “Você jamais hesita em se juntar a uma força de elite.”

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Ben Macintyre

Sobre o autor

Ben Macintyre

BEN MACINTYRE é autor de mais de 10 obras de não ficção, além de colunista e editor do The Times. Já trabalhou como correspondente do jornal em Nova York, Paris e Washington. O espião e o traidor entrou na lista de mais vendidos do The Sunday Times e do The New York Times e foi considerado um dos melhores livros de 2018 pela The Economist, sendo finalista do National Book Award, do Prêmio Bailie Gifford de Não Ficção e do Prêmio da Pushkin House.

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