Tudo tem um começo. Mas esta história começou mesmo de um final.
Depois de 45 anos de dedicação à RBS, Rede Brasil Sul de Comunicações, Nelson Pacheco Sirotsky decidiu abrir mão de qualquer papel executivo dentro da empresa fundada por seu pai. Durante uma vida, ele canalizou toda a sua paixão e energia para a empresa.
No início, quando entrou lá, um jovenzinho de 17 anos, a idolatria pelo pai, Maurício Sirotsky Sobrinho, guiava seus passos. Mesmo sendo filho do fundador da empresa, Nelson batia diariamente o seu cartão de ponto como assistente de contabilidade no prédio da avenida Ipiranga, 1.075, em Porto Alegre. Depois, quando passou a trabalhar na rádio, cada conquista sua era uma conquista de vida. Como se a RBS fosse mesmo a vida de Nelson, como se tudo o mais em sua existência viesse a reboque da empresa sonhada por seu pai.
Mas chegou um momento em que viu que isso não era verdade. A vida de uma pessoa não é apenas a sua trajetória profissional, a vida é grande demais, ela é um céu: nunca é apenas uma estrela. Cada um de nós é um conjunto de coisas, e Nelson começou a pensar na constelação da sua própria existência.
Nos últimos 45 anos, ele fizera tudo o que uma pessoa poderia fazer dentro de uma empresa de comunicação. Durante todo esse tempo, nunca tinha deixado o trabalho em segundo plano. Mesmo nas viagens, não se passara um único dia sem que pensasse na RBS. As notícias vinham por telefone, por telex, ele recebia os jornais por fax, tomava decisões por telegrama, por e-mail. Nas férias, telefonemas se sucediam e pendências eram resolvidas a milhares de quilômetros de distância da sede da RBS, na avenida Erico Verissimo, em Porto Alegre.
Então, após quatro décadas e meia de dedicação a um projeto que capitaneou a comunicação no Sul do Brasil, Nelson descobriu que estava na hora de viver novas experiências profissionais. Um ciclo começava a se fechar na sua vida, uma grande mudança se avizinhava, e ele soube estar aberto ao novo, à transcendência.
Ele queria fazer coisas novas e de forma diferente. Era a hora de deixar o comando da RBS. Não que fosse fácil se desapegar do poder! A maioria dos homens passa a vida regulando o seu equilíbrio particular com o poder, as suas relações de poder com a família, com seu mundo profissional e com a sociedade. E Nelson tinha estado no comando de uma das maiores estruturas de comunicação do país. Sua vida tinha sido de convites sem fim: fora a muitas posses de governadores e presidentes, conhecera pensadores e empresários de sucesso mundial, políticos de todas as correntes ideológicas, pessoas interessantes e outras não tão interessantes assim, convivera com atletas de ponta e privara com artistas nacionais e internacionais.
Fora da RBS, seu telefone não tocaria tanto, ele não seria chamado para inúmeros eventos e encontros. Mas o que ele iria perder? Nelson ficou algum tempo pensando nisso, e então teve certeza de que não haveria receios nem dúvidas. Ele estava preparado para encerrar essa etapa da sua vida. E deixar algo para trás, num mundo onde todos parecem querer sempre mais, é uma decisão rara e honrosa. Abrir mão não é fácil.
Nelson gosta de lembrar uma frase do sogro: “Quando eu acordei, já tinha 60 anos.” O seu próprio pai, Maurício Sirotsky Sobrinho, morrera com essa mesma idade. E quase 30 anos depois, Nelson, na casa dos 60, pensava em se afastar da RBS.
Seu legado relacionado à RBS estava feito. Ele tinha novos empreendimentos a tocar, novos sonhos a realizar, que certamente farão parte do seu legado pessoal, mas que acontecerão fora da RBS.
Em dezembro de 2015, Nelson publicou no jornal Zero Hora uma carta pública explicando os motivos que o levaram a deixar a empresa de uma vida. Nessa carta, ele abria mão de todas as suas funções executivas na RBS. Em janeiro de 2016, já afastado da empresa, passando férias na sua casa na Barrinha, em Garopaba, Santa Catarina, começou a pensar que deveria escrever um livro e contar a sua história, a história dos 45 anos que dedicara à RBS, a história da empresa que ele também construíra – a trajetória do jovem que começou cedo, ousou, desbravou fronteiras, enfrentou o pai, demitiu-se aos 20 anos e assumiu a presidência do grupo aos 38. A história do empresário, mas também do pai, do marido, do homem. Do Nelson que é um poço de energia, uma explosão de vigor, uma risada contagiante.
E foi assim que eu entrei nestas páginas…
Eu já contei a vida do meu avô polonês, da Manuela, da Anita e do Giuseppe Garibaldi e de dezenas de outros personagens inventados. Mas Nelson está aqui comigo – passamos incontáveis horas juntos no último ano, entre risadas, papéis e memórias. Este misto de convivência e de palavras poderá dar certo ou errado, só vocês saberão dizer, e apenas ao final deste livro. Nelson é o primeiro personagem que virou meu amigo.
Eu gosto de histórias de vida, gosto de coragens e de sagas familiares. Estas páginas são um pouco de tudo isso, e também o lampejo das minhas imaginações. Porque eu sou uma ficcionista, e Nelson tem uma vida que daria um baita romance.
Mas o que temos aqui é uma história real, que começou lá em Erebango, interior do Rio Grande do Sul, e antes ainda, num tempo de viagens sem volta, quando a família Birmann e a família Sirotsky atravessaram meio mundo para fazer uma vida nova na América. Esta é uma narrativa de sucessos e de coragens, de finais e de recomeços. E também de inaugurações.
Pois, como disse Roberto Irineu Marinho, então presidente das Organizações Globo, quando da venda da RBS em Santa Catarina, Nelson é um homem que gosta de inaugurar coisas, não de vendê-las.
Concordo com ele.
Como bom pisciano, Nelson Pacheco Sirotsky é mesmo um homem de amanhãs.
Leticia Wierzchowski
Este não é um livro de memórias. Não é uma biografia. Não é uma história empresarial. Não é uma obra de ficção. Não é um romance. Não é um livro de revelações. O oitavo dia é um pouco de tudo isso.
Como qualquer pessoa, tenho muitas histórias e lembranças guardadas na memória. E, há algum tempo, tem me batido uma vontade crescente de registrar uma parte delas.
Todos os relatos que figuram neste livro foram feitos por mim, de forma absolutamente sincera e honesta, pois só fariam sentido se cumprissem com o papel de deixar um legado para meus filhos e netos, principal motivação deste projeto.
Os assuntos aqui abordados têm a minha perspectiva da verdade, que, como qualquer verdade, não é absoluta. Certamente, existem outras verdades sobre muitos dos fatos aqui narrados, e eu respeito todas.
Tenho a ventura de viver uma vida vibrante e emocionante sob muitas perspectivas. Quando deixei de exercer funções executivas na RBS, no final de 2015, decidi dividir com os companheiros da empresa, e com o público, as razões daquela decisão tomada aos 63 anos de idade, depois de 45 anos de intensa atividade profissional na empresa de comunicação fundada por meu pai, em 1957.
Por essa razão, escrevi uma carta aos colaboradores da RBS, que acabou sendo publicada no jornal Zero Hora. Nessa carta, expliquei que resolvera me afastar para começar uma nova jornada, para fazer coisas diferentes nos anos que viriam, sem ter a empresa de comunicação como elemento central de minha vida.
Somente mais tarde me dei conta de que, ao escrever essa mensagem, eu estava, na verdade, fazendo uma profunda reflexão sobre a minha existência, meus aprendizados e emoções, e sobre como eu gostaria de dividir essas histórias com outras pessoas.
Aliás, acho que esse ímpeto de comunicar, esse desejo tão forte de compartilhamento, está no meu sangue. Talvez venha da minha avó materna, Judith, que não conheci, mas que era professora de música e levava minha mãe para cantar nos palcos do interior do Rio Grande do Sul, compartilhando o seu jovem talento com o público gaúcho da década de 1930. Quem sabe venha também do meu avô materno, Pedro, advogado e político em Passo Fundo, conhecido por sua capacidade oratória. Tenho ainda, certamente, influência direta dos meus avós paternos, José e Rita, também ótimos contadores de histórias. E, evidentemente, carrego o sangue do meu pai, um homem vocacionado e apaixonado por comunicação. Sua vida e obra são provas disso.
Das minhas experiências e da minha vontade genuína de comunicar, nasce este livro. No início, eu não tinha a menor ideia do que faria com estas reflexões. Simplesmente comecei a gravá-las, sem qualquer outra intenção que não fosse uma espécie de revisão dos fatos da minha vida. Revisitei, comigo mesmo, episódios e lembranças dos meus dias e anos, e os guardei em arquivos de voz. Imaginava um dia transformá-los, quem sabe, em uma publicação, mas só tomei essa decisão em fevereiro de 2017, quando a Rádio Gaúcha completou 90 anos e fui solicitado por muitas pessoas a contar histórias, minhas e de meu pai, da nossa família, do início da RBS. Relembrei muitas delas no ar e outras tantas para amigos e colaboradores da empresa. E, quando percebi que as pessoas tinham interesse em ouvi-las, tomei a decisão: iria levar adiante a ideia do livro.
Outro fator determinante para seguir em frente foi ter me tornado avô. A relação com meus netos, essa nova e indescritível emoção na minha vida, aumentou minha vontade de deixar registradas algumas histórias para o futuro.
Nunca tive a pretensão de me transformar num escritor. Pensei em vários jornalistas que poderiam me ajudar a dar um formato de narrativa aos meus relatos, mas acabei acatando a sugestão da amiga e empresária Anik Suzuki de, em vez de chamar um jornalista, convidar um escritor gaúcho para dividir comigo este projeto.
Assim surgiu o nome de Leticia Wierzchowski, que eu só conhecia pela sua obra mais famosa, A casa das sete mulheres. Antes de entrar em contato com ela, li dois livros de sua autoria: Neptuno, romance em que o personagem principal é um homem e a autora assume essa voz masculina na narrativa, e Uma ponte para Terebin, no qual ela conta a história de seu avô polonês. Na sequência, já durante a produção deste livro, eu leria Travessia, sobre as aventuras de Giuseppe e Anita Garibaldi no Sul do Brasil, no Uruguai e na Itália.
Antes mesmo de terminar as leituras, concluí que Leticia era a profissional adequada para esta parceria literária. Por mais de 15 meses, trabalhamos juntos, repassei a ela todas as histórias que estão neste livro, conversamos muito; e ela, com seu talento de ficcionista, deu um formato diferenciado e inovador aos relatos que eu guardo na memória.
Desde o primeiro contato, combinamos que o resultado deste nosso trabalho conjunto poderia ser entregue apenas a minha família ou mesmo nem ser publicado. Depois de pronto, porém, tive certeza de que deveria compartilhá-lo com quem tivesse interesse na leitura.
Aí está, portanto, O oitavo dia. Leticia organizou os episódios da minha vida em quatro narrativas que se alternam ao longo da obra. A primeira, “A árvore da vida”, resgata os vínculos familiares e afetivos, a minha relação com meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha mulher, meus filhos e netos. A segunda, “A chave do cofre”, trata da relação profissional com meu pai e com a RBS. A terceira, “O oitavo dia”, que também dá título ao livro, retrata a transformação que estou vivendo depois dos 60 anos. Já a quarta, “Autorretrato”, é um mergulho em meus próprios sentimentos e emoções, nos meus valores, na minha espiritualidade e nas minhas reflexões mais profundas sobre o processo de tomada de decisões, tanto no âmbito pessoal quanto no empresarial. Em “Autorretrato”, escrevo em primeira pessoa, pois não poderia transferir a ninguém a missão de fotografar minha própria alma.
Nelson P. Sirotsky