INTRODUÇÃO
– Pare de chorar – ameaçava – É melhor calar a boca.
Meu rosto assumia um ar estoico. Meu coração desacelerava. Eu mordia com força o lábio inferior, para que nenhuma palavra escapasse da minha boca.
– Estou fazendo isso porque te amo – repetia ela sua desculpa em meu ouvido.
Quando criança, eu apanhava regularmente. À época, era aceitável que quem cuidasse de uma criança recorresse a castigos corporais para educá-la. Minha avó, Hattie Mae, era adepta dessa prática. Mas, mesmo aos 3 anos, eu sabia que aquilo era errado.
Uma das piores surras de que me lembro aconteceu em um domingo de manhã. A ida à igreja era um acontecimento importante em nossa vida. Um pouco antes de sairmos para o culto, me mandaram ir até o poço atrás da nossa casa para bombear água – a casa de fazenda onde eu morava com meus avós não tinha encanamento interno. Da janela, minha avó me viu mergulhando os dedos na água e ficou enfurecida. Embora eu estivesse apenas brincando, na maior inocência, como qualquer criança, ela ficou brava porque aquela era nossa água para beber, e eu tinha colocado os dedos nela. Quando voltei com o balde, ela me perguntou se eu tinha brincado com a água, e eu respondi “não”. Minha avó dobrou meu corpo e me açoitou com tal violência que deixou minha carne cheia de vergões. Depois disso, até consegui colocar meu melhor vestido branco de domingo, mas o sangue começou a vazar e a manchar de um vermelho intenso o tecido engomado. Lívida ao perceber o que acontecia, ela me bateu por sujar meu vestido de sangue, depois me mandou à escola dominical. No Sul rural, era assim que as crianças pretas eram educadas. Eu não conhecia ninguém que não fosse açoitado.
Eu apanhava pelos motivos mais insignificantes: derrubar água, quebrar um copo, não conseguir ficar quieta ou parada. Certa vez, ouvi um comediante preto dizer: “A caminhada mais longa é para buscar a vara com a qual nos açoitarão.” Eu não apenas tinha que caminhar para buscar a vara, como, se não houvesse uma disponível, era obrigada a sair para procurar. Um galho fino, ainda verde, funcionava melhor, mas se fosse fino demais eu tinha que trançar dois ou três. Com frequência, minha avó me obrigava a ajudá-la a trançar a vara. Às vezes, as surras eram reservadas para o sábado à noite, quando eu tinha acabado de sair do banho e ainda estava nua.
Depois, quando eu mal conseguia ficar em pé, ela dizia para eu “desmanchar essa cara feia” e começar a sorrir. Enterrar aquilo como se jamais tivesse acontecido.
Com o tempo, desenvolvi uma intuição apurada para problemas em ebulição. Reconhecia a mudança na voz da minha avó, ou o “olhar” que mostrava que eu a havia desagradado. Ela não era má pessoa. Acho que se preocupava comigo e queria que eu fosse uma “boa menina”. E entendi que “calar a boca” ou simplesmente ficar em silêncio era a única maneira de assegurar que o castigo e a dor acabariam logo. Nos 40 anos seguintes, o padrão de submissão condicionada, resultado de um trauma profundamente enraizado, definiria qualquer relacionamento, interação e decisão na minha vida.
A longo prazo, o impacto de ter apanhado, depois ser forçada a calar a boca e por fim a sorrir apesar do que havia acontecido me transformou, na maior parte da minha vida, em uma pessoa que vivia para agradar os outros. Se eu tivesse sido criada de outra maneira, não teria levado metade da vida para aprender a impor limites e dizer “não” com confiança.
Como adulta, sou grata pelos relacionamentos duradouros, fortes e amorosos que mantenho com muitas pessoas. No entanto, as surras da infância, as fraturas emocionais e os vínculos fragmentados que construí com as figuras centrais nos meus primeiros anos de vida sem dúvida ajudaram a desenvolver minha independência solitária. Nas poderosas palavras do poema “Invictus”, sou a capitã da minha alma e mestre do meu destino.
Milhões de pessoas, quando crianças, foram tratadas como eu e cresceram acreditando que sua vida não tinha valor.
Minhas conversas com o Dr. Bruce, e com as milhares de pessoas que tiveram a coragem de compartilhar suas histórias comigo no The Oprah Winfrey Show, me ensinaram que o modo como fui tratada por aqueles que deveriam cuidar de mim não produziu apenas consequências emocionais. Houve também uma reação biológica. Graças ao meu trabalho com o Dr. Perry, meus olhos se abriram para o fato de que, apesar de eu ter sofrido abuso e trauma quando criança, meu cérebro encontrou maneiras de se adaptar.
É aí que vive a esperança para todos nós: na adaptabilidade singular de nosso cérebro maravilhoso. Como o Dr. Perry explica neste livro, compreender a reação do cérebro a traumas precoces ajuda a esclarecer como o que nos aconteceu no passado molda quem somos, como nos comportamos e por que fazemos o que fazemos.
Por meio dessas lentes, podemos construir um renovado senso de autovalorização e por fim recalibrar nossas reações a circunstâncias, situações e relacionamentos. Em outras palavras, é a chave para reformular nossa própria vida.
– Oprah Winfrey
Certa manhã, em 1989, eu estava trabalhando no meu laboratório – o Laboratório de Neurociências do Desenvolvimento da Universidade de Chicago –, analisando os resultados de um experimento recente, quando meu assistente apareceu na porta e disse:
– É a Oprah no
– Tudo Anote o recado.
Eu tinha passado a noite toda escrevendo. Os resultados do experimento pareciam confusos. Não havia clima para brincadeiras.
Ele sorriu.
– Não, estou falando sério. É alguém da
Não havia um motivo possível para Oprah me telefonar. Eu era um jovem psiquiatra infantil estudando o impacto do estresse e do trauma no desenvolvimento. Apenas algumas pessoas tinham conhecimento do meu trabalho acadêmico e a maioria dos meus colegas na psiquiatria não levava em alta conta as neurociências nem os traumas infantis. O papel do trauma na saúde mental e física era algo inexplorado. Pensei que um dos meus amigos estivesse me passando um trote, mas atendi a ligação.
– A Sra. Winfrey está convocando um encontro de líderes nacionais na área de abuso infantil, em Washington, daqui a duas semanas. Gostaríamos que o senhor comparecesse.
Após mais explicações, ficou claro que muitas pessoas renomadas e consagradas participariam do encontro. Meu trabalho – estudar o impacto do trauma no desenvolvimento do cérebro – se perderia em meio a pontos de vista dominantes e mais aceitos politicamente.
Recusei, gentilmente.
Várias semanas depois, recebi outra ligação.
– A Oprah está convidando o senhor para um retiro de um dia na fazenda dela, em Além do senhor e da Oprah, haverá mais duas pessoas. Queremos discutir soluções para o problema do abuso infantil.
Dessa vez, com uma chance de oferecer uma contribuição mais significativa, aceitei.
A voz predominante naquele dia foi a de Andrew Vachss, autor e advogado especializado em representar crianças. Seu trabalho pioneiro ressaltou a necessidade de rastrear pedófilos conhecidos. Àquela altura, eles podiam se mudar de um estado para outro e não havia como controlar onde estavam, nem se estavam cumprindo com as restrições de evitar o contato com crianças. Nosso encontro de 1989 em Indiana levou ao esboço do National Child Protection Act (Lei Nacional de Proteção à Criança) de 1991, que criou um banco de dados nacional de pedófilos condenados. Em 20 de dezembro de 1993, após dois anos de argumentações, incluindo um depoimento ao Comitê Judiciário do Senado Americano, o “Projeto Oprah” foi transformado em lei.
Aquele dia em 1989 gerou muitos outros debates. Alguns aconteceram no The Oprah Winfrey Show para discutir histórias específicas de crianças e campanhas sobre a importância da primeira infância para o desenvolvimento do cérebro. No entanto, a maioria das nossas conversas foi no contexto da Oprah Winfrey Leadership Academy of Girls (OWLAG/Academia Oprah Winfrey de Liderança para Meninas), fundada por Oprah na África do Sul em 2007. Essa instituição notável foi criada para selecionar, apoiar, educar e aprimorar meninas “menos favorecidas” com grande potencial. A intenção explícita é produzir futuras líderes. Muitas dessas meninas haviam demonstrado resiliência e alcançado grandes conquistas escolares apesar de uma série de adversidades, incluindo pobreza, perdas traumáticas e violência comunitária ou intrafamiliar. Desde o início, a escola atuou com base em muitos dos conceitos que discutimos neste livro. Atualmente, a OWLAG está se tornando um modelo de projeto educacional sensível ao impacto dos traumas e atento ao desenvolvimento.
Em 2018, Oprah e eu estivemos juntos no programa 60 Minutes para uma reportagem sobre “cuidado relacionado a trauma”. A edição final manteve apenas dois minutos da nossa conversa, mas milhões de pessoas estavam assistindo. Houve enorme empolgação na comunidade de profissionais que trabalham com trauma. Porém, há muito mais a dizer.
O entusiasmo que nossa participação despertou foi, em parte, um reflexo do entusiasmo da própria Oprah por esse tópico tão relevante. No This Morning, da CBS, ela disse à apresentadora do programa, Gayle King, que seria capaz de subir numa mesa e dançar se isso chamasse a atenção do público para o impacto do trauma no cérebro infantil em desenvolvimento. Em um adendo da CBS News ao pro- grama 60 Minutes, Oprah declarou que aquela era a empreitada mais importante da sua vida.
Ao longo de toda a sua carreira, Oprah tem falado sobre abuso, negligência e cura. Seu empenho em trazer esclarecimentos sobre traumas e seus desdobramentos tornou-se uma característica dos programas que comanda. Milhões de pessoas viram Oprah ouvir, se solidarizar, consolar e aprender com pessoas com experiência ou conhecimento sobre traumas de todos os tipos. Ela explorou os impactos de perda traumática, maus-tratos, abuso sexual, racismo, misoginia, violência doméstica, violência comunitária, problemas de identidade sexual e de gênero, cárcere privado e muito mais, e assim nos ajudou a refletir sobre a saúde, a cura, o desenvolvimento pós-traumático e a resiliência.
Durante 25 anos, The Oprah Winfrey Show analisou de forma profunda e criteriosa como a adversidade, o desafio, a dificuldade, o estresse, o trauma e a resiliência influenciam o desenvolvimento. Ela explorou o transtorno dissociativo de identidade em 1989; a importância das experiências na primeira infância para o desenvolvimento cerebral em 1997; os direitos de crianças adotadas em 2005; o impacto da negligência severa em 2009, só para citar alguns exemplos. De várias maneiras, seu programa abriu caminho para uma consciência sistêmica e maior desses problemas. A última temporada incluiu um episódio em que 200 homens, inclusive o comediante Tyler Perry, revelaram suas histórias de abuso sexual. Ela tem sido, e continuará a ser, uma defensora e guia para pessoas afetadas pela adversidade e por traumas.
Oprah e eu conversamos sobre trauma, cérebro, resiliência e cura há mais de 30 anos. Sob vários prismas, este livro é o ápice dessas trocas, trazendo histórias humanas para iluminar a ciência por trás de tudo isso.
Há inúmeros aspectos do desenvolvimento, do cérebro e do trauma a serem tratados em um único livro, especialmente se for escrito por meio de histórias. A linguagem e os conceitos usados aqui traduzem o trabalho de milhares de cientistas, médicos e pesquisadores em campos que vão da genética à epidemiologia, passando pela antropologia. É um livro para qualquer pessoa e para todas as pessoas.
O título O que aconteceu com você? representa uma mudança de perspectiva e um reconhecimento do poder do passado sobre nossas ações do presente. A frase surgiu no grupo de trabalho pioneiro da Dra. Sandra Bloom, criadora do Sanctuary Model, uma abordagem teórica para estimular na sociedade uma cultura atenta aos traumas e suas consequências.
Nas palavras da Dra. Bloom:
Nós [a equipe de tratamento do Sanctuary] estávamos numa reunião de equipe por volta de 1991 em nossa unidade de internação. Tentávamos descrever a mudança que observamos no reconhecimento e na resposta ao problema do trauma, especialmente quanto ao que agora se tornou conhecido como adversidade infantil – como causa dos problemas da maioria das pessoas que estávamos tratando. Naquele momento, Joe Foderaro, assistente social clínico, sempre arguto, disse: “É porque mudamos nossa pergunta fundamental de ‘Qual é o seu problema?’ para ‘O que aconteceu com você?’”
Oprah e eu estamos convencidos de que fazer a pergunta fundamental “O que aconteceu com você?” pode ajudar cada um de nós a entender um pouco mais sobre como somos moldados pelas experiências, tanto as boas quanto as ruins. Ao compartilhar essas histórias e esses conceitos científicos, nossa esperança é que cada leitor, à sua maneira, perceba como pode ajudar todos nós a viver uma vida melhor e mais gratificante.
– Dr. Bruce Perry