Astolfo,
Homem-mulher
A história de vida de Astolfo Barroso Pinto mais parece ficção. Suas aventuras, os sucessivos desafios, a forte personalidade e a afirmação profissional o tornaram único e abriram caminho para o surgimento do artista irresistível, quase mítico: Rogéria, também conhecido, carinhosa e anacronicamente, pelo epíteto de “travesti da família brasileira”.
Meus fãs são as avós, as mães, as tias que chegam e falam pros filhos, netos e sobrinhos: “Olha, esta é a Rogéria!” Me apresentam como se me conhecessem há anos. Engraçado, os homens me chamam de senhora, eu construí essa imagem de respeito.
Falo com muita gente. Quando vejo uma senhora que me sorri, vou até ela e converso. Ouço muito as pessoas dizerem: “Sempre tive vontade de falar que acho você uma simpatia, Rogéria!” Adoro. Também recebo críticas e aceito numa boa. Quase sempre têm razão.
Meu Facebook, meu Twitter é andar na rua. Tenho essa disponibilidade, gosto disso. Meus amigos sempre reclamam: “Você parece um trem parador!” Sou cobrada, testada pelo povo, talvez por isso represente, de certa forma, um pedaço da família brasileira.
No conto “O homem-mulher” do livro homônimo do escritor carioca Sérgio Sant’Anna, o protagonista, Adamastor Magalhães, ou Zezé, desde a sua origem, em Belém do Pará, queria ser um misto de menino e menina. Morando com a mãe, a tia solteirona e duas irmãs, já na adolescência começou a representar o feminino, vestindo-se de mulher. Primeiro no Carnaval, para depois perder-se de si mesmo tentando atestar no seu cotidiano essa realidade dúbia. Longe de querer se transformar num travesti, Adamastor, heterossexual, foi aproveitando cada vez mais seu corpo-figurino, ambivalente, que queria se oferecer ao mundo como um personagem único, o de homem-mulher. Na verdade, um lésbico. O único caminho possível para ele era a representação cênica e o teatro. No êxito ou no fracasso, um personagem de vida e palco, que só na teatralização poderia encontrar refúgio.
Seria possível traçar um sutil paralelo com a realidade que aqui se quer contar. De Belém para Cantagalo, norte do Rio de Janeiro, Astolfo Barroso Pinto seria o Adamastor que criara o seu próprio Zezé performático. Cada qual com seu modo e grau, realidade e ficção dando vida a seus personagens e assumindo opções sexuais (Rogéria com homens, Zezé com mulheres), na antevisão da arte como única saída. Destaque-se a diferença de resultados na trajetória de cada um: na ficção, Adamastor não consegue o sucesso de Zezé e comete suicídio. Já Astolfo, no dia a dia, leva sua Rogéria, com talento e superação, ao improvável êxito.
Ficcional ou real, a conjunção de verdade e ilusão na construção dessas vidas está na sua maravilhosa capacidade de dar voz e alento às próprias fantasias.
A estreia
“Não nasci, eu estreei.”
No dia 25 de maio de 1943, uma quarta-feira ensolarada, num quarto de uma casa no município de Cantagalo, a jovem Eloah Barroso entrava em trabalho de parto. Dois médicos e um padre foram chamados para uma emergência. A indicação era o uso de fórceps, cuja fama, ao longo da história, nunca fora boa. Se mal utilizado, poderia causar danos ao cérebro, aos olhos, às orelhas, ao nariz e aos nervos faciais do bebê. A mãe perdia sangue, e era preciso abreviar o período expulsivo, quando a mulher faz força para dar à luz a criança. Depois de algumas horas e muita tensão, nascia Astolfo Barroso Pinto, um bebê saudável de 3,10 quilos, primeiro filho da união de Eloah com Dídimo Acácio Pinto, um maquinista da Leopoldina.
O nome foi herdado do avô materno, Astolfo Barroso, figura importante da comarca de Cantagalo, terra de Euclides da Cunha. A escolha tinha sido de Eloah, que morava em Niterói mas quis ter o filho onde seu pai nascera. Curiosamente, antes de se decidir pela homenagem ao velho Astolfo, o casal cogitava dar ao menino o nome de Edmundo.
Mãe e filho passaram apenas 15 dias na cidade antes de retornar a Niterói, onde moravam na rua Doutor Carlos Maximiano, 186, Fonseca.
O casamento de Eloah e Dídimo dava evidentes sinais de que não iria longe e, de fato, não demorou a ocorrer a separação. Eloah confessava que ficara arrependida já na lua de mel. Ao entrar no quarto e tirar seu vestido de noiva, na célebre frase “Enfim, sós”, ela certamente preferiria ter ficado só. Ainda assim, antes da separação, o casal teve outro filho, Cyr Assis Barroso Pinto.