Capítulo I
l. Destino
Depois de cinco horas ininterruptas de viagem, o carro começou a passar por pastos e belas paisagens. Não se viam mais os povoados medievais. O motorista estava tenso. As rugas na testa e nos cantos dos olhos eram realçadas pelas frequentes caretas de insatisfação e cansaço.
– Onde estou? Será que não vou chegar nunca? – perguntava em voz alta, fitando o painel do carro.
Ele olhava para todos os lados, procurando algum ponto de referência.
Por fim, o solitário sacerdote avistou uma plaqueta de madeira: Strada Provinciale. Sorriu e deu um tapa no volante com toda a força. Apenas dez minutos antes, estava prestes a aceitar que não chegaria tão cedo ao destino. Já planejava encontrar alguma pousada para passar a noite, pois estava perdido entre o mar Adriático e o interior da região de Foggia. Agora, a incômoda situação acabara de mudar.
“Quando se olha o mapa, tudo parece tão simples…”, pensou, mirando o vasto campo esverdeado pela janela fechada do pequeno automóvel, com um sorriso de canto de boca. Olhando para trás, tentou enxergar algum outro ser humano. Não havia mais ninguém além das vacas que pastavam com tranquilidade.
Pelo mapa da região e pelas orientações que lhe foram dadas em Roma, escritas de improviso em um papel qualquer, daquele ponto em diante bastava seguir uma linha reta. Tudo se simplificara em poucos instantes.
“Deus é bom!”, pensou, aliviado.
E imaginar que, inicialmente, havia recusado o mapa oferecido pelo funcionário na loja de aluguel de carros. Estufando o peito com empáfia, dissera ao italiano:
– Para que esse pedaço de papel se hoje tenho toda a tecnologia em meu celular? Já ouviu falar de GPS?
Irritado, o homem retrucou, sem nenhuma diplomacia:
– Senhor, parabéns por sua tecnologia, mas se não quiser ficar perdido no meio do nada, com seu celular caro e suas malas, leve este mapa também. Escrevi no verso as orientações. Turisti…
De fato, durante o percurso, em algumas localidades, não havia sinal de celular. O pedaço de papel o salvara.
Poucos minutos o separavam do ponto de chegada. Mais tranquilo, encostou o carro para relaxar. Saltou e observou melhor o caminho à frente. Avistou, a distância, o monte Gargano. Aos pés dele, identificou o início da estrada sinuosa que, segundo as instruções recebidas, o levaria até o cume. No topo, enfim, encontraria os muros da minúscula cidade de Monte Sant’Angelo, onde passaria uma temporada. Seu coração adotou novo compasso, mais sereno.
“Depois de tantas horas dentro deste carro, não aguento mais. Se pudesse, o largaria aqui e iria a pé. Mas preciso resistir. Ainda faltam alguns minutos”, refletiu, cansado.
Olhou para o céu e inspirou fundo. Então, abriu a porta do carro e deu a partida. Sua mente se fixou nos acontecimentos que o incomodavam havia meses. Antigas perguntas continuavam a martelar: Existe destino? É possível mudá-lo? Será que minha derrota já está sacramentada? Um ano tinha se passado, mas os problemas, que se iniciaram em um fim de tarde, ainda ameaçavam destruir tudo o que construíra com enorme esforço.
“Como está frio aqui! Raniero me avisou que, nesta época do ano, a temperatura era baixa, mas não dei importância”, lamentou-se o sacerdote brasileiro, enquanto o carro seguia devagar.
Deixando de lado o sofrimento por um tempo, a mente de José se deteve na figura de Raniero. Era um italiano de 50 anos que havia se ordenado padre aos 25. Nascera naquela região, Foggia. Seus dois irmãos eram sacerdotes, e suas três irmãs, freiras. Tratava-se de um homem bem-humorado, em quem se podia confiar em qualquer hipótese. Enfrentava as situações do cotidiano com uma leveza especial, sempre sorrindo e fazendo piadas. Seu maior defeito era a gula. Não resistia a um bom prato, sobretudo se acompanhado por um vinho da Toscana.
“A casa de meu grande amigo Raniero é minha última esperança. Quer dizer, a casa não é dele. Ele é apenas o administrador, o padre prior daquela comunidade. É a residência do arcanjo mais poderoso do universo!”
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José começou a se lembrar do primeiro dia em que almoçou com Raniero. Os dois tinham acabado de concelebrar a missa do meio-dia na capela da universidade onde José lecionava.
– Quer dizer que você veio da Itália para aprimorar o português aqui, na universidade?
– Sim. Estou matriculado no curso de português para estrangeiros.
– Me conte um pouco da sua história – pediu José.
– Sou o caçula da família. Todos os meus irmãos seguiram a vocação religiosa, assim minha mãe concentrou em mim sua esperança de se tornar avó. – Raniero parecia se divertir com a própria história. – Eu tinha um amor especial por ela e não queria desapontá-la, mas o chamado ao sacerdócio era algo que eu considerava seriamente.
– Imagino a dificuldade que deve ter sido.
– Um dia, ao voltar do médico, minha mãe me chamou ao seu quarto. Após se sentar em sua poltrona predileta, me comunicou que estava com câncer de mama. Percebendo como fiquei abatido, disparou: “Raniero, você é minha última chance de eu ter um neto, antes de partir para junto de Deus.”
– Nossa, ela pegou pesado!
– Muito. Você não sabe como são as matronas italianas – disse Raniero, rindo. – O problema é que, naquela época, já havia decidido ser padre. Como o momento era complicado, decidi não contar logo à minha mãe.
– Como fez, então?
– Consegui um emprego no comércio local, como gerente de uma loja de ferragens. Foi uma etapa dura da minha vida, pois, naquele mesmo ano, um grande amigo meu ingressou na ordem franciscana.
– Sua mãe ficou curada? – perguntou José.
– Ela fez mastectomia e ficou bem. Mas, então, ocorreu algo inesperado. Um dia, enquanto caminhava para o trabalho, comecei a sentir fortes dores abdominais. Precisei ir ao médico da cidade. Ele pensou que se tratava de uma úlcera ou coisa similar. Prescreveu uma medicação. Os remédios não deram resultado e, numa sexta-feira, acabei indo parar na emergência de um hospital de Bari e fui internado. Quando os exames ficaram prontos, os médicos constataram um câncer no meu intestino, em grau avançado. A equipe médica não acreditava muito em minha recuperação. Minha família ficou apavorada.
– Você achou que fosse morrer?
– Sinceramente, não pensava na minha morte. Em minha cabeça, apenas um pensamento era dominante: queria me tornar sacerdote antes que fosse tarde demais. Aproveitei que a família estava toda ao meu redor no hospital e revelei que meu maior desejo era me tornar padre.
– Como sua mãe reagiu?
– Meus irmãos comemoraram de imediato. Disseram que Deus iria me curar para que eu fosse mais um discípulo em sua obra no mundo. Meus pais permaneceram calados. Olhei nos olhos de minha mãe e lhe pedi a bênção. Ela ficou alguns segundos em silêncio, depois assentiu, aos prantos. Pronto, estava livre para seguir meu caminho! O único problema era minha doença fatal.
– Um problema considerável, não é? – indagou José.
– Na verdade, foi a solução. Por causa da doença, São Miguel entrou em minha vida.
– Como?
– O capelão do hospital era um padre miguelino de idade avançada. Pedi que ele me visitasse, para eu me confessar. Após me dar a absolvição dos pecados, ele fechou os olhos e ficou um instante calado. Com a voz baixa, me perguntou: “Se o general da milícia celeste providenciar sua cura, você aceita se tornar um dos sacerdotes miguelinos?” Sem pestanejar, respondi que seria uma grande honra. Sem abrir os olhos, o padre se levantou e iniciou uma bela oração, clamando pelo poder do arcanjo guerreiro. Senti minha pele se arrepiar e, ao lado do sacerdote, vi surgir uma luz oval, mais alta do que ele, de tom vermelho-claro. Pensei que estava tendo uma alucinação. Esfreguei os olhos, mas a visão não se dissipava.
– Você costuma presenciar fenômenos místicos?
– Não – respondeu Raniero, sério. – Depois de aproximadamente um minuto, vi parte daquela luz tomar a forma de uma espada e atingir em cheio minha barriga. Foi uma dor lancinante. O sacerdote encerrou a oração e chamou os enfermeiros.
– Quem era o padre?
– Padre Istvan, um dos grandes homens santos de nossa ordem.
– Meu Deus, você recebeu a bênção das mãos dele?!
José já ouvira falar do sacerdote, pois tinha fama de milagreiro.
– Naquela época, eu não fazia a menor ideia de quem ele era. Diante do fenômeno no quarto do hospital, obviamente notei que não era um homem comum. No dia seguinte, quando acordei, me avisaram que teria de passar por uma cirurgia delicada, para a retirada do tumor no intestino. Concordei e lhes informei que estava pronto.
– Você teve medo?
– Um pouco. Quando os médicos me abriram para extirpar o tumor que me devorava o intestino, nada encontraram.
– Impressionante! – exclamou José. – Não havia nada em você? Nem uma ferida?
– Meu estado era excelente. A equipe ficou pasma. Começaram a analisar todos os exames feitos naquele hospital, nos dias que antecederam a intervenção. Em cada um deles, estava claro que eu não tinha grandes chances de sobrevivência. Assim que o efeito da anestesia passou, todos os médicos vieram me ver no quarto. Queriam me comunicar que meu estado de saúde era perfeito, mas que não tinham uma explicação para o acontecimento. Com alegria, falei que podia esclarecer tudo. Contei-lhes sobre meu encontro com padre Istvan, porém eles não acreditaram no milagre.
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Havia algum tempo, antes mesmo do infortúnio que o abatera, José trazia consigo o desejo de passar alguns meses com seu amigo na Itália. Um período de descanso, oração e estudo. Infelizmente, sua futura estada em Foggia não era fruto de uma situação agradável.
Virando o retrovisor, o sacerdote checou sua imagem. Estava de terno e sapatos pretos e, na gola da camisa branca, via-se o colarinho clerical. Parecia razoavelmente alinhado, apesar da longa viagem. José queria passar boa impressão na chegada. Não se tratava de mera vaidade: havia aprendido com gente importante que um padre sério precisava se apresentar bem. O problema, no entanto, era o frio.
Não possuía um terno apropriado para temperaturas tão baixas. No Rio de Janeiro, onde morara nos últimos anos, os termômetros não se aproximavam nem dos 10 graus. A calefação do automóvel amenizava um pouco o frio, mas não era suficiente. Melhor teria sido se agasalhar da forma adequada, construindo camadas de proteção por baixo da camisa social branca. Infelizmente, tal providência ficaria para os outros dias. Naquele momento, não valia mais a pena abrir o porta-malas para procurar vestimentas quentes.
Tão logo começou a subida do monte, José sentiu que o pequeno Cinquecento engasgava, perdendo força. Parecia contrariar o desejo que ocupava a mente do sacerdote: chegar logo. Depois de lutar contra o veículo por alguns minutos, o padre desistiu. Evitando que o carrinho morresse antes de completada a missão, decidiu engatar a primeira marcha, a única que parecia atender às necessidades do frágil motor. “Carro italiano… Por que não aluguei um automóvel alemão?”, pensou, aborrecido. Depois, se tocou de que o problema não estava na nacionalidade do veículo, afinal um dos mais rápidos e potentes do mundo era o Lamborghini, um esportivo caríssimo fabricado na Itália.
Como dizia o ditado, “devagar se vai ao longe”. Além disso, as curvas surgiam, intermináveis, em ângulos muito fechados. Maior velocidade, naquelas condições, seria imprudência. Sim, desde garoto, a prudência era uma de suas qualidades, a ponto de irritar sua mãe.
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– Deixe de ser medroso. Pule logo nessa água! Todo mundo está olhando e você está me envergonhando!
– Não dá para ver o fundo – respondeu o menino, desconfiado.
– Pule em pé, então. Ninguém se machucou. Seus amigos todos já estão na água. De onde veio esse seu lado medroso? De mim é que não foi. Só pode ter sido do seu pai.
– Mesmo caindo em pé, se estiver muito raso, posso me machucar sério. Amanhã nosso time tem uma partida importante, pelo campeonato de futebol dos colégios, e não quero ficar de fora por nada deste mundo, mãe.
– Vou ter que ir até a borda e te empurrar? Vai ser pior!
Com a cara fechada, Olga começou a andar, como um soldado marchando para o combate. Imediatamente, percebendo que não havia muita escolha, José respirou fundo e, com as pernas flexionadas e os braços encolhidos junto ao peito, pulou na piscina de águas naturais de coloração marrom.
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A lembrança fez com que José relaxasse um pouco mais ao volante, abrindo um sorrisinho. Voltando sua atenção para a estrada estreita e sinuosa, percebeu que, desde o início da subida, nenhum veículo o havia ultrapassado nem descido a montanha em sentido contrário. Sua irritação, ele finalmente admitiu, não fazia justiça ao percurso, belo como um quadro renascentista. Precisava dominar o mau humor antes da chegada.
Durante toda a sua vida, ele tentara prevenir riscos. Sempre procurou pensar com calma cada passo a ser dado, detendo-se em análises demoradas de cada variante. Tinha o hábito de examinar exaustivamente as hipóteses que poderiam resultar em um problema. Era um homem bastante precavido com suas palavras e atos. Como, então, podia se encontrar naquela situação tão grave?
“Meu Deus, como isso pôde acontecer na minha vida? Logo quando minha carreira estava no auge!”, pensou, tirando a mão esquerda do volante e esfregando a testa de leve.
Esforçou-se para relembrar algum fato mais recente que indicasse uma mudança nessa postura cautelosa. Além do funesto erro, não recordou nada reprovável nesse sentido.
Parecia que, sem motivo aparente, a mão de Deus havia descido com força sobre sua cabeça. Um teste de mau gosto. Olhando em retrospecto, José começava a desconfiar que teria passado por aquela situação desagradável de qualquer maneira, não importando se as escolhas que fizera, nos momentos anteriores à derrocada, tinham sido ou não as melhores. Talvez existissem resultados absolutamente imprevisíveis na vida de um homem. Aquilo que o povo humilde de sua paróquia natal chamava de destino, no qual ele sempre se recusara a acreditar.
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A mente de José retrocedeu mais longe no tempo, detendo-se no diálogo travado na casa de seus pais, 25 anos antes.
– Vou aprender italiano, mãe.
– Para quê? Seria melhor que aprimorasse seu inglês, que, aliás, anda macarrônico. Além disso, não me lembro de nenhum sociólogo italiano famoso. Então por que falar italiano? – questionou Olga, sarcástica.
– Macarrônico? De onde você tirou isso? Obtive todos os diplomas possíveis do inglês! E como não existe sociólogo italiano famoso? E o Domenico De Masi? Não diga uma coisa dessas por aí, vão pensar que lhe falta cultura.
– Quem é esse? Tem nome de cantor famoso. – Ela deu uma risada. – Pouco importa. Gosto mesmo é do Peppino di Capri! – exclamou, soltando outra gargalhada.
– Que absurdo! Ele é professor da Universidade de Roma, “La Sapienza”, lembra? O lugar onde eu gostaria de estudar um dia.
– Se fosse para você aprender algo importante, que contribuísse para a humanidade, eu entenderia. Mas sociologia? Tenha paciência! Ninguém se interessa por isso. Estudar na Itália? Deveria buscar uma universidade nos Estados Unidos. E tem mais: se o tal Domenico fosse um jurista importante, médico renomado ou empresário de sucesso, eu apoiaria você. Agora, sociólogo, não dá! – exclamou ela, começando a ficar agressiva.
José a interrompeu, espalmando a mão na frente do rosto dela. Não podia deixar passar aquela oportunidade. Sua mãe precisava ouvir.
– Podemos voltar ao assunto?
– Que assunto pode ser mais importante, neste momento, do que sua escolha profissional? Sabe que eu e seu pai estamos muito preocupados com essa história de sociologia?
– Meu pai não me falou nada. Tem me tratado normalmente e não parece nem um pouco preocupado com a profissão que eu pretenda seguir. De onde tirou essa ideia? Não vamos nos desviar da questão, por favor. O problema é o seguinte: preciso aprender italiano.
A mãe estava dificultando ao máximo a conversa. Ele não podia perder a calma nem se deixar vencer pelo cansaço.
– Vai insistir nisso?
Ela cruzou os braços, de cara fechada, percebendo que o filho não iria se render.
– É minha intuição. Sinto que existe algo relevante para minha vida que passa pela Itália…
Ele sabia que o argumento não era bom, mas preferiu falar a verdade.
– Isso parece mais um dos seus caprichos. Você sempre foi um menino mimado. Por isso reclamo muito com seu pai. Ele é o culpado! Sempre passou a mão na sua cabeça – retrucou ela, aproveitando para atacar mais uma vez os dois homens de sua vida.
– Desde quando tenho caprichos? Não é nada disso. No fundo da alma, sinto que se trata de uma coisa importante para minha vida. Vai ser útil para mim.
O embate estava ficando complicado, especialmente devido à falta de argumentos racionais de José.
– Como é? No fundo da sua alma? Pensei que você fosse um cientista social, um homem engajado com o mundo dos fatos. Não é isso que gosta de dizer aos quatro ventos? Agora vem com essa fantasia? – bradou ela, estreitando os olhos. – “Intuição”? “Alma”? Vem para perto de mim, porque quero sentir o cheiro de seu hálito. Bebeu? Confesse logo.
Olga segurou o colarinho do filho para puxá-lo em sua direção. José afastou-a com jeito.
– Por favor, pare. Não sou disso. Não bebo – respondeu José, tentando controlar o tom de voz. – O que estou tentando lhe explicar é que tenho sido incomodado por esse pensamento há alguns meses. Agora que o ano letivo vai começar, acho que é o momento adequado.
– Sei…
A mãe lhe deu as costas e, suspirando, se dirigiu à porta de seu quarto. Tudo indicava que abandonaria a conversa sem dar uma resposta conclusiva a José. No entanto, virou-se de volta e, com a raiva estampada no rosto, declarou:
– Não concordo! Seu pai também não.
– Mas nem falei com meu pai! Como pode saber que ele não concorda? – questionou José, dando um passo para trás, assustado com a reação da mãe.
– Tenho trinta anos de casamento. Sei exatamente o que ele pensa. Garanto a você: ele não concorda.
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Enquanto o pobre carro se esforçava para subir a montanha, aproximando-se do pequeno povoado, José ria sozinho. A recordação daquele episódio pitoresco alterara seu humor. Sentia saudades dos pais, apesar de tantas desavenças. Lembrava-se de como havia sido difícil obter o dinheiro para fazer o curso de italiano. Na época, a bolsa que recebia como estagiário de um órgão público municipal não dava para nada. Foram três dias de duras negociações com a mãe e da usual omissão do pai.
Ao embicar no topo do monte, José procurou, afoito, pelo santuário. Não o avistou. Abriu a janela do carro para tentar obter a informação de uma senhora idosa que, de vestido negro e lenço verde na cabeça, passava carregando uma cesta de palha com frutas. Olhando o estrangeiro nos olhos, sem manifestar qualquer apreço ou simpatia, ela indicou o caminho com a mão. Ele estava seguindo na direção correta. Um minuto depois, avistou o parcheggio.
– Senhor, é proibido estacionar aqui! – gritou em italiano o homem bronco, que saiu esbaforido da pequena cabine.
Com o braço estendido, ele barrou a entrada do veículo no estacionamento.
– Mas, senhor, sou padre. Fui convidado… – José começou a explicar em italiano, saindo do carro.
– Desculpe, padre! – exclamou o sujeito, sem graça, levando as mãos à cabeça.
Então, apontou a José o local em que seu automóvel deveria ficar.
– As chaves, por favor. O santuário é no canto.
O sol já havia se escondido atrás dos muros do povoado. Era possível ver, em meio à noite clara, um aglomerado de estrelas brilhando sobre sua cabeça. “Que céu incrível!”, deleitou-se José.
O vasto e antigo cercado de ferro, que destoava das pequenas casas de paredes brancas, ainda estava aberto. José o atravessou e parou em frente à torre de pedra, situada à direita da entrada principal.
Baixando os olhos, voltou sua atenção para o pesado portão, que apresentava a imagem do arcanjo Miguel ao alto. Conforme informações recebidas de Raniero, ele deveria descer por uma escadaria de pedra, com incontáveis degraus. Inspirando o ar gelado da noite, José deu o primeiro passo em direção ao coração da gruta escavada na rocha.
Ele ajeitou o terno preto e o colarinho. Após pisar os primeiros degraus, José se recordou das palavras aflitas de sua mãe vinte anos antes, quando ele decidiu largar a carreira de sociólogo para seguir o caminho que hoje trilhava.
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– Primeiro você cismou que seria sociólogo. Tudo bem, engolimos. Agora vem com essa? Assim você vai matar seu pai do coração.
– Pense bem, mãe: nossa família tem advogados, médicos, engenheiros, arquitetos, operadores do mercado financeiro e tantas outras profissões. Não tem nenhum padre. Seria uma honra, não acha?
– Pare! Só de ouvir você dizer essa palavra, sinto o estômago se revirar. Inicialmente, veio com a conversa de ser sociólogo. Aliás, eu, na minha sabedoria, já tinha avisado para toda a família que era algo passageiro. Eu sabia que era palhaçada sua. Agora conseguiu piorar a situação. – Com raiva, Olga levou as mãos à cabeça. – Quer mesmo ser padre? Inacreditável! Há pouco tempo você dizia para todo mundo que era ateu. Você lembra? Só pode estar louco! Vou procurar um bom psiquiatra para você. Deve ser algum problema genético que você herdou da família do seu pai.
– Eu nunca disse que não acreditava em Deus – José tentou explicar, ignorando as ofensas. – Apenas afirmei que não gostava das religiões. Também não acreditava em um Deus personificado, como é propagado pelos países cristãos.
– Então não era ateu? Era fingimento? Agora virou um dissimulado. Quanto desgosto!
– Não é bem assim, mãe – respondeu ele, desconcertado, tentando encerrar logo o debate inútil.
– Ou a pessoa acredita em Deus ou não acredita. Eu, por exemplo, acredito que, quando morrer, vou para debaixo da terra virar adubo. Nada mais. Você, pelo visto, não pensa mais assim. Que vergonha! O que minhas amigas vão pensar quando souberem que meu filho único vai virar padreco? Que desgraça se abateu sobre mim! Não vou ter uma longa descendência? Realmente, meu fim vai ser muito triste… Uma velha solitária, sem netos.
– Em primeiro lugar, não penso desse jeito. Sei que existe uma morada celestial, para onde sua alma irá quando você morrer. Quanto à questão de ter netos…
Quase enfiando o indicador no rosto de José, ela cortou seu discurso:
– Pare de bobagem! Cadê a prova dessa insanidade? Não existe! E tem mais: já que largou esse negócio de sociologia, aproveite e estude para ser advogado. Ainda dá tempo.
– Por quê? Não é digno ser padre?
– Você está brincando comigo, não é? Quem precisa de padre hoje em dia? – Olga deu uma gargalhada curta de desdém. – Alguém ainda acredita nesse tipo de bobagem? Isso é crença de gente sem cultura e sem inteligência, das regiões mais pobres do mundo ocidental. Você, como sociólogo, deveria saber disso.
– Não estou brincando. Você não entende? – José estava visivelmente chateado.
– Tudo bem, mas tenho certeza de que seu pai vai sofrer muito. Na hora em que receber essa notícia desagradável, deve cair durinho para trás. – Ela fez um gesto dramático em direção ao chão da sala.
– Não exagere. Ainda não falei nada com meu pai. Você não pode saber como ele vai reagir. Ninguém pode.
– Até hoje não aprendeu? Tem alguma coisa que não sei nesta vida?
– Gostaria que não se metesse na minha conversa com meu pai. Quero ter a chance de explicar toda a situação para ele. Durante o jantar, hoje à noite, pretendo comunicá-lo da minha decisão. Espero sinceramente que você não me atrapalhe!
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José parecia ser atraído para baixo. As paredes de pedra eram frias. O ambiente era mal iluminado. Tudo fora moldado na própria rocha da montanha. Havia ali uma presença invisível e imponente. Dava para sentir na pele. Algo inegavelmente sobrenatural, que fazia os pelos da nuca do padre se arrepiarem a cada curva. O que seria aquela força?
Em pouco tempo, os olhos de José se acostumaram à falta de luz. Depois de poucos minutos, atingiu o final da descida. Viu-se em uma caverna espaçosa, com pouca iluminação. Seus olhos investigaram calmamente o local e notaram que mãos humanas o tinham transformado em uma igreja. Como não havia ninguém ali, aproveitou para se posicionar no genuflexório do último banco. A imagem de São Miguel, dentro de uma caixa de vidro iluminada, dominava a cena.
Cansado da viagem, o brasileiro fechou os olhos e espalmou as mãos na parte de trás do encosto do banco em frente. Abaixou a cabeça e soltou o ar com pesar.
– Pai do Céu, como pôde deixar que isso me acontecesse? Logo comigo, seu servo fiel! Aquele que largou a família e o conforto que tinha para ser seu soldado no mundo. – Fez uma pequena pausa para encher os pulmões. – Por favor, me diga alguma coisa…
José sofria, sem fazer ideia de como sua vida iria ficar. Levantando a cabeça para fitar de novo a imagem de São Miguel Arcanjo, sussurrou:
– E você, guerreiro da espada de luz? Será que está comigo nesta jornada? Sabemos que, no início, quando fui ordenado sacerdote, eu não acreditava em sua existência. Na minha mente acadêmica, você não passava de uma figura simbólica.
Olhando para o alto, prosseguiu:
– Perdoe minha ignorância, general da milícia celeste. Preciso muito de seu auxílio. A batalha é grande e venho sofrendo uma derrota após a outra. Estou sem forças. Cheguei aqui esgotado. Posso contar com seu socorro? Tenho alguma chance de vencer essa guerra? Durante minha viagem, questionei algumas vezes se valia mesmo a pena vir para cá, se seria uma boa opção morar um tempo em sua casa. Ainda não estou seguro de que fiz a escolha certa. Meus inimigos devem estar achando que desisti e fugi do campo de batalha.
José se levantou devagar. Com passos lentos e olhar fixo na imagem de São Miguel, aproximou-se do altar. Uma mureta baixa a separava dos bancos. Girando a cabeça para os lados, certificou-se de que não havia ninguém ali. Não resistiu: pulou a mureta e adentrou o presbitério. Aproveitou para tocar, com ambas as mãos, o vidro do receptáculo que conservava a imagem.
– Uma coisa posso lhe dizer, grande arcanjo – continuou o sacerdote em voz baixa. – Sei que, depois de tantos ataques violentos, já era para eu estar destruído. Tenho absoluta certeza disso. Meus inimigos me bombardearam com fúria. Até aqui, estão soberanos, dominando o combate. Apesar de eu estar ferido, no chão, a luta ainda não acabou. Conto com sua força para dar início a minha reação.
José parou junto à mesa do altar. Fez uma reverência, espalmou as mãos no tampo de pedra e encostou nele a testa. Então voltou os olhos para o teto da caverna e os fechou. Ergueu os braços e, da mesma forma que costumava fazer em suas missas, começou a rezar um Pai-Nosso. Dessa vez, em latim. Na parte final da oração, ouviu uma voz grave, masculina, acompanhando-o. Imediatamente, abriu os olhos para ver quem era.
– Boa noite, meu grande amigo, il professore! – saudou o homem, quando terminaram a oração. – Desculpe meu atraso em vir rece-bê-lo. Eu estava tomando banho, depois me deram o recado sobre sua chegada.
Padre José abriu um enorme sorriso e abraçou o outro sacerdote.
– Raniero! Questo luogo è da vero bellissimo e potente! Mi piace moltissimo! – exclamou ele, elogiando o lugar. – Come stai?
Com passos pesados, o gigante convidou o brasileiro a segui-lo.
– Falemos em português. Sabe como é: ninguém fala seu idioma nesta cidade e eu preciso praticar. Há três anos não o vejo. Que alegria!
– Verdade. Depois de passar uma temporada em seu país, lecionando em Roma, não imaginava que fosse retornar tão cedo. Para ser sincero, nunca pensei que, um dia, viria morar aqui, com os padres miguelinos, na casa de São Miguel Arcanjo.
Mais uma vez, a mente de José embarcou rumo ao passado, saltando para o dia em que contou aos pais que iria assumir temporariamente uma cátedra na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
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– Isso é magnífico! Você é mesmo um grande professor! E sua carreira de sacerdote está a pleno vapor! – vibrou seu pai.
– Olha, José, tenho que admitir: nunca imaginei que a união de duas carreiras tão inúteis, de padre e professor, pudesse levá-lo tão longe – disse sua mãe. – Não dá para entender a vida mesmo…
José ignorou o comentário maldoso de Olga e respondeu ao pai:
– Obrigado! Essa experiência na Itália será muito boa para mim, como sacerdote e professor universitário. Deus está guiando meus passos em direção ao sucesso.
– Quanto tempo vai ficar na Itália? – quis saber Nelson.
– Penso que serão dois anos.
– Pelo menos o dinheiro que investimos em você, no tal curso de italiano, não foi jogado no lixo, não é? – comentou a mãe.
– Como tinha lhe dito, eu sabia que era fundamental aprender o italiano. Minha intuição estava certa. – José aproveitou para provocá-la.
– Intuição?! Sei… Na verdade, você é um menino mimado e sortudo – disparou ela, com olhar severo. – Menos mal que obteve algum sucesso nessa pseudoprofissão. Assim, ao que tudo indica, não precisarei ficar tão preocupada com seu futuro.
Dois dias antes desse diálogo na sala do apartamento dos pais, José presidira uma celebração solene em honra a São José, na qualidade de pároco de sua pequena igreja. O lugar era pobre, situado em uma área violenta da cidade do Rio de Janeiro, mas muito alegre. O povo da comunidade era fervoroso, com devoção especial ao santo. Frequentava com assiduidade as cerimônias, participando ativamente da vida espiritual.
Ao ingressar na sacristia após a missa, José se deparou com a secretária paroquial. Aflita, a mulher lhe pediu que atendesse logo o telefone. Gesticulando bastante, o sacerdote demonstrou sua impaciência com a mulher.
– Dona Iracema, primeiro falarei com todas as pessoas que estão esperando por mim. Diga ao sujeito para ligar depois, por favor.
A mulher, visivelmente nervosa, contestou a ordem:
– Não. Corre! O senhor precisa atender agora!
– A senhora não vê que estou falando com meu povo? Quem poderia ser mais importante? Peça à pessoa que ligue outra hora, por favor.
Arregalando os olhos para ver se ele compreendia a urgência do caso, a senhora sussurrou:
– Não posso fazer isso, padre.
– Por quê?
José encarou a mulher, bravo. Segundos depois, lembrou que Iracema nunca fora de exagerar. Havia algo errado.
– O cardeal Costa está na linha…
Lívido, José pediu licença e retirou-se da sacristia às pressas. Ao entrar no escritório, pegou o telefone de forma estabanada e o aparelho caiu no chão, fazendo um estardalhaço. Abaixou-se rapidamente e o colocou de novo na mesa.
Levando o fone à orelha, José se deu conta de que o cardeal Costa nunca havia visitado sua paróquia nem telefonado uma única vez. Nas poucas cerimônias oficiais da diocese onde se encontraram, ele lhe dirigira a palavra formalmente. Por que telefonar agora? Teria insultado alguém? O que um homem tão importante quanto o cardeal queria com um padre de uma comunidade carente? Será que a tão esperada visita enfim aconteceria? Isso seria um problema. Faltavam bancos decentes e pintura na igreja, sem contar que o caminho até ali era cruel, de terra batida, íngreme e difícil para qualquer veículo urbano. Preocupado, já imaginava os sapatos modernos e caros de dom Costa atolando na lama…
– Boa noite, Vossa Eminência! Desculpe a demora em atender. Acabei de celebrar a missa em honra do nosso santo maior. Estava cercado pelo meu povo quando a secretária da paróquia me chamou.
– Padre José, é uma satisfação falar pessoalmente com você.
Seu tom de voz era cordial. Apesar da fama de mal-humorado e duro, o cardeal soava afável na linha. Que estranho…
– Para mim, é uma honra atendê-lo. Em que posso ser útil? O senhor sabe que, por aqui, somos muito humildes. Não temos recursos, mas nossa vontade em servir a Deus é gigantesca. Pode sempre contar conosco para seus projetos.
– Sei muito bem. Têm chegado aos meus ouvidos relatos interessantes a seu respeito.
– Alguém comentou com o senhor sobre minhas obras? – perguntou José, desconfiado.
– Alguém? Não, muita gente. De todas as classes sociais.
– Como? Não estou certo se conheço tantas pessoas assim… – disse José sem refletir.
– Pensei que fosse professor em nossa universidade católica. Estou enganado?
– Não! Quero dizer, sim, sou professor de teologia lá. É uma honra fazer parte do corpo docente de uma instituição tão renomada – falou com sinceridade.
– Eu diria que é o melhor professor de teologia da minha diocese. Confirmaria essa informação?
O cardeal parecia falar a sério, mesmo porque, segundo relatos de companheiros do clero, brincadeiras não faziam seu estilo.
– Sinceramente, não posso lhe confirmar algo assim. – A voz de José deixou claro seu nervosismo. Onde um diálogo assim poderia dar? – Sou apenas um professor universitário esforçado. Procuro dar o melhor de mim aos meus alunos. Isso não faz de mim o melhor teólogo da diocese. Seria injusto para com diversos professores de alto gabarito que temos na cidade.
– Além de seu doutorado em teologia, sei que é formado em sociologia também, não é?
– Sim. Antes de me ordenar padre, fui sociólogo. Deixei esse ofício para servir a Deus.
– No início de nossa conversa, você me disse que estava dando atenção ao seu povo, pois havia acabado de celebrar a missa. Como definiria seu relacionamento com os paroquianos? Não precisa me contar que trabalha muito, isso é óbvio. Já sei que, na área em que está sua igreja, só temos você de padre, servindo a uma comunidade numerosa.
– Gosto muito daqui. Desde o dia em que cheguei, o povo me trata com muito carinho. Eles acatam tudo o que sugiro, além de apresentarem boas propostas de trabalho também. Somos uma família unida.
– Assim ouvi. Que bom! Acho que você é o homem que estou procurando.
– Eu? Desculpe perguntar, dom Costa: procurando para quê?
– Preciso enviar à Itália um professor doutor que seja sacerdote e tenha currículo e didática excelentes. Obviamente, deve ser alguém que trabalhe em minha diocese e, o mais importante, que possa nos representar bem. Trata-se de um convênio que firmamos com algumas dioceses e universidades italianas. Estaria interessado em passar dois anos lecionando na Itália? Ouvi que fala bem italiano. É verdade?
– Sim, falo italiano.
Então José ficou em silêncio, olhando para o aparelho telefônico, questionando se tudo aquilo era real.
– Ainda está na linha? Aconteceu alguma coisa?
– Sim. Estou aqui. Me desculpe! Estava ponderando sua proposta.
– Ponderando?!
O tom do homem não era mais tão cordial. Não parecia prudente contrariá-lo.
– O senhor me pegou de surpresa…
– Entendo. Bom, você tem até amanhã às oito da manhã para me dar uma resposta. Deus o abençoe.
O cardeal desligou de supetão. José poderia ter aceitado na mesma hora. Claro que gostaria de ir à Itália. A surpresa do convite, todavia, o travou. Ficou sem palavras por não acreditar que Deus poderia lhe dar tamanho presente. Sentado em sua sala, minutos após o encerramento da conversa com o cardeal Costa, o sacerdote decidiu ligar para padre Raniero.
O italiano ficou feliz da vida ao saber da notícia. Encorajou o amigo a fazer logo as malas e partir para a Itália. Ele poderia recebê-lo em Roma e lhe dar apoio para o que fosse preciso durante o período de adaptação. Enfim, era uma oportunidade única.
Na manhã seguinte, José telefonou para o cardeal, colocando-se à disposição para representar a diocese do Rio de Janeiro no tal convênio. Soube que lecionaria cristologia, como professor visitante, na Universidade Gregoriana.
No primeiro dia do mês seguinte, José estava dentro do avião que o levaria a Roma. O período na cidade seriam os dois melhores anos de sua vida.
_________
A recordação foi interrompida pela voz potente de Raniero:
– Não imaginei que um dia como hoje fosse chegar. Não quero ofendê-lo, sei de sua grande competência como sacerdote e professor. Sei que gosta da Itália e do povo daqui. Imagino, inclusive, que muitas congregações católicas, não só de meu país, tenham lhe feito convites. Mas tudo o que está acontecendo, para mim, é uma grande surpresa! – exclamou o italiano, com um largo sorriso.
– Pois é…
– Você pedindo para morar na casa de São Miguel Arcanjo, com os padres miguelinos? Sabemos que o acadêmico, teólogo e sociólogo que habita em você nunca foi muito fã da crença em seres angélicos – disse Raniero, aproximando-se do amigo.
– Sim. Mas estou aqui justamente por causa de São Miguel.
– Não diga! – espantou-se, mais ainda, o italiano.
– Como lhe contei ao telefone, estou no meio de uma guerra. Nada melhor do que o grande general angélico para me auxiliar, não é? Além do mais, como a história é muito complicada, pensei que, vindo para cá, poderia me beneficiar dos seus conselhos.
– Sabe que pode sempre contar comigo. Mas vamos ao convento primeiro.
Com um gesto enérgico, o sacerdote alto e gordo convidou o outro a acompanhá-lo. Seguiram em direção à saída da igreja.
– Você deve estar com fome – disse Raniero. – A viagem de Roma até aqui é longa.
– Na verdade, não estou. Minhas preocupações embrulharam meu estômago.
O italiano, em tom brincalhão, tentou animar o companheiro:
– Por causa de seu sofrimento atual é que está tão magro? No Brasil não se come bem? Lembro-me das deliciosas refeições na casa de sua mãe. Deveria ter ido mais vezes ver a família.
– Não totalmente. Eu estava um pouco acima do peso. Achei melhor evitar os doces de que sempre gostei. No mais, você sabe que nunca fui de comer muito. – Um sorriso torto se formou no rosto de José.
– Está parecendo um faquir! Bom, de qualquer forma, vamos comer. Nosso quartel-general fica no andar de cima. Vê ali? – Raniero gesticulou com a mão grande e gorducha. – Aquela é a área de nosso pequeno convento. Veja que coisa especial: temos a bênção de morar dentro da gruta aberta por São Miguel. O refeitório fica no mesmo piso. Aquelas são as portas. Seu quarto será o do canto esquerdo. Foi preparado com muito carinho pelos meus irmãos de ordem. Somos, ao todo, quatro sacerdotes. Nesta casa, além de mim, estão os padres Haskel, polonês, John, americano, e Seiji, japonês. Bem-vindo à Congregação de São Miguel!
– Pensei que, fora você, todos os outros padres miguelinos fossem da Polônia.
– Não. Durante um tempo, a maioria era daquele país, mas, hoje, recebemos vocações de diversos lugares. Pela primeira vez aqui no santuário, temos um sacerdote nascido no Japão e outro nos Estados Unidos. Aliás, pode ficar tranquilo, você não terá problemas linguísticos, já que todos os padres daqui falam fluentemente italiano. Os sotaques variam, mas você vai se adaptar sem dificuldades. Vou apresentar você a eles daqui a pouco.
– Sim, será uma honra conviver com vocês. Tenho muito a aprender.
Os dois padres se dirigiram ao andar de cima, valendo-se de uma escadaria de pedra, bem menor do que a principal. José percebeu que Raniero, muito acima do peso e fora de forma, já estava esbaforido quando atingiram o piso desejado.
– É um verdadeiro alento poder passar esse tempo complicado da minha vida aqui com vocês. Não tenho palavras para agradecer tanta gentileza em me receber. Espero não ser um fardo.
– Fardo? Você é exatamente o que precisamos nesta diocese. Outra coisa: lembre que os melhores anos da sua vida foram vividos aqui, na Itália. Pelo menos foi o que você me disse! Quem sabe Deus está repetindo a mesma estratégia? Acho que você vai se surpreender positivamente, professore.
– Gosto do seu otimismo, mas não creio que seja assim. Desta vez, a Itália é um refúgio para um homem amargurado, perseguido e acuado por uma injustiça. Nada mais. Sou aquilo de que vocês não precisam: um problema.
– Nós, aqui do santuário, gostamos muito da ideia de ter você conosco. Até os sacerdotes das cidades vizinhas, que não o conhecem pessoalmente, o admiram, sabia? Isso é um bom sinal. As injustiças do mundo não têm força para suplantarem tudo. Abra o coração para as pessoas que o querem bem. Não fique remoendo um passado de dor. Vida nova, amigo!
– Por que me admiram? Como eu seria útil para os padres miguelinos? Nunca os encontrei…
– Ora, você é um grande professor! Lemos seus artigos aqui, na região. Inclusive, devo lhe avisar, todos estão ansiosos para escutar seus ensinamentos. Seu livro mais recente tem feito muito sucesso nas aulas de teologia, nos nossos seminários italianos. Você sabia?
– Não consigo acreditar. Não tenho contrato com editoras na Itália. Nada do que produzi foi traduzido para o italiano e vocês não leem em português. Quer dizer, você lê, mas os outros…
– Ah, matou a charada! Você tem um grande tradutor em solo italiano: padre Raniero! Tomei a liberdade de fazer três apostilas com base em seus livros. Costumo utilizá-las para meus alunos do seminário maior. Para minha alegria, outros professores me pediram cópias, que se espalharam rapidamente na nossa província. Você é famoso entre nós! Acredito que, muito em breve, alguma grande editora virá lhe fazer uma oferta. Precisamos dos seus textos por aqui – comentou Raniero, sorridente.
Desconfiado de que o discurso era um exagero do amigo, com a finalidade de acalentar seu coração, José apenas retribuiu o sorriso.
Os sacerdotes pararam em frente à grossa porta de madeira escura, que dava para o refeitório. Raniero fez menção de abri-la, mas recolheu a mão. Pousando-a no ombro direito de José, disse:
– Alegria, rapaz! O povo daqui está ansioso para conhecê-lo. Não sei o que se passou no Rio de Janeiro, mas não interessa para nós. Você tem a minha confiança. Sei do seu caráter. Os meus irmãos de ordem, por sua vez, confiam cegamente em mim. Assim, quero deixar bem claro: você está seguro conosco. Ninguém vai lhe fazer mal.
– Melhor deixar eu explicar primeiro, em detalhes, o que se passou comigo no Rio de Janeiro. Eu lhe disse apenas que respondi a um inquérito policial. Só que há mais coisas para contar.
– Você sabe como sou teimoso. Se está aqui, foi a mando de Deus. Não se discute mais isso. Espero que seu italiano esteja afiado. Não é muito comum recebermos uma celebridade em nosso povoado e, além dos padres, os paroquianos estão esperando por seus sermões.
– Não crie muitas expectativas no coração deles. Não sou especial. Você sabe… – José buscava o melhor momento para fazer o amigo ingressar no debate que lhe interessava.
– Tarde demais! – O italiano deu uma gargalhada.
– Espero um excelente convívio com todos. Se depender de mim, a harmonia será total. Agora, repito: nós dois sabemos que não sou importante. Deixe de bobagem! – comentou José, com um sorriso.
– Nunca esqueça que os irmãos da congregação se sentem valorizados por saberem que você escolheu nossa casa para experimentar uma diocese diferente da sua. Poderia ter ido para qualquer abadia ou paróquia, mas preferiu ficar conosco. Estamos honrados.
– Há duas razões para isso: São Miguel Arcanjo e meu tradutor oficial, o ilustre padre Raniero. Meus motivos são, no mínimo, egoístas.
– Chega de papo! Vou te apresentar aos outros padres e vamos jantar juntos.
– Sei que precisam comer e que têm hora para as refeições. Mas, antes de abrir a porta do refeitório, gostaria de lhe explicar a respeito da perseguição que venho sofrendo. Não podia ter contado pelo telefone, mas agora que estamos frente a frente, acho que é o momento ideal. Não quero que outra pessoa lhe dê informações erradas sobre mim – falou José, segurando o braço do outro sacerdote.
Precisava deixar tudo às claras antes de fazer parte da comunidade dos miguelinos.
– Sabe que pode me dizer o que quiser. Entre nós, não há segredos. Como padre, aprendi a checar todas as informações que chegam aos meus ouvidos. No seu caso, jamais concluiria nada sem antes conversarmos. Você é um homem verdadeiro, sem segredos. Se quiser, podemos tratar do assunto em uma confissão, amanhã. Há quanto tempo não se confessa? Daria a honra a este italiano peso pesado aqui?
– Não há necessidade, por enquanto. Assim que me decidir por uma confissão, você será o escolhido. Prefiro, antes de mais nada, lhe falar logo sobre o que causou meu afastamento do Rio de Janeiro. Não quero que seja pego desprevenido – insistiu José, cabisbaixo.
– Acho melhor comermos primeiro. Teremos muito tempo para isso. Além do mais, já conversei a respeito de sua prisão com nosso bispo, dom Marcelo.
– Com dom Marcelo? – indagou José, espantado.
– Sim. Acredito que você tenha algo interessante para me contar, que não estava nos autos do inquérito policial. Mas nada do que disser vai mudar a grande admiração que tenho por você. Não se condene. Você está aqui legitimamente.
– Será? Tem sido um tormento… Espere aí: você teve acesso aos autos?!
– Eu, não. Dom Marcelo.
– Meu Deus! Que vergonha.
– Chega desse papo! Com o estômago vazio, sou um ouvinte inútil.
O olhar do brasileiro estava tenso. Com um belo sorriso, o gigante prosseguiu:
– Não fique aborrecido. Sei que está passando por uma fase difícil. Acho importante que, em primeiro lugar, se sinta acolhido por todos. Queremos que sua cabeça esteja aqui, conosco, e não no Brasil, com as perseguições. Vamos focar na solução, e não no problema.
Com o rosto sério, Raniero encarou o amigo. José olhou para o chão, triste, e inspirou com dificuldade, assentindo. O padre italiano enfiou as mãos nos bolsos da calça preta e retirou uma carta com o brasão do Vaticano.
– Olha, já que tocou no assunto, existem questões relacionadas à sua vinda que você desconhece. Não quero te assustar, mesmo porque as interpreto de forma positiva. Você só consegue levar em consideração o tal inquérito policial que correu no Brasil e isso não lhe faz bem. Agora que está aqui, precisa entender que há coisas mais importantes. Por enquanto, prefiro que você se ambiente e compreenda que aqui é sua nova casa. Depois, com calma, vamos conversando sobre suas funções no nosso santuário. Há muito a ser feito.
– Que questões poderiam ser essas? Estou metido em outra enrascada? Não me diga que dom Costa fez recomendações contra mim…
Muito preocupado, José examinou bem a aparência da carta e ergueu os olhos para Raniero.
– Pare com essa mania de perseguição! Se o cardeal do Rio de Janeiro assinou sua liberação para vir morar conosco, deve gostar muito de você. Tudo o que você passou vai ser revertido em seu benefício. Isto que tenho em mãos é coisa boa. Não se esqueça do que está escrito em Hebreus 12, 10-11: “Nossos pais humanos, por pouco tempo, nos corrigiam, como melhor lhes parecia; Deus, porém, nos corrige para o nosso bem, a fim de que sejamos participantes da sua própria santidade. Na hora, qualquer correção parece não ser motivo de alegria, mas de tristeza; porém, mais tarde, ela produz um fruto de paz e de justiça naqueles que foram corrigidos.”
– Só espero que eu não tenha que enfrentar outra batalha aqui, na Itália. Não aguento mais – disse José, ignorando a citação bíblica.
– Não tenha medo, você não terá problemas por aqui. Está sob a proteção dos miguelinos, com autorização do nosso bispo, dom Marcelo, e do seu, dom Costa. Outro dia, com calma, vamos conversar sobre o conteúdo da carta. Confie em mim: não se trata de algo ruim. Esqueça o Brasil e tudo por que passou nos últimos meses e vamos comer! – exclamou o sacerdote italiano, puxando o amigo pelo braço, em direção ao refeitório.
– Antes, será que, pelo menos, posso ler a carta?
– De jeito nenhum! Como falei, isso é assunto para outro dia. Não insista. Vamos comer agora!