Prefácio
Luciene Nascimento é uma explosão em forma de poesia. Foi exatamente o que percebi quando, pela primeira vez, tive contato com a sua forma de compreender a identidade. Com especial talento, Luciene como que recolhe palavras que andam soltas por aí e as ressignifica, explicando, de forma terna e contundente, toda uma existência.
Foi assim que a encontrei, desavisadamente, quando assisti a um vídeo seu. Procurava alguma coisa pra fugir do tédio e das angústias do dia a dia e deparei com Luciene e seu black pro alto, tendo um cartaz de um evento do coletivo negro da Universidade Federal Fluminense atrás de si num vídeo com o seguinte título: “Tudo nela é de se amar”. A advogada e poetisa já começava dizendo: “Eu ouvi recentemente que sou da Geração Tombamento…”
Já não sei quantas vezes assisti ao vídeo… Fiquei a me perguntar quem era aquela grande poeta que até então eu não conhecia. Como era possível?
Fui atrás de outros vídeos e encontrei Luciene a tratar de temas diversos, sempre numa cadência tão peculiar! A sua maneira de abordar os temas guardava alguma semelhança com vários outros textos que eu conhecia e que buscavam explicar o movimento e os debates raciais da atualidade. Ali estavam as questões relacionadas à autoestima, à formação de identidade, à necessidade de se posicionar ou não, à saúde mental… No entanto, tudo isso vinha impregnado de algo inédito, absolutamente novo: a voz de Luciene. A poesia da moça falava sobre tudo que estava mobilizando a sociedade, mas de um outro jeito e com muita propriedade.
O resultado é que virei seu fã. Comecei a citá-la sempre que podia e botei um trecho de um poema seu no meu livro, Na minha pele. Até que, felizmente, um dia eu a conheci e pude perceber que, também pessoalmente, ela era vibrante, interessada, inteligente, perspicaz.
Que bom que vocês terão contato com as palavras de Luciene. Ela ajuda a criar caminhos.
Boa leitura!
Lázaro Ramos
De dentro
Uma fotografia de fundo amarelo há exatos seis anos foi capaz de me atirar numa experiência de imersão poderosa. Naquele dia, passava distraída os olhos pelas imagens na internet, e a vida me colocou diante daquela cuja existência me atravessa profundamente até hoje.
A mulher retratada me encarava serena, como se tivesse o hábito de fazer aquilo, de parar e impactar o passeio dos olhos de quem a flagra. Ela tinha o corpo virado para a esquerda, mas a cabeça atenta ao foco da lente. O queixo sobre o ombro. A pele retinta de subtom frio, as maçãs do rosto protuberantes, ressaltando as áreas sombreadas da pele. Os olhos denotavam firmeza, paz e convite. O cabelo crespo e curto no topo da cabeça. Os braços, um deles em primeiro plano, me lembravam os braços de minha mãe e também os meus. Músculos criando ondas sutis sob a pele. Os lábios, como carnes, de tom roxo e rosa velho. O contraste dela toda marrom-cacau amargo com o amarelo ocre do fundo. A gentileza de estar tão parada a ponto de me permitir prestar atenção em tudo isso. A beleza é um fenômeno avassalador.
Quis escrever sobre ela. Sobre a pele que compunha o contorno do seu rosto. Os músculos daqueles braços, como se pareciam com os meus… Os cabelos, então, pensei que, se ela tocasse neles, assim como nos meus, os dedos se emaranhariam e não sairiam com pressa. E tudo ali me dava a entender que aquela mulher tinha uma história semelhante à minha, uma vez que nos parecíamos de alguma forma. Isso era raro. Se ela era linda, também éramos minha mãe e eu. Eu ser linda exatamente como estava, sem retoques ou esforços, diante dela, era uma recente, transformadora e poderosa descoberta. A beleza é um fenômeno avassalador.
Tudo nela é de se amar é uma biografia borboleta. Palavras escritas e não ditas que caminharam ao meu lado ao longo de anos e que saíram do casulo naquela tarde. O texto faz referência a um período de descobertas difíceis, de escrita lenta, assentando no papel o trabalho amigável do tempo, cada mês um bocadinho sem pretender a si mesmo como poesia. Foi sendo disposto ali, conforme a vida.
O trecho que descreve aquela em que tudo é amável foi feito em homenagem a essa mulher do retrato, e dali em diante a escrita daquela sensação passou a ser sobre quanto tínhamos em comum, dando corpo às reflexões tecidas a partir disso.