1.
Nós
– Tio Mitch, por que você não está escrevendo?
Chika está deitada no carpete do meu escritório. Ela se vira de costas. Fica brincando com os próprios dedos.
Ela vem sempre no início da manhã, quando a luz ainda está fraca na janela. Às vezes traz uma boneca ou um estojo de canetinhas coloridas. Outras vezes é só ela. Vem usando seu pijama azul, com um desenho do My Little Pony na camisa e uma calça estampada de estrelinhas. Antes, Chika gostava de escolher suas roupas todo dia de manhã, depois de escovar os dentes, de combinar as cores das meias e das camisetas.
Mas agora ela não faz mais isso.
Chika morreu na primavera passada, quando as árvores do nosso quintal estavam começando a florir como estão florindo agora, já que é primavera outra vez. Sua ausência nos tirou o ar, o sono e o apetite. Minha esposa e eu passávamos longos períodos com o olhar perdido até alguém dizer alguma coisa que nos fazia despertar.
Então, um belo dia de manhã, Chika reapareceu.
– Por que não está escrevendo? – ela torna a perguntar. Estou com os braços cruzados. Encaro a tela vazia.
Sobre o quê?
– Sobre mim.
Vou escrever.
– Quando?
Em breve.
Ela produz um som de grrr, como um tigre de desenho animado.
Não fique brava.
– Hmpf!
Não fique brava, Chika.
– Hmpf!
Não vá embora, tá?
Ela tamborila com os dedinhos na mesa, como se precisasse pensar antes de decidir.
Chika nunca fica muito tempo. A primeira vez que ela apareceu foi oito meses depois de morrer, na manhã do enterro do meu pai. Eu saí para olhar o céu. E de repente ali estava ela, ao meu lado, se segurando no guarda-corpo da varanda. Sem acreditar, chamei seu nome – Chika? – e ela se virou, então eu soube que ela conseguia me escutar. Falei depressa, pensando que aquilo fosse um sonho e que ela pudesse sumir a qualquer momento.
Isso foi antes. Agora, quando ela aparece, eu fico calmo. Digo “Bom dia, linda”, e ela diz “Bom dia, tio Mitch”, e se senta no chão ou na sua cadeirinha que eu nunca tirei do meu escritório. A gente se acostuma com tudo na vida, eu acho. Até com isso.
– Por que você não está escrevendo? – repete Chika.
Me disseram que eu deveria esperar.
– Quem disse?
Amigos. Colegas.
– Por quê?
Eu não sei.
É mentira. Eu sei, sim. Você precisa de mais tempo. Ainda é muito recente. Você está abalado demais. Pode ser que eles tenham razão. Talvez, ao pôr as pessoas que ama no papel, você admita de forma definitiva que elas são reais, e pode ser que eu não queira aceitar essa realidade, a de que Chika se foi, a de que palavras no papel são tudo que resta.
– Tio Mitch, olha pra mim!
Ela rola de costas, para um lado e para o outro.
– A nonaranha subiu pela parede…
Dona Aranha, corrijo. O certo é “Dona Aranha”.
– Não é, não – diz ela.
Ela tem bochechas rechonchudas, cabelos cheios de trancinhase os lábios franzidos como se fosse assobiar. Está do tamanho que tinha quando a trouxemos do Haiti, aos 5 anos de idade, e lhe dissemos que iria morar conosco enquanto os médicos cuidavam dela.
– Quando…
– Você…
– Vai…
– Começar…
– A ESCREVER?
Por que isso te incomoda tanto?, pergunto.
– Por causa daquilo – diz ela, e aponta.
Acompanho seu dedo, passando pela minha escrivaninha, por recordações de seu tempo conosco: fotografias, um copo de plástico com tampa, seu pequeno dragão da Mulan, um calendário…
– Daquilo.
O calendário? Leio a data: 6 de abril de 2018.
Amanhã, dia 7 de abril, vai fazer um ano.
Um ano que ela nos deixou.
É por isso que você está desse jeito?, pergunto.
Ela olha para os próprios pés.
– Eu não quero que vocês me esqueçam – balbucia.
Ah, meu amor, isso é impossível, eu digo. Não dá para esquecer
alguém que se ama.
Ela inclina a cabeça como se eu não soubesse algo óbvio.
– Dá, sim – diz.
Certa noite, logo nos primeiros meses que Chika passou conosco, eu li para ela o livro Ursinho Pooh constrói uma casa. Chika adorava que lessem histórias para ela. Ficava aconchegada ao meu lado, com a capa do livro apoiada nas pernas e segurava a página para virá-la antes de eu terminar de ler.
Perto do final dessa história, Christopher Robin diz para Pooh, antes de ir embora: “Promete que não vai se esquecer de mim, nunca. Nem mesmo quando eu tiver 100 anos.” Mas o ursinho não promete. Não de cara. Em vez disso, ele pergunta: “E quantos anos eu vou ter?”, como se quisesse saber em que está se metendo.
Isso me fez pensar no nosso orfanato no Haiti e em como, assim que algum visitante chega, nossas crianças perguntam: “Quanto tempo você vai ficar?”, como se estivessem medindo o afeto que devem demonstrar. Todas elas foram abandonadas em algum momento, todas encararam o portão com lágrimas nos olhos esperando alguém voltar e levá-las para casa. Aconteceu com Chika. A pessoa que a trouxe foi embora no mesmo dia. Então talvez seja disso que ela está falando. Que é possível esquecer quem se ama. Ou pelo menos não voltar para buscá-los.
Torno a olhar para o calendário. Será possível mesmo que já faz um ano desde que ela se foi? Parece que foi ontem. Parece que faz uma eternidade.
Tá bom, Chika, concordo com você. Vou começar a escrever.
– Êêê! – exclama ela, agitando os punhos fechados.
Com uma condição.
Ela se aquieta.
Você tem que ficar aqui enquanto eu estiver escrevendo. Tem que ficar comigo, tá?
Sei que ela não pode fazer o que estou pedindo. Mesmo assim eu peço. É tudo que nós queremos, minha esposa e eu, desde que Chika se foi: estar no mesmo lugar que ela, o tempo todo.
– Me conta a minha história – pede Chika.
Aí você fica?
– Eu vou tentar.
Tudo bem, eu digo. Vou te contar a história de você e eu.
– De nós – diz ela.
De nós, respondo.
Você
Era uma vez o dia em que eu fui ao seu país, Chika. Não estava lá no dia em que você nasceu. Cheguei algumas semanas depois, porque uma coisa muito ruim aconteceu. Chama-se terremoto. Um terremoto é quando…
Nós
– …Tio Mitch, para!
O que houve?
– Não fala assim.
Assim como?
– Como se eu fosse um bebê.
Mas você só tem 7 anos.
– Uh-uhn.
Você não tem mais 7 anos?
Ela faz que não com a cabeça.
Quantos anos você tem?
Ela dá de ombros.
O que eu devo fazer?
– Falar feito adulto. Como você fala com a tia Janine.
Tem certeza?
Ela me segura pelos pulsos e guia minhas mãos de volta para as teclas. Sinto o calor das suas mãozinhas e saboreio a sensação. Aprendi que não posso tocar Chika, mas ela pode me tocar. Não sei bem por quê. Eu não entendo as regras. Mas fico grato pelas suas visitas e ávido por qualquer pequeno contato.
Recomeço.
Você
Eu não estava lá no dia em que você nasceu, Chika. Cheguei ao Haiti poucas semanas depois, para ajudar após um terrível terremoto, e como você me disse para falar feito adulto, então posso dizer que a força sísmica foi suficiente para varrer do mapa, em trinta segundos, quase três por cento da população do seu país. Prédios desabaram. Escritórios ruíram. Casas de família estavam intactas em um instante, e no seguinte eram nuvens de fumaça. Pessoas morreram e foram soterradas pelos escombros, e muitas só foram encontradas semanas mais tarde, com a pele coberta de pó cinza. Até hoje nunca conseguiram fazer uma contagem exata das vidas perdidas, mas foram centenas de milhares. Isso representa mais gente morta em menos de um minuto do que em todos os dias da Revolução Americana e da Guerra do Golfo somados.
Foi uma tragédia em uma ilha que conhece bem as tragédias. O seu país, o Haiti, é o segundo mais pobre do mundo, e tem uma história de miséria e de muita morte, morte do tipo que chega cedo demais.
Mas lá é também um lugar de muita felicidade, Chika. Um lugar de beleza, de alegria e de uma fé inabalável, e de crianças: crianças que, quando chove, dão-se os braços e dançam
livremente, depois se jogam no chão, gargalhando, como se não soubessem o que fazer com tanta alegria. Você já foi feliz lá desse jeito, mesmo sendo muito pobre.
A história do seu nascimento me foi contada assim: no dia 9 de janeiro de 2010, você veio a este mundo em uma casa de dois cômodos feita de blocos de concreto ao lado de um pé de frutapão. Não havia nenhum médico presente. Uma parteira chamada Albert ajudou você a sair da barriga da sua mãe. Segundo todos os relatos, você nasceu saudável, chorava quando devia chorar, dormia quando devia dormir.
E no seu terceiro dia de vida, em 12 de janeiro, em uma tarde quente, você estava dormindo no peito da sua mãe quando o mundo se sacudiu como se houvesse um trovão debaixo da terra. Sua casa de concreto tremeu, o telhado desabou e a estrutura rachou como se fosse uma noz, deixando vocês duas a céu aberto.
Talvez Deus tenha prestado muita atenção em você, Chika, porque Ele não a levou naquele dia, tampouco levou sua mãe, muito embora tenha levado tantos outros. Sua casa ficou destruída, mas vocês duas saíram ilesas – desabrigadas, mas ilesas. À sua volta, pessoas corriam, caíam, rezavam e choravam. Árvores jaziam derrubadas. Animais se escondiam.
Naquela noite vocês dormiram no canavial, em uma cama feita de folhas, debaixo das estrelas, e dormiram ali por muitos dias depois disso. De modo que você nasceu no solo do seu país, Chika, com toda a sua fúria e beleza, e talvez por isso também às vezes exibisse a mesma fúria e fosse tão bela.
Você é haitiana. Embora tenha vivido nos Estados Unidos e morrido nos Estados Unidos, você sempre foi de outro lugar, assim como é agora, mesmo estando sentada aqui comigo.
Nós
– Assim está melhor – diz Chika, deitando-se de costas.
Que bom, digo eu.
– Tio Mitch?
Sim?
– Eu sei sobre o tranbleman tè.
O terremoto.
– Foi ruim.
É, foi sim.
– Tio Mitch?
Sim?
– Preciso te contar uma coisa.
O quê?
– Eu não posso ficar.
Seus grandes olhos me encaram, e, juro, mesmo se estivesse a mais de um quilômetro de distância, ainda conseguiria vê-los. Dizem que os olhos de uma criança atingem o tamanho definitivo por volta dos 3 anos de idade, e por isso parecem tão grandes em relação ao rosto. Ou talvez esses anos sejam simplesmente tão cheios de maravilhas que a criança não consiga evitar arregalá-los.
Posso continuar?, pergunto. Por enquanto?
Ela franze os lábios e balança a cabeça, como se tivesse acabado de provar um limão azedo. Fazia isso o tempo todo quando estava viva, como se todo pensamento exigisse ser sacudido dentro do seu cérebro.
– Pode continuar – decide ela.