Introdução
Quem passou pela experiência de ler as cartas de Warren Buffett aos acionistas da Berkshire Hathaway Inc. adquiriu uma educação informal extremamente valiosa. Elas descrevem de maneira simples todos os princípios básicos das boas práticas de mercado. Ao tratar da seleção de gestores e investimentos, da avaliação de negócios e da construção da cultura corporativa, os textos abrangem um escopo amplo e trazem uma sabedoria acumulada de muitos anos. Organizados por temas, sintetizam a filosofia de negócios e investimentos para o público em geral.
Um tema central conecta as cartas lúcidas de Buffett: os princípios da análise fundamentalista de negócios, elaborados inicialmente por seus professores Ben Graham e David Dodd, devem guiar as práticas de investimento. Vinculados a isso estão os princípios de administração que definem o papel dos gestores (como administradores responsáveis e diligentes do capital investido) e dos acionistas (fornecedores e proprietários do capital). Desses pontos principais irradiam lições pragmáticas e sensatas a respeito de várias questões relevantes de negócios, de aquisições a governança e avaliação.
Buffett aplicou esses princípios tradicionais como executivo-chefe da Berkshire Hathaway, companhia que se originou de uma empresa têxtil cujas operações datam do início do século XIX. Em 1965, quando ele assumiu o comando da Berkshire, o valor contábil por ação era de 19,46 dólares. Já o valor intrínseco por ação era bem inferior. Hoje, o valor contábil por ação ultrapassa 200 mil dólares e o intrínseco é ainda maior. Nesse período, a taxa de crescimento do valor contábil por ação foi de cerca de 19% ao ano.
A Berkshire se tornou uma holding com atuação em mais de oitenta ramos de atividades. A principal frente de negócios é a de seguros, que abrange várias empresas, inclusive uma das maiores seguradoras de automóveis dos Estados Unidos, a GEICO Corporation, subsidiária da qual detém 100% da propriedade, e uma das maiores resseguradoras do mundo, a General Re Corporation. Proprietária e gestora há muitos anos de grandes empresas de energia, a Berkshire adquiriu em 2010 a Burlington Northern Santa Fe Railway Company, uma das maiores ferrovias da América do Norte.
Além disso, a holding possui subsidiárias enormes: dez delas seriam incluídas na Fortune 500 caso fossem empresas independentes. O espectro de atuação é tão amplo que, conforme escreveu Buffett, “quando você examina a Berkshire, vislumbra as maiores corporações dos Estados Unidos”. Eis alguns exemplos: alimentos, roupas, materiais de construção, ferramentas, equipamentos, jornais, livros, serviços de transporte e produtos financeiros. A Berkshire também tem participações significativas em grandes companhias, inclusive American Express, Coca-Cola, Moody’s e Wells Fargo.
Esse vasto conglomerado foi construído por Buffett e pelo vice-presidente da Berkshire, Charlie Munger, que investiram em empresas com características financeiras excelentes, administradas por gestores proeminentes. Embora prefiram negociar a aquisição de 100% de um negócio por um preço justo, eles adotam uma abordagem de “cano duplo”, comprando no mercado aberto uma parte de determinadas empresas, quando o preço pro rata é bem inferior ao da aquisição total.
Segmentando a holding em cinco elementos distintos, aos quais Buffett se refere como os “bosques da floresta da Berkshire”, é possível estimar seu valor. São estes:
– dezenas de seguradoras cujas operações geram alto volume de recursos disponíveis (passivos de baixo custo conhecidos como float), no valorde 115 bilhões de dólares, que sustentam os quatro “bosques” de ativos;
– um grande número de subsidiárias operacionais, entre elas dez das maiores empresas americanas, a maioria totalmente pertencente à Berkshire, avaliadas em cerca de 300 bilhões de dólares;
– um grupo concentrado de investimentos em ações ordinárias que representa uma participação considerável nas principais empresas americanas, no valor de quase 200 bilhões de dólares;
– ativos em títulos do Tesouro dos Estados Unidos e outros investimentosde curto prazo, que recentemente ultrapassaram 100 bilhões de dólares; e
– diversas parcerias de investimento, como a Berkadia (com a Leucadia National) e a propriedade parcial da Kraft Heinz, que juntas podem valer 15 bilhões de dólares.
A Berkshire seria avaliada de maneira adequada ao se somarem esses bosques de ativos e deduzirem a reserva das seguradoras (e ainda uma estimativa dos impostos diferidos sobre a venda de ativos). No entanto, quando abrigamos todos os “bosques” sob o mesmo guarda-chuva corporativo, surgem outros componentes valiosos: o baixo custo dos recursos, a alocação flexível de capital, a redução do risco empresarial, custos indiretos ínfimos, a eficiência tributária e uma cultura corporativa marcante.
De acordo com Buffett, esses resultados não são fruto de um grande plano, mas de investimentos focados – a alocação concentrada de capital em empresas de características econômicas extraordinárias e geridas pela melhor equipe.
BUFFETT ENCARA A BERKSHIRE como uma parceria entre ele, Munger e outros acionistas, e quase todo o seu patrimônio líquido está aplicado em ações da holding. Seu objetivo financeiro é de longo prazo: maximizar o valor intrínseco por ação da Berkshire ao controlar a totalidade ou parte de um grupo diversificado de empresas que gerem caixa e retornos acima da média. Para atingir essa meta, ele renuncia tanto à expansão por si só quanto ao desinvestimento de negócios, contanto que tenham liquidez e sejam bem administrados.
A Berkshire retém e reinveste os lucros quando, com o tempo, isso produz – no mínimo – aumentos proporcionais no valor de mercado. A empresa toma dívida com parcimônia e só vende capital próprio quando essa operação não provoca desvalorização da ação. Buffett detalha as convenções contábeis, sobretudo aquelas que encobrem o real lucro econômico.
Esses princípios de negócios relacionados ao proprietário, como Buffett os denomina, organizam os ensaios a seguir, compondo um elegante e instrutivo manual sobre gestão, investimento, finanças e contabilidade. Também constituem o referencial para uma rica variedade de perspectivas sobre questões presentes em todos os aspectos dos negócios. Tais princípios vão muito além de chavões abstratos. É verdade que o investidor deveria se concentrar nos fundamentos, ser paciente e usar o bom senso. Nas cartas de Buffett, esses aperitivos de uma consultoria profissional estão ancorados nos princípios mais concretos que guiam sua vida e seu sucesso.
GOVERNANÇA
Para Buffett, gestores são administradores diligentes do capital dos acionistas. Os melhores pensam como proprietários na hora de tomar decisões de negócios, tendo os interesses dos acionistas em mente. Mas mesmo esses gestores às vezes têm interesses conflitantes. Saber como amenizar isso e estimular boas práticas de gestão administrativa são objetivos permanentes da longa carreira de Buffett e um tema de destaque em suas cartas, que abordam alguns dos problemas mais relevantes de governança.
O primeiro é a importância da franqueza e da honestidade na comunicação entre gestores e acionistas. Buffett fala das coisas como elas são, ou ao menos como ele as vê, e lamenta que esteja em minoria. O Relatório Anual da Berkshire não é grandiloquente: Buffett prepara o conteúdo usando palavras e números compreensíveis. Além disso, todos os investidores recebem as mesmas informações simultaneamente. Buffett e a Berkshire evitam fazer previsões – um mau hábito de gestão que muitas vezes leva executivos a maquiar relatórios financeiros.
Além da orientação ao proprietário refletida na prática de divulgação de Buffett e dos princípios de negócios já mencionados, a lição seguinte é dispensar fórmulas de estrutura gerencial. Ao contrário do que ditam os livros sobre comportamento organizacional, mapear uma cadeia de comando abstrata para aplicá-la no contexto específico de uma companhia, de acordo com Buffett, não adianta muito. O que faz diferença é selecionar pessoas capazes, honestas e diligentes. Ter profissionais de alto nível na equipe é mais importante do que criar hierarquias e estipular quem se reporta a quem, sobre o quê e quando.
Deve-se dar atenção especial à seleção do executivo-chefe da empresa, o CEO, por causa das três principais diferenças que Buffett identifica entre quem ocupa esse cargo e os demais funcionários. Primeiro, os padrões para mensurar o desempenho do principal executivo da companhia são inadequados ou fáceis de manipular, então é mais difícil avaliá-lo do que avaliar a maioria dos empregados. Em segundo lugar, ninguém está acima dele na hierarquia, e não é possível medir o desempenho de alguém em uma função superior. Por último, nem mesmo o conselho pode se posicionar acima do CEO, pois espera-se que mantenham uma relação amistosa.
Grandes reformulações, em geral, pretendem alinhar os interesses da equipe de gestão e dos acionistas ou melhorar formas de supervisão do desempenho do principal executivo da empresa por parte do conselho. Um dos instrumentos adotados foi definir se os gestores têm a opção de comprar ações da empresa. Além disso, deu-se maior ênfase aos processos do conselho. Outras modificações também foram consideradas promissoras: a separação entre a identidade e as funções do presidente do conselho e do CEO e a criação de comitês permanentes de auditoria, nomeação e remuneração. Talvez a recomendação mais difundida seja a de trazer membros independentes para ocupar assentos no conselho. Contudo, nenhuma dessas inovações resolveu os problemas de governança; algumas até os exacerbaram.
A melhor solução, ensina Buffett, é ter extremo cuidado ao identificar executivos-chefes capazes de alcançar um bom desempenho independentemente de controles estruturais, que podem ser fracos. Em sociedades de capital aberto, grandes acionistas institucionais precisam exercer o poder de destituir executivos-chefes que não atendam às demandas administrativas. Se o principal executivo da empresa for excelente, não precisará de muito treinamento por parte dos proprietários, embora possa se beneficiar de um conselho diretor igualmente notável. Portanto, os conselheiros devem ser escolhidos pelo conhecimento dos negócios, pelo interesse e pelo direcionamento. Para Buffett, um dos maiores problemas dos conselhos nos Estados Unidos é que seus membros são selecionados por outros motivos, entre eles compor um grupo mais diverso ou dar visibilidade ao colegiado – ou ainda, como se sabe, assegurar sua independência.
A maioria das reformulações é generalista e não observa as principais diferenças entre as situações identificadas por Buffett nos conselhos. O poder desse órgão se enfraquece, por exemplo, quando um acionista controlador acumula a função de gestor. Se surgirem divergências entre o conselho e a equipe de gestão, não há muito o que um conselheiro possa fazer além de se opor e, em circunstâncias graves, renunciar. Seu poder é maior na situação oposta, quando há um acionista majoritário que não participa da gestão. Nesse caso, ao ocorrer uma discordância, os conselheiros podem levar o assunto diretamente ao controlador.
O mais comum é que a empresa não tenha essa figura. Em situações assim os problemas de gestão são mais graves, explica Buffett. Empenhados em preservar a cordialidade das relações, em geral os conselheiros não impõem a disciplina necessária. Para maximizar a eficácia do conselho em um cenário desses, Buffett sugere que o grupo tenha poucos membros, a maioria deles externos. A arma mais forte que um conselheiro pode ter nessas circunstâncias continua sendo a ameaça de renunciar ao cargo.
Há uma característica comum a todas essas situações: é bem mais fácil confrontar ou remover um péssimo gestor do que um medíocre. Um dos principais problemas nas estruturas de governança tradicionais das corporações americanas é a presença do executivo-chefe nas reuniões para avaliação de seu desempenho. Realizar esses encontros sem a participação do próprio interessado pode resultar em melhoria significativa na governança corporativa.
Os executivos-chefes das várias companhias da Berkshire desfrutam de uma posição privilegiada entre as maiores empresas americanas dos Estados Unidos. Eles precisam seguir três mandamentos simples: administrar o negócio (1) como se fossem seu único proprietário; (2) como se possuíssem somente esse ativo; e (3) como se não pudessem vendê-lo ou fundi-lo nos próximos cinquenta anos. Isso permite aos CEOs do conglomerado exercer a gestão com um horizonte de longo prazo, algo raro entre seus pares em sociedades de capital aberto, cujos acionistas tendem a pensar no curto prazo e ficam obcecados em bater as metas de lucros trimestrais. Os resultados de curto prazo são importantes, é claro, mas o método da Berkshire evita pressões para alcançá-los abrindo mão do fortalecimento das vantagens competitivas com um horizonte mais extenso.
Se apenas os resultados de curto prazo fossem relevantes, seria mais fácil tomar muitas decisões gerenciais, especialmente aquelas relacionadas a negócios cujas características econômicas se deterioraram. Pense no tempo que Buffett dedicou a revitalizar o pior investimento que já fez, na opinião dele: a compra da Berkshire. O antigo negócio têxtil da Berkshire começou a ruir no fim dos anos 1970. Buffett pretendia montar um planejamento para reverter os prejuízos, tanto por perceber a importância da companhia para os funcionários e para as comunidades locais, na Nova Inglaterra, quanto por julgar que os gestores e a força de trabalho tinham capacidade e entendimento para lidar com as dificuldades. Tanto assim que manteve a fábrica operante até 1985, mas não foi possível contornar a situação financeira e ele teve que fechá-la. Equilibrar resultados de curto prazo e perspectivas de longo prazo com base na confiança da comunidade não é fácil, porém é uma conduta inteligente. Lições semelhantes são replicadas em outros setores nos quais a Berkshire investe, como o de jornais na era da internet, e mesmo em segmentos que obedecem a severas normas de controle governamental – por exemplo, energia e ferrovias –, nos quais Buffett vê um pacto social implícito entre empreendimentos privados e autoridades regulatórias.
Às vezes, os interesses da equipe de gestão e os dos acionistas entram em conflito, de maneiras sutis ou fáceis de disfarçar. Um exemplo é a filantropia. Na maioria das grandes organizações, a gestão destina parte do lucro a propósitos de caridade. E, com frequência, escolhe as instituições que beneficiará com base em motivos não relacionados aos interesses da empresa ou dos acionistas. A maioria das leis estaduais nos Estados Unidos permite que os gestores tomem essas decisões, desde que a soma das doações anuais respeite um determinado patamar – de modo geral, que não ultrapasse 10% do lucro líquido anual.
Já a Berkshire age de maneira diferente: não faz contribuições por meio da controladora e permite que suas subsidiárias sigam as políticas filantrópicas anteriores à aquisição. Além disso, ao longo de duas décadas, foram os próprios acionistas que determinaram as quantias e as instituições de caridade para as quais a Berkshire faria doações. Esse programa contou com a participação de quase todos os acionistas, que ano após ano doaram dezenas de milhões de dólares para milhares de instituições de caridade. Contudo, a controvérsia política acerca da questão do aborto impediu sua continuidade. Ativistas organizaram boicotes aos produtos da Berkshire em protesto contra determinadas doações, o que acabou com a proposta da companhia de estabelecer uma “parceria”.
O plano de alinhar os interesses da equipe de gestão e dos acionistas ao conceder opções de compra de ações aos executivos não somente foi exagerado, como também ocultou de modo sutil uma divisão mais profunda entre as participações societárias que as opções criaram. Muitas empresas oferecem a seus executivos opções de compra de ações cujo valor aumenta somente pelo lucro acumulado, não por uma mobilização maior de capital. Entretanto, explica Buffett, ao apenas reter e reinvestir os lucros, os gestores podem obter aumento de lucros anuais sem levantar um dedo sequer para melhorar o retorno real sobre o capital. Assim, as opções de compra de ações muitas vezes tiram riqueza dos acionistas e destinam o lucro aos executivos. Além disso, uma vez concedidas, é comum que essas opções sejam irrevogáveis e incondicionais, beneficiando os gestores independentemente do desempenho individual.
Buffett concorda que é possível usar opções de compra para incutir uma cultura gerencial na qual os gestores sejam incentivados a pensar como donos do negócio. Mas o alinhamento não será perfeito. A exposição dos acionistas ao risco de perda de mobilização de capital abaixo do ideal é maior do que a do titular de opção de compra. Por isso Buffett recomenda aos acionistas que, ao lerem formulários de referência, estejam alertas para a assimetria nesse tipo de alinhamento quando se trata de aprovar planos de opções de compra. Muitos ignoram de forma deliberada esses formulários, quando deveriam atentar para o uso abusivo de opções de compra de ações, ainda mais se forem investidores institucionais empenhados em obter melhorias na governança corporativa.
Para Buffett, o desempenho deve ser a base para as decisões sobre remuneração de executivos. Esse desempenho deve ser medido pela rentabilidade da empresa após serem descontados os lucros retidos, ou seja, o capital reinvestido no negócio. Caso sejam utilizadas, as opções de compra de ações devem estar associadas ao resultado individual, não ao da empresa, e precificadas com base no valor de negócio. Melhor ainda, como acontece na Berkshire, é que as opções simplesmente não façam parte da remuneração dos executivos. Afinal, gestores excepcionais que ganham bônus em dinheiro com base no desempenho de seus próprios negócios podem comprar ações, se quiserem, e assim “realmente se colocar na pele dos proprietários”, como afirma Buffett. E os interesses dos proprietários são primordiais tanto para a remuneração dos executivos quanto para outros tópicos de governança corporativa discutidos por Buffet, como gerenciamento de risco, conformidade corporativa e relatórios financeiros.
Embora seja menos quantificável, a cultura corporativa está entre os fatores mais importantes na avaliação de um negócio. Na Berkshire, ela está profundamente entranhada. Quem dá o tom é a alta administração, a partir da sede, em Omaha, pautando-se pelas normas e pelos valores que inspiram o grupo. Essa cultura também está presente nas subsidiárias e chega aos gestores das várias unidades de negócios que compõem a holding hoje. Como se trata de um vasto conglomerado de negócios diversificados e em expansão, é impressionante a uniformidade e a longevidade da cultura da Berkshire, o que, segundo Buffett, ajudará a empresa a prosperar por muito tempo depois que ele e Munger saírem de cena.
INVESTIMENTOS
As ideias de investimento mais revolucionárias dos últimos quarenta anos foram aquelas denominadas moderna teoria de finanças. Trata-se de um elaborado conjunto de teses que podem ser condensadas em uma implicação prática, ao mesmo tempo simples e equivocada: é perda de tempo estudar as oportunidades individuais de investimento em valores mobiliários disponíveis no mercado. De acordo com essa visão, o investidor se sairia melhor ao compor uma carteira fazendo apostas aleatórias em conjuntos de ações, sem pensar se cada oportunidade de investimento faz sentido.
Um princípio fundamental da moderna teoria de finanças é o da carteira de investimentos como a conhecemos. Segundo essa teoria, podemos eliminar o risco específico de qualquer investimento se mantivermos uma carteira diversificada – ou seja, ela corrobora o dito popular segundo o qual não se deve colocar todos os ovos na mesma cesta. A ideia é que o risco residual é o único pelo qual os investidores serão compensados.
Esse risco residual pode ser mensurado por um termo matemático simples, o índice Beta, que indica a volatilidade da ação em comparação com o mercado. O Beta mede bem o risco de volatilidade para títulos vendidos em mercados eficientes, nos quais as informações sobre tais títulos são incorporadas aos preços de maneira rápida e precisa. Mercados eficientes dominam a história das finanças modernas.
A reverência a essas ideias não se limitou aos acadêmicos da torre de marfim, que atuam em universidades, escolas de negócios e faculdades de direito; pelo contrário, nos últimos quarenta anos se tornou o principal dogma no coração financeiro dos Estados Unidos, de Wall Street à Main Street, ou seja, dos grandes aos pequenos investidores individuais. Muitos profissionais ainda acreditam que o preço sempre reflete com precisão seu valor, que o único risco que importa é a volatilidade dos preços e que a melhor forma de administrá-lo é investir em um conjunto diversificado de ações.
Pertencendo a uma corrente distinta de investidores que remonta a Graham e Dodd – e que desmistifica esse dogma pela lógica e pela experiência –, Buffett considera que o mercado não opera com total eficiência e que igualar volatilidade a risco é uma distorção grosseira. Assim, ele temia que toda uma geração de estudantes de MBA e de doutorado em direito, influenciada pela moderna teoria de finanças, aprendesse as lições erradas e não tivesse acesso às que são importantes.
Uma lição especialmente dispendiosa da moderna teoria de finanças decorre da proliferação do seguro de carteira – uma técnica computadorizada para reajustar carteiras de ativos em mercados em declínio. O uso indiscriminado desse seguro ajudou a precipitar a quebra do mercado financeiro em outubro de 1987 e a derrubada do preço das ações em outubro de 1989. No entanto, houve um lado positivo: caiu por terra a história moderna das finanças contada em faculdades de administração e direito e seguida fielmente por tantos em Wall Street.
A moderna teoria de finanças não poderia explicar a volatilidade subsequente do mercado, bem como outros fenômenos de grandes proporções relacionados ao comportamento de ações de baixa capitalização, de ações com alto retorno em dividendos e de ações com baixos índices de preço/lucro. O lance final da ineficiência do mercado foi a bolha das ações de empresas de tecnologia, que explodiu entre o fim dos anos 1990 e o início dos anos 2000, marcada por oscilações repentinas nos preços das ações: houve picos de euforia e melancolia entre os investidores, muito descolados do valor do negócio. Um número crescente de céticos passou a dizer que o Beta não mensura o risco de investimento que realmente importa e que, de todo modo, os mercados financeiros não são eficientes a ponto de torná-lo pertinente.
Em meio a esse debate acirrado, as pessoas começaram a se dar conta do histórico de investimentos bem-sucedidos de Buffett e a solicitar um retorno à estratégia de investimentos e negócios de Graham-Dodd. Afinal de contas, ao longo de mais de quarenta anos, Buffett gerou retornos anuais médios de 20% ou mais, o que representa o dobro da média do mercado. Antes disso, durante mais de vinte anos, a Graham-Newman Corp., de Ben Graham, fizera o mesmo. Conforme enfatiza Buffett, os desempenhos impressionantes da Graham-Newman e da Berkshire merecem respeito: o tamanho da amostra foi significativo; o período de tempo foi extenso; não houve distorção por causa de algumas experiências privilegiadas; não houve mineração de dados; e os resultados foram longitudinais, não selecionados de forma retrospectiva.
Ameaçados pelos resultados de Buffett, devotos teimosos da moderna teoria de finanças recorreram a estranhas explicações para o sucesso dele. Talvez fosse apenas alguém com muita sorte – como no Teorema do Macaco Infinito,¹ que em algum momento datilografaria Hamlet, de Shakespeare – ou que tivesse acesso privilegiado a informações não disponíveis para outros investidores. Ao rejeitarem Buffett, os entusiastas da moderna teoria de finanças continuam insistindo em que a melhor estratégia é diversificar a carteira de investimentos com base no índice Beta ou em apostas aleatórias, de modo a reconfigurá-la a todo momento.
Buffett responde a isso com um gracejo e uma sugestão. A brincadeira é que os devotos da sua filosofia de investimento provavelmente deveriam patrocinar cátedras em universidades e faculdades para garantir o ensino permanente de dogmas do mercado eficiente. Já o conselho é que ignorem a moderna teoria de finanças e outras visões menos sofisticadas do mercado, concentrando os investimentos nas áreas de expertise. Para muitos, a melhor maneira de fazer isso é investir a longo prazo em um fundo que busque acompanhar o rendimento de determinado índice de ações. Outra estratégia é fazer análises exaustivas de negócios com base na competência de avaliação de um investidor. De acordo com esse raciocínio, o risco não é o índice Beta ou a volatilidade, mas a possibilidade de um investimento causar perda ou prejuízo.
Avaliar esse tipo de risco requer refletir sobre a gestão, os produtos, os concorrentes e o nível de endividamento de uma empresa. A questão é se o lucro líquido do investimento no mínimo se iguala ao poder de compra do investimento inicial, somado a uma taxa de retorno justa. Os principais fatores são as características econômicas da empresa a longo prazo, a qualidade e a integridade da equipe de gestão, e os níveis futuros de tributação e inflação. Talvez esses fatores pareçam vagos, sobretudo se comparados à precisão sedutora do Beta, mas a verdade é que não há como deixar de considerá-los se pensarmos no melhor para o investidor.
Buffett salienta o contrassenso do Beta ao observar que “uma ação que tenha caído de modo muito acentuado em face do mercado… torna-se ‘mais arriscada’ com o preço mais baixo do que era com o preço mais alto” – é desse jeito que tal indicador mensura o risco. O índice também é pouco eficaz por não distinguir o risco inerente a “uma empresa de brinquedos que venda um só produto sem personalidade, como bambolês, e outra cujo único produto é o Banco Imobiliário ou a Barbie”. Mas investidores comuns podem fazer essas distinções ao refletirem sobre o comportamento do consumidor e a forma como as empresas de bens de consumo competem entre si. Além disso, podem calcular quando uma grande queda no preço das ações sinaliza uma oportunidade de compra.
Contrariando a moderna teoria de finanças, a estratégia de investimento de Buffett não recomenda a diversificação. Pode até propor foco, se não na própria carteira de investimentos, ao menos na cabeça de seu dono. Quanto à concentração da carteira, Buffett nos lembra que Keynes – que foi não apenas um economista brilhante, mas também um investidor astuto – acreditava que o investidor deveria destinar quantias consideráveis a duas ou três empresas sobre as quais tivesse algum conhecimento e cujas equipes de gestão fossem confiáveis. De acordo com essa perspectiva, o risco aumenta quando as alocações e a filosofia de investimento se distanciam muito. Uma estratégia de foco financeiro e mental pode reduzir o risco ao estimular tanto a reflexão do investidor a respeito de um negócio quanto o nível de conforto que ele deve ter em relação a suas características fundamentais antes de comprá-lo.
De acordo com Buffett, a moda do índice Beta peca por não dar atenção a “um princípio fundamental: é melhor estar mais ou menos certo do que rigorosamente errado”. O sucesso de um investimento de longo prazo não está atrelado a estudar o Beta e manter uma carteira diversificada, mas a reconhecer que o investidor é dono de um negócio. Recompor uma carteira por meio de compra e venda de ações para adequá-la ao perfil de risco Beta desejado compromete o sucesso do investimento a longo prazo. E “pular de galho em galho” gera custos enormes de transação por causa de spreads, taxas e comissões, sem falar nos impostos. Buffett brinca que chamar de investidor quem negocia de forma ativa no mercado “é como chamar de romântico quem sempre tem casos sem compromisso”. A concentração de investimentos inverte a sabedoria popular da moderna teoria de finanças: em vez do “não coloque todos os ovos na mesma cesta”, recebemos o conselho de Mark Twain em A tragédia de Pudd’nhead Wilson: “Coloque todos os ovos na mesma cesta – e cuide dela.”
BUFFETT APRENDEU A ARTE de investir com Ben Graham quando era estudante de pós-graduação na Columbia Business School, nos anos 1950, e, mais tarde, ao trabalhar na Graham-Newman. Em uma série de obras clássicas, entre as quais O investidor inteligente, Graham apresentou alguns dos conhecimentos sobre investimento mais profundos da História. Esse saber rejeita uma mentalidade predominante, porém equivocada, que iguala preço a valor. Graham sustentava que preço é o que você paga e valor é o que você recebe. Valor e preço raramente se equivalem, mas a maioria das pessoas não percebe a diferença.
Uma das contribuições mais significativas de Graham foi ter descrito um personagem que vive em Wall Street, o Sr. Mercado. É aquele parceiro de negócios hipotético que todos os dias está disposto a comprar a sua participação em uma companhia ou vender para você a dele ao preço de mercado. O Sr. Mercado é temperamental, sujeito a oscilações repentinas que vão da euforia ao desespero. Pode oferecer preços tanto bem acima quanto bem abaixo do valor. Quanto mais instável o humor dele, maior o spread entre preço e valor e, portanto, mais oportunidades de investimento. Ao retomar essa alegoria de Graham sobre o mercado em geral, Buffett enfatiza como ela é valiosa para a concentração disciplinada de investimentos – embora os modernos teóricos de finanças não reconheçam o Sr. Mercado.
Outro importante legado de Graham acerca da prudência é o princípio de margem de segurança. Segundo esse princípio, não se deve investir em um título a não ser que haja base suficiente para acreditar que o preço pago é substancialmente inferior ao valor a ser recebido. Buffett segue esse princípio com devoção e destaca que Graham costumava dizer que, se fosse obrigado a resumir o segredo do investimento sólido em três palavras, elas seriam: “margem de segurança”. Mais de quarenta anos depois de ter lido isso pela primeira vez, Buffett ainda considera que são as palavras certas. Enquanto os entusiastas da moderna teoria de finanças citam a eficiência do mercado para negar que haja disparidade entre preço (o que você paga) e valor (o que você recebe), na opinião de Buffett e Graham há toda a diferença do mundo.
Outro importante legado de Graham acerca da prudência é o princípio de margem de segurança. Segundo esse princípio, não se deve investir em um título a não ser que haja base suficiente para acreditar que o preço pago é substancialmente inferior ao valor a ser recebido. Buffett segue esse princípio com devoção e destaca que Graham costumava dizer que, se fosse obrigado a resumir o segredo do investimento sólido em três palavras, elas seriam: “margem de segurança”. Mais de quarenta anos depois de ter lido isso pela primeira vez, Buffett ainda considera que são as palavras certas. Enquanto os entusiastas da moderna teoria de finanças citam a eficiência do mercado para negar que haja disparidade entre preço (o que você paga) e valor (o que você recebe), na opinião de Buffett e Graham há toda a diferença do mundo.
Buffett também não concorda com a noção de “investimento relacional”. O termo se tornou popular em meados da década de 1990 e descreve um estilo de investimento estruturado para reduzir os custos da separação entre a propriedade do acionista e o controle gerencial por meio da ênfase no envolvimento dos acionistas e no monitoramento da equipe de gestão. Muitas pessoas identificaram de maneira errada Buffett e a Berkshire como exemplos que se encaixariam nessa descrição. É verdade que Buffett compra grandes participações em poucas empresas e permanece com elas durante muito tempo. Buffett também só investe em negócios administrados por pessoas em quem ele confia. Mas as coincidências param por aí. Se fosse pressionado a usar um adjetivo para descrever seu estilo de investimento, Buffett escolheria algo como “focado” ou “inteligente”. Mas até isso soa redundante – uma palavra simples o descreve melhor: investidor.
Outros usos indevidos de terminologia distorcem a distinção entre especulação e arbitragem como métodos de gestão eficaz de caixa – sendo a arbitragem muito importante para companhias como a Berkshire, que gera um excedente significativo. Tanto a especulação quanto a arbitragem são maneiras de aplicar o caixa excedente em vez de mantê-lo em investimentos de curto prazo, como commercial papers. A especulação descreve o uso do caixa para apostar em diferentes áreas empresariais tomando por base boatos de supostas transações ainda não anunciadas. Já a arbitragem, tradicionalmente compreendida como a exploração de preços para o mesmo ativo negociado em mercados diferentes, para Buffett refere-se à alocação do caixa em posições de curto prazo em algumas oportunidades anunciadas publicamente. É um modo de aproveitar a diferença de preços para um mesmo ativo de acordo com o momento. A decisão sobre usar o caixa dessa maneira requer a avaliação de quatro pontos de consenso, ancorados em informações, não em rumores: a probabilidade de o acontecimento se confirmar; o período em que os fundos ficarão retidos; o custo de oportunidade; e a desvantagem, caso não ocorra o esperado.
O princípio do círculo de competência faz parte do tripé do método Graham/Buffett de investimento inteligente, ao lado do Sr. Mercado e da margem de segurança. Essa regra do senso comum instrui os investidores a considerarem investir apenas em negócios que eles sejam capazes de entender com pouco esforço. Pelo compromisso de se ater ao que conhece, Buffett evita erros que outros repetem, em especial quem se deixa levar pela fantasia de enriquecer rapidamente, uma promessa dos modismos tecnológicos e da retórica de uma nova era, que infestaram de forma recorrente os mercados especulativos ao longo dos séculos.
Qualquer que seja a filosofia de investimento, é necessário se precaver contra o que Buffett chama de “imperativo institucional”. Trata-se de uma força onipresente pela qual a dinâmica institucional gera resistência à mudança e absorção de recursos empresariais disponíveis, além de levar subordinados a aprovar, de modo automático, estratégias ruins do executivo-chefe da companhia. Ao contrário do que costuma ser ensinado nas faculdades de administração e direito, essa força poderosa interfere com frequência na tomada de decisões racionais de negócios. O resultado final do imperativo institucional é uma mentalidade “maria-vai-com-as-outras”, que produzirá imitadores, não líderes. Buffett chama isso de abordagem de rebanho para os negócios.
ALTERNATIVAS
Todos esses princípios ganham vida nos arrebatadores artigos de Buffett sobre oportunidades de investimento. Depois de explicar sua preferência por investir em ativos produtivos e definir o que isso significa, uma série de textos discute alternativas, desde debêntures de alto risco e títulos com cupom zero a ações preferenciais. Desafiando Wall Street e a academia, Buffett se baseia mais uma vez nas ideias de Graham para rejeitar a “tese do punhal”, usada para defender as debêntures de alto risco. Ao evocar a metáfora do motorista que dirigiria com cuidado redobrado se houvesse um punhal no volante, essa tese dá exagerada ênfase ao efeito disciplinador que o alto endividamento na estrutura de capital social teria para a equipe de gestão da empresa.
Buffett assinala o grande número de companhias que faliram durante a recessão do início dos anos 1990 sob a pressão de dívidas esmagadoras, e contesta pesquisas acadêmicas que demonstravam que as taxas de juros maiores das debêntures de alto risco compensariam – e muito – sua taxa de inadimplência mais elevada. Ele atribui esse erro a uma suposição equivocada que qualquer aluno do primeiro ano de Estatística poderia identificar: a de que as condições históricas dominantes durante o período estudado permaneceriam idênticas no futuro. Elas mudam.
Wall Street tende a abraçar as ideias baseadas no poder de geração de receita em vez de atentar à lógica financeira, uma tendência que muitas vezes distorce e estraga as boas ideias. Por exemplo, em uma situação que envolva títulos com cupom zero, Buffett mostra que eles possibilitam ao comprador fixar uma taxa de retorno composta em um patamar que nenhum título com pagamento de juros periódicos proporcionaria. Desse modo, os títulos com cupom zero permitiram, durante algum tempo, que o tomador se endividasse mais, sem a necessidade de um fluxo de caixa livre maior para pagar a despesa com juros. Os problemas surgiram, contudo, quando esse tipo de título começou a ser emitido por créditos cada vez mais fracos, cujo fluxo de caixa livre não conseguia sustentar o aumento das obrigações de endividamento. “Como acontece em Wall Street com bastante frequência, o que os sábios fazem no começo os tolos fazem no fim”, lamenta Buffett.
Diversos fatores causaram a crise financeira de 2008, entre eles a proliferação de derivativos financeiros, uma questão para a qual Buffett alertou em artigos escritos muitos anos antes. A engenharia financeira contemporânea produziu uma explosão de instrumentos complexos conhecidos como derivativos porque seu valor flutuante é derivado de movimentos em um benchmark designado contratualmente. Os defensores desses dispositivos os consideram úteis para o gerenciamento de riscos – e, de vez em quando, a Berkshire assume posições modestas em contratos de derivativos mal avaliados, na opinião de Buffett. Enquanto os defensores dos derivativos ainda acreditam que eles tendem a reduzir o risco sistêmico geral, Buffett é cauteloso ao observar que podem ter o efeito contrário. É difícil avaliá-los, e qualquer conclusão pode mudar rapidamente. Além disso, os derivativos criam vínculos e interdependências entre instituições financeiras. Buffett alertou que a combinação desses fatores significa que se um único acontecimento gerar desafios para um setor, é possível que isso se espalhe em pouco tempo, com um efeito dominó que traria consequências sistêmicas devastadoras. Foi justamente o que aconteceu na crise de 2008.
Buffett reconhece que talvez sua visão sobre os riscos dos derivativos seja influenciada por sua aversão a qualquer tipo de risco de dimensões catastróficas, que venha a ameaçar o prestígio da Berkshire como uma fortaleza da solidez financeira. Não se trata de uma opinião leviana; afinal, ele acumulou vários anos de experiência direta na gestão de revenda de derivativos, incluída na aquisição da empresa de resseguros Gen Re pela Berkshire. Buffett explica que o fato de não terem se desfeito desse negócio imediatamente trouxe consequências indesejáveis, mas também observa que não foi possível vendê-lo; havia um labirinto de passivos exigíveis a longo prazo, e a Berkshire levou longos e dolorosos anos para se livrar deles. Assim, ele oferece uma reflexão abrangente sobre essa experiência para que todos possam aprender com os percalços de sua empresa.
O vasto capital de investimento do conglomerado e a rede de parceiros de negócios de confiança de Buffett levaram a várias alianças de investimento significativas. Entre elas estão a Leucadia National, em uma parceria chamada Berkadia, e a sociedade de private equity 3G, que comprou a Heinz e a fundiu com a Kraft. Cartas fascinantes explicam detalhes e desafios dessas parcerias, o que ajuda a esclarecer o pensamento de Buffett sobre negociações e atribuição de responsabilidade.
AÇÕES ORDINÁRIAS
A obra de Buffett data de 1978. Ele já havia escrito cartas para seus sócios, mas foi só na década de 1980 que elas se aprimoraram em conteúdo e estilo, adquirindo a riqueza pela qual se tornaram famosas. Desde 1978, especificamente, Buffett sempre escreveu as cartas com um propósito determinado: atrair o que ele chama de acionistas de qualidade – aqueles que compram grandes participações e ficam com elas, indiferentes a índices totalmente diversificados e a negociações de curto prazo. Buffett destaca temas e práticas que atraem esse grupo, dando mais ênfase a uma visão de longo prazo e ao foco nos inconfundíveis fundamentos de negócios da Berkshire do que ao preço das ações da companhia.
No dia em que a Berkshire foi listada na Bolsa de Valores de Nova York, em 1988, Buffett disse ao especialista em ações da empresa, Jimmy Maguire: “Vou considerar que obtivemos um sucesso enorme se essa ação só for negociada de novo daqui a uns dois anos.” Ao brincar que Maguire “não parecia entusiasmado com isso”, Buffett enfatizou que, na compra de qualquer ação, pensa assim: “Se não estivermos felizes em ser donos de uma parte do negócio quando a Bolsa fecha, não ficaremos felizes em possuí-la quando o próximo pregão abrir.” Embora a Berkshire e Buffett invistam a longo prazo, muitos outros são negociantes eventuais de ações ordinárias, cuja movimentação gera custos elevados.
Parte significativa dos lucros das empresas é dissipada por custos friccionais associados à negociação. Negociar é reorganizar a posse de ações. Essa reorganização envolve o pagamento de comissões aos corretores, taxas aos gestores de investimento e dinheiro aos especialistas em planejamento financeiro e aos consultores de negócios, que vendem ainda mais conselhos ao longo desse processo. Nos últimos tempos, esses custos de fricção se tornaram uma indústria que se autodenomina de diversas formas, como hedge funds e sociedades de private equity. Buffett calcula que os custos totais podem consumir cerca de 20% dos lucros empresariais anuais dos Estados Unidos.
Ele sempre criticou os gastos com negociação e, desde o início dos anos 1990, recomenda que pequenos investidores deem preferência a fundos de investimento atrelados a um índice de ações (ETF) em vez de fundos mais custosos. Mas, acima de tudo, encoraja os acionistas da Berkshire a carregar a posição, de modo a estar à altura do conceito de acionista de qualidade, além de nunca ter incentivado qualquer interesse de terceiros. Fora isso, jamais fez alarde sobre as ações da Berkshire nem instigou ninguém a comprá-las.
Ao contrário de muitos executivos-chefes que desejam que as ações da própria empresa sejam negociadas no mercado pelo preço mais alto possível, Buffett prefere que as ações da Berkshire fiquem próximas ao valor intrínseco – nem muito acima nem muito abaixo. Essa vinculação significa que os resultados do negócio ao longo de um período beneficiarão quem era proprietário da empresa durante esse tempo. A manutenção desse vínculo requer um grupo de acionistas com uma filosofia de investimento coletivo de longo prazo e orientada para o negócio em vez de uma estratégia de curto prazo voltada para o mercado.
Buffett destaca a observação de Phil Fisher de que uma empresa é como um restaurante com um cardápio que atrai pessoas com gostos específicos. O cardápio de longo prazo da Berkshire enfatiza que os custos das negociações podem prejudicar os resultados de longo prazo. Na verdade, Buffett estima que os custos de transação de ações ativamente negociadas – comissões de corretores e spreads de formadores de mercado – em geral chegam a 10% ou mais dos lucros. Evitar ou minimizar esses custos é necessário para o sucesso dos investimentos de longo prazo, e a listagem da Berkshire na Bolsa de Valores de Nova York ajudou a contê-los.
Para Buffett, o desdobramento de ações, uma operação comum entre as empresas americanas, fere os interesses do proprietário. Esse tipo de operação traz três consequências: aumenta os custos de transação por promover um alto giro das ações; atrai acionistas com visão de curto prazo voltada para o mercado, que se concentram de maneira excessiva nos preços do mercado acionário; e, como resultado desses dois efeitos, faz com que os preços se afastem consideravelmente do valor intrínseco do negócio. Como não há benefícios que compensem a operação, desdobrar as ações da Berkshire seria uma bobagem. Buffett acrescenta que o desdobramento ainda ameaçaria reverter cinco décadas de trabalho árduo que provavelmente atraiu mais acionistas focados e com visão de longo prazo para a Berkshire do que para qualquer outra sociedade de capital aberto desse porte.
Recomprar ações subvalorizadas pode ser uma forma de alocar capital de modo a aumentar o valor de longo prazo da companhia, embora nem sempre seja o que parece. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, as recompras de ações eram incomuns, e Buffett deu crédito aos gestores que identificaram que comprar por 1 dólar uma ação cujo valor fosse de 2 dólares dificilmente traria um resultado inferior a qualquer outro uso dos recursos da empresa. Infelizmente, como costuma acontecer, muitos passaram a copiar a estratégia, e agora vemos com frequência companhias pagando 2 dólares para recomprar ações que valem 1 dólar. Muitas vezes, essas recompras que derrubam o valor da companhia servem para conter ou evitar a desvalorização das ações, ou ainda compensar a emissão simultânea de papéis com opções exercidas a preços muito mais baixos.
Buffett descreve o raciocínio e os termos que a Berkshire estabelece para participar de programas de recompra de ações: em situações pontuais, quando a ação é negociada com grande desconto em relação ao valor intrínseco. Isso facilita a argumentação a favor do investimento, pois o valor é claro para os titulares de longa data. Mesmo assim, Buffett se sente dividido em relação à recompra, já que os acionistas da Berkshire que vendem os papéis o fazem com desconto. A solução é divulgar informações com clareza para permitir a quem for vender as ações que tome uma decisão fundamentada.
A política de dividendos empresariais é uma questão importante de alocação de capital, sempre do interesse dos investidores, porém raramente explicada a eles. Os artigos de Buffett esclarecem esse assunto e enfatizam que “a alocação de capital é crucial para a gestão de negócios e investimentos”. Desde 1998, cada ação ordinária da Berkshire foi cotada no mercado acima de 50 mil dólares. O valor contábil da empresa, os lucros e o valor intrínseco aumentaram de forma constante, bem acima das taxas anuais médias. No entanto, a companhia nunca efetuou um desdobramento de ações e, ao longo de mais de três décadas, não pagou dividendos em dinheiro.
Além de refletir o cardápio de longo prazo e a minimização dos custos de transação, a política de dividendos da Berkshire também expressa a convicção de Buffett de que a decisão entre pagar e reter lucros de uma empresa deve se basear em um único critério: cada dólar de lucro deve ser acumulado se isso trouxer um aumento do valor de mercado e se essa quantia for, no mínimo, equivalente. Caso contrário, o rendimento deve ser pago. A retenção de lucros se justifica somente quando “o capital acumulado produz lucros adicionais iguais ou superiores aos geralmente disponíveis para os investidores”.
Como muitas das regras simples de Buffett, essa costuma ser ignorada pelos gestores de empresas, exceto, é claro, quando eles tomam decisões sobre dividendos para suas subsidiárias. Os lucros muitas vezes são retidos por motivos não relacionados aos proprietários, como a expansão do império empresarial ou benefícios para a equipe de gestão.
Como Buffett comentou no simpósio, as coisas são tão diferentes na Berkshire que, de acordo com seu critério, “é possível que ela distribua mais de 100% dos lucros”. E Charlie Munger reforçou: “Pode ter certeza.” Entretanto, isso não foi necessário porque, durante a gestão responsável de Buffett, a holding descobriu e explorou oportunidades de maior rentabilidade do capital.
Certa vez, técnicos de Wall Street tentaram criar títulos que tinham a pretensão de simular o desempenho da Berkshire e vendê-los a pessoas sem conhecimento do conglomerado, de seus negócios e da sua filosofia de investimento.
Em resposta, a Berkshire efetuou uma recapitalização por meio da criação de uma nova classe de ações, denominada ações Classe B, que vendeu ao público. As ações Classe B vêm com 1/1.500o dos direitos de uma ação Classe A, só que têm 1/10.000o dos direitos de votos das ações Classe A. Por isso as ações Classe B devem ser (e são) negociadas por um valor próximo a 1/1.500o do preço de mercado das Classe A.
A recapitalização da Berkshire deteve a comercialização de clones da empresa, que contradiziam todos os princípios básicos nos quais Buffett acredita. Esses clones – ou seja, fundos de investimento que compravam e vendiam ações da Berkshire de acordo com a demanda por unidades do fundo – teriam imposto custos aos acionistas. Caso fossem mantidos por pessoas que não compreendem os negócios ou a filosofia da Berkshire, poderiam causar picos no preço das ações da empresa, exacerbando a diferença entre preço e valor.
AQUISIÇÕES
A política de aquisições da Berkshire segue a abordagem do “cano duplo”: comprar partes ou o todo de empresas com excelentes características econômicas, gerenciadas por profissionais que contam com a admiração e a confiança de Buffett e Munger. Ao contrário da prática habitual, Buffett argumenta que, ao comprar toda uma empresa, é raro existir qualquer razão para se pagar ágio.
Os casos raros incluem negócios com características de franquia – aqueles que podem aumentar os preços sem prejudicar o volume de vendas nem a participação no mercado e requerem somente um investimento de capital adicional para aumentar ambos. Até mesmo gestores medianos podem operar empresas de franquia para gerar altos retornos sobre o capital. Há outra categoria de casos pouco frequentes: a de ótimos gestores que conseguem realizar a difícil façanha de identificar empresas com desempenho abaixo do potencial delas e aproveitam seus talentos extraordinários para desbloquear esse valor oculto.
Essas duas exceções são muito esporádicas e não explicam as centenas de aquisições com ágio alto que ocorrem todos os anos. Buffett atribui tais aquisições aos responsáveis pela operação, movidos por três fatores: a excitação de uma aquisição, a vibração ao aumentar o tamanho da empresa e o otimismo excessivo quanto à sinergia.
Para pagar as aquisições, a Berkshire emite ações apenas quando recebe em valor de negócio o mesmo que oferece. Mas isso fica cada vez mais difícil quando se considera que o conglomerado detém hoje o equivalente empresarial ao acervo de arte do Louvre. Aumentar o valor da coleção existente ao acrescentar a ela um único Botticelli já é bastante complicado, ainda mais se, para tanto, for necessário abrir mão de alguns dos quadros de Rembrandt.
Gestores de outras empresas também têm problemas em seguir essa regra, nem tanto pelo esplêndido acervo de negócios em suas mãos. Ao contrário, Buffett observa que, nas aquisições de ações, as companhias vendedoras estipulam o preço de compra de acordo com o preço de mercado das ações da empresa compradora, não pelo valor intrínseco. Se as ações da compradora forem negociadas, digamos, pela metade do seu valor intrínseco, então, ao seguir essa diretriz, a empresa daria em valor de negócio o dobro do que receberia. Em geral, seu gestor justificaria as próprias atitudes com argumentos sobre sinergia ou tamanho da empresa e colocaria a emoção ou o otimismo excessivo acima dos interesses dos acionistas.
Mais do que isso, aquisições pagas com ações são muitas vezes (quase sempre) anunciadas assim: “compradora compra vendedora” ou “compradora adquire vendedora”. Buffett sugere que faria mais sentido afirmar que “a compradora vende parte de si mesma para adquirir a vendedora” ou algo do tipo. Afinal, é o que acontece – e também permitiria avaliar de que a compradora está abrindo mão para fazer a aquisição.
Já é difícil ocorrer uma aquisição que acarrete aumento do valor, mesmo sem a sobrecarga adicional de uma média de custos maior para todas as partes envolvidas. Na verdade, a maioria das aquisições diminui o valor, afirma Buffett. Encontrar as melhores transações para elevar o valor exige uma concentração em oportunidades de custos, mensuradas sobretudo em comparação com a alternativa de comprar pequenas participações em empresas excelentes no mercado acionário. Essa concentração não é familiar para o gestor obcecado por sinergia e tamanho, mas é um elemento vital da estratégia de investimento de “cano duplo” da Berkshire.
A Berkshire tem vantagens extras nas aquisições: ações de alta qualidade para usar como pagamento e um nível significativo de autonomia gerencial para oferecer assim que o negócio for fechado – dois itens escassos em uma empresa adquirente, diz Buffett. Ao investir seu dinheiro seguindo as próprias recomendações, ele lembra aos vendedores em potencial que a Berkshire adquiriu muitos de seus negócios de família ou outros grupos de capital fechado e os incentiva a verificar junto a todos os vendedores do passado quais foram as promessas iniciais do conglomerado para, então, compará-las com suas ações posteriores. Em suma, a Berkshire busca ser a preferência de vendedores de negócios atraentes – essa lição é tão importante que explica por que Buffett prefere manter, em vez de vender, as empresas adquiridas, mesmo as que enfrentam adversidades de negócios.
AVALIAÇÃO DE EMPRESAS
Os artigos de Buffett oferecem um tutorial interessante e esclarecedor sobre como compreender e utilizar informações financeiras. Ao dissecar aspectos significativos dos Princípios Contábeis Geralmente Aceitos (Generally Accepted Accounting Principles – GAAP, em inglês), o autor mostra a importância e os limites deles para o entendimento e a avaliação de qualquer negócio ou investimento. Desmistifica questões decisivas que ressaltam as principais diferenças entre lucro contábil e lucro econômico, entre goodwill contábil e econômico e entre valor contábil e valor intrínseco. São ferramentas de avaliação essenciais para qualquer investidor ou gestor.
Esopo estava para as fábulas no passado como Buffett está para as cartas sobre negócios no presente. O ensaísta invoca o fabulista para mostrar que a avaliação não mudou ao longo do tempo. Esopo afirmou que “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” – e Buffett estende esse princípio ao dinheiro. Avaliação é contar dinheiro, não esperanças ou sonhos, uma lição que muitos já deveriam ter aprendido com a bolha das empresas de tecnologia no fim dos anos 1990, a qual estourou quando finalmente se percebeu que havia poucos pássaros voando. Contudo, é improvável que todos tenham aprendido a lição, pois ela é repetida desde a época de Esopo e, mesmo assim, bem… ainda é repetida desde a época de Esopo.
Um exemplo importante do kit de ferramentas especializado de Buffett é o valor intrínseco, “o valor descontado do caixa que pode ser retirado de uma empresa ao longo da sua vida útil”. Embora seja simples descrever o valor intrínseco, calculá-lo não é fácil nem objetivo. Depende da estimativa dos fluxos de caixa futuros e da movimentação da taxa de juros. Mas é o que realmente importa em uma empresa. Em contrapartida, o valor contábil não é complicado de calcular, mas tem utilidade restrita. Isso também ocorre com o preço de mercado, ao menos para a maioria das empresas. Dependendo do caso, talvez seja complicado definir as diferenças entre valor intrínseco, valor contábil e preço de mercado – mas quase com certeza elas existirão.
Buffett enfatiza que demonstrações financeiras úteis devem dar ao usuário condições para responder a três perguntas básicas sobre uma empresa: quanto ela vale aproximadamente, qual é a sua capacidade provável de cumprir as obrigações futuras e se os gestores estão fazendo um bom trabalho ao conduzi-la. Ele lamenta que as convenções de GAAP dificultem essas determinações; na verdade, em razão da complexidade dos negócios, quase todos os sistemas contábeis serão intensamente pressionados a fornecer respostas precisas. Ao reconhecer a dificuldade monumental de inventar um sistema contábil superior ao GAAP, Buffett articula uma série de conceitos que avançam no sentido de tornar as informações financeiras úteis para investidores e gestores.
Pense em um conceito que Buffett chama de “lucros transparentes”. Para contabilizar investimentos de acordo com o GAAP, deve-se utilizar o método de consolidação para a participação patrimonial majoritária, o que significa um relatório completo de todos os lançamentos das demonstrações financeiras da investida que constem nas da controladora. Para investimentos em participação patrimonial de 20% a 50%, o GAAP pede que os relatórios da investidora informem sua participação proporcional nos lucros da investida. Já para investimentos de menos de 20%, o GAAP estipula que apenas os dividendos efetivamente recebidos pela investidora sejam registrados, não qualquer participação nos lucros da investida. Essas regras contábeis encobrem um fator importante para o desempenho econômico da Berkshire: uma parte enorme do seu valor são os lucros não distribuídos das suas sociedades investidas, que não constam nas demonstrações financeiras preparadas de acordo com o GAAP.
Ao reconhecer que o valor do investimento em participação societária não é determinado pelo tamanho, mas pela maneira de empregar os lucros não distribuídos, Buffett desenvolve o conceito de lucros transparentes para medir o desempenho econômico da Berkshire. Essa definição acrescenta ao lucro líquido da própria Berkshire os lucros não distribuídos das empresas investidas, subtraindo-se um valor para impostos. Para muitas empresas, os lucros transparentes não são diferentes dos lucros reportados conforme o GAAP – mas o são no caso da Berkshire, e é provável que também o sejam para muitos investidores individuais. Dessa forma, eles podem adotar abordagem semelhante para a própria carteira de investimento e, assim, montar uma que ofereça o maior lucro transparente possível a longo prazo.
A diferença entre goodwill contábil e econômico é bem conhecida, mas a lucidez de Buffett revigora esse tema. O goodwill contábil é essencialmente o montante pelo qual o preço de compra de uma empresa excede o valor justo dos ativos adquiridos (após a dedução dos passivos). É registrado como um bem no balanço patrimonial e depois amortizado como despesa anual, em geral ao longo de quarenta anos. Assim, o goodwill contábil atribuído a essa empresa diminui com o tempo pelo valor agregado dessa despesa.
Goodwill econômico é diferente. É a combinação de ativos intangíveis, como o reconhecimento da marca, o que permite à empresa gerar lucros acima das taxas médias sobre ativos tangíveis, como instalações e equipamentos. O montante do goodwill econômico é o valor capitalizado desse excedente. O goodwill econômico tende a aumentar com o tempo, pelo menos nominalmente, na proporção da inflação, para empresas medíocres, e acima disso para empresas com características econômicas sólidas ou de franquia. Na verdade, companhias com mais goodwill econômico em relação aos ativos tangíveis são bem menos afetadas pela inflação do que aquelas com menos.
As diferenças entre o goodwill contábil e o econômico envolvem algumas percepções. Primeiro, o melhor guia para o valor do goodwill econômico de uma empresa é o que ela pode ganhar com ativos tangíveis líquidos não alavancados, excluindo-se os encargos para amortização do goodwill. Portanto, quando uma empresa adquire outras firmas e essa operação é refletida em uma conta de ativo chamada goodwill, a análise da companhia deve ignorar os encargos de amortização. Em segundo lugar, uma vez que o goodwill econômico deve ser mensurado por seu custo econômico total, isto é, antes da amortização, a avaliação de uma possível aquisição de empresa deve ser conduzida também sem levar em consideração esses encargos de amortização.
Buffett enfatiza que isso, no entanto, não se aplica aos encargos de depreciação – os quais não devem ser ignorados porque são custos econômicos reais. Ele esclarece esse ponto ao explicar por que a Berkshire sempre apresenta aos seus acionistas os resultados líquidos das operações relacionadas aos negócios adquiridos, sem quaisquer ajustes de preço de compra exigidos pelo GAAP.
É comum em Wall Street avaliarem-se as empresas usando um cálculo de fluxos de caixa igual a (a) lucro operacional mais (b) despesa de depreciação e outras despesas não monetárias. Para Buffett, esse cálculo é incompleto. Ele argumenta que, após pegarmos (a) o lucro operacional e acrescentarmos de volta (b) despesas não monetárias, devemos então subtrair outra coisa: (c) o reinvestimento necessário na empresa. Ele define (c) como “o montante médio de despesas capitalizadas para instalações e equipamentos, etc., do qual a empresa necessita para manter plenamente sua posição competitiva de longo prazo e seu volume unitário”. Buffett chama o resultado de (a) + (b) – (c) de “lucro do proprietário”.
Quando (b) e (c) diferem, a análise do fluxo de caixa e a do lucro do proprietário também diferem. Para a maioria das empresas, (c) geralmente excede (b), então a análise do fluxo de caixa exagera a realidade econômica. Em todos os casos em que (c) difere de (b), o cálculo do lucro do proprietário permite avaliar o desempenho com mais precisão do que a análise do lucro conforme o GAAP ou os fluxos de caixa afetados por ajustes contábeis no preço de compra. É por isso que a Berkshire faz o relatório do lucro do proprietário por seus negócios adquiridos, de forma suplementar, em vez de depender apenas dos valores de lucro conforme o GAAP ou dos números do fluxo de caixa.
CONTABILIDADE
A questão fundamental a se entender sobre contabilidade é que se trata de uma planilha e, como tal, pode ser manipulada. Buffett mostra como essa manipulação pode ser grave ao comentar uma sátira escrita por Ben Graham na década de 1930. Os métodos contábeis avançados que Graham apresenta permitem que sua fictícia US Steel relate lucros “fenomenalmente melhorados”, sem despesas de caixa nem mudanças nas condições operacionais ou nas vendas. Exceto pelo espírito satírico, o exemplo de Graham sobre o embuste contábil não difere muito do que costuma ser visto em grandes empresas nos Estados Unidos.
O GAAP já tem problemas suficientes. No entanto, dois grupos de pessoas o pioram: as que tentam superar os requisitos do GAAP, ao darem mais brechas à contabilidade criativa, e as que o utilizam de forma deliberada para favorecer a fraude financeira. O primeiro grupo é especialmente difícil de lidar, conforme Buffett sugere ao demonstrar como o debate sobre a contabilidade para opções de compra de ações revela provincianismo por parte de muitos executivos e contadores. Ao criticar a visão que se opõe a considerar a concessão de opções de compra de ações como despesa, Buffett faz este comentário sucinto: “Se as opções não são uma forma de remuneração, são o quê? Se remuneração não é uma despesa, é o quê? E se despesas não devem entrar no cálculo do lucro, onde é que vão parar?” Até agora, ele ainda não obteve respostas.
A busca da integridade dos relatórios financeiros é interminável, pois novas maquinações contábeis surgem a todo momento e, de tempos em tempos, chegam às salas de diretores financeiros das maiores empresas americanas, empolgando seus ocupantes. O produto que se popularizou mais recentemente é a contabilidade de “reestruturações”, termo usado para uma variedade de manobras que permitem a prática de um gerenciamento dos resultados à moda antiga e a adoção de técnicas de harmonização com mais êxito e destreza do que nunca. Outros exemplos dizem respeito às estimativas exigidas para o cálculo de passivos de aposentadoria e do momento da venda de ativos que geram ganhos ou perdas com impacto no lucro declarado. Os investidores devem ficar atentos.
Uma lição clara da questão levantada por Buffett acerca das informações financeiras é que a contabilidade tem limites inerentes a ela, embora seja absolutamente essencial. Apesar da enorme margem de manobra gerencial para relatar lucros e dos possíveis desvios, as informações financeiras podem ser de grande utilidade para os investidores. Buffett as utiliza todos os dias e alocou bilhões de dólares graças a isso. Logo, é possível tomar decisões relevantes de investimento com base nas informações financeiras disponíveis, se a pessoa usar bom senso e estiver bem informada. Esse julgamento inclui empreender ajustes para determinar os lucros transparentes, o lucro do proprietário e o valor intrínseco.
TRIBUTAÇÃO
As consequências fiscais guiam as decisões de muitos investidores e gestores de empresas. Essa abordagem pode reduzir custos e aumentar o retorno do investimento. Por exemplo, de acordo com a longeva política federal de imposto de renda dos Estados Unidos, os ganhos sobre títulos valorizados não são tributados até que estejam concretizados pela venda. Tampouco são indexados pela inflação. Isso torna o governo um parceiro silencioso e não remunerado. Durante o período de retenção, o investidor contabiliza as obrigações futuras de pagamento como “impostos diferidos” – uma procuração para a reivindicação do governo. Na Berkshire, os impostos diferidos aumentaram de modo consistente, chegando a cerca de 60 bilhões de dólares. As cartas de Buffett sobre tributação iluminam esse tema, com o auxílio de referências espirituosas a personagens venerados, como Rip Van Winkle e Ferdinando Buscapé.
HISTÓRIA
Além de alusões literárias, as cartas de Buffett são pontuadas com referências históricas, sobretudo econômicas. Ele demonstra a importância de compreender o passado para lidar com o presente e navegar pelo futuro. Em uma série de cartas escritas entre 2016 e 2018, examina a história econômica dos Estados Unidos e avalia que seu valor global é extraordinário. Em quatro palavras, a mensagem é “de vento em popa”, expressão náutica que denota uma força positiva e intensa impulsionando um objeto até seu destino. É uma descrição adequada do papel que a política econômica dos Estados Unidos desempenhou durante quase três séculos para as grandes empresas americanas e seus beneficiários, incluindo-se gestores, investidores e cidadãos.
CONCLUSÕES
Em 2015, na ocasião do 50º aniversário da Berkshire sob o comando de Buffett, ele escreveu uma retrospectiva que situou o futuro da empresa em um contexto histórico. Munger apresentou o próprio ponto de vista sobre esse assunto. Os dois compartilham a mesma opinião sobre a maioria dos temas, e invariavelmente Buffett fala por ambos em seus textos (a expressão “Charlie e eu” aparece em um terço das páginas deste livro). Mas os dois têm estilos bastante diferentes, o que pode ser comprovado pelo modo de contar a história e de enxergar o futuro da Berkshire na parte final desta coletânea.
As conclusões de Buffett exalam uma disposição alegre que dá vida a uma avaliação dinâmica das realizações da Berkshire ao longo de cinco décadas e ao entendimento de que a “cultura da Berkshire”, como ele diz, garante um futuro otimista para o conglomerado – que ele considera “idealmente posicionado” a longo prazo. Embora concorde em essência com Buffett, a apresentação austera de Munger enfatiza que os elementos do que ele chama de “sistema da Berkshire” foram corrigidos cedo e ajudaram o conglomerado a ter sucesso, além de garantirem que continue sendo “uma empresa acima da média por muito tempo”.
Sobre a questão sempre presente de como ficará a Berkshire depois da era Buffett, a carta ao final inclui uma das muitas piadas que o grande investidor faz sobre si mesmo: se aproveitar a vida contribui para a longevidade, então ele é uma ameaça para o recorde de Matusalém, de 969 anos. No simpósio que apresentou esta coletânea, um participante perguntou qual seria o efeito que a morte de Buffett teria para as ações da Berkshire. Alguém respondeu: “Teria um efeito negativo.” Sem pestanejar, ele próprio brincou: “Mas para os acionistas não será tão negativo quanto para mim.”
Lawrence A. Cunningham