Prefácio à edição comemorativa
“Impensável morrer
Impossível aceitar
Improvável não sofrer
Inevitável ser feliz
Imperdível o tempo por aqui…
Inesquecível é o Amor.”
Ana Claudia Quintana Arantes
ACQA
Impensável. É o que eu diria a alguém que tentasse prever o que seria da minha vida depois do dia em que, numa festa, decidi ouvir na minha própria voz a verdade do que eu fazia: “Eu cuido de pessoas que morrem.”
Impossível me parecia o sonho que tive num tempo em que a realidade à minha volta era muito árida e hostil. Impossível pensar que as pessoas pudessem se interessar em aprender que há muito a fazer quando a medicina diz que não há nada a fazer.
Improvável pensar que as pessoas pudessem se interessar pelas palavras e pelos pensamentos de uma médica que aceitasse cuidar de seus pacientes até o último dia de vida deles, acolhendo a morte como parte da vida quando nada mais pudesse reverter a doença.
Algumas filosofias dizem que a vida cumpre etapas a cada nove anos. Outras, que as etapas se sucedem a cada sete anos. Há nove anos, em 2013, o momento em que cheguei ao teatro da Faculdade de Medicina da USP para viver meus 18 minutos de eternidade entrou para a minha história. Apresentar uma ideia que merecia ser espalhada – esse era o propósito do convite que recebi. Ser chamada foi uma enorme surpresa. Quando entendi o que era um TEDx e o tamanho da oportunidade que me foi dada, não pensei duas vezes e aceitei o desafio com o coração e com a alma.
Inevitável o tempo de fazer minha voz alcançar os ouvidos do mundo.
A gente nunca imagina como conseguirá chegar quando o caminho é muito árduo e hostil. Na época da palestra que acabou por dar nome ao meu primeiro livro de não ficção, as pessoas experientes nesse mundo de TED me disseram que seria um grande sucesso. Mesmo assim, eu não imaginava que um ano depois receberia o convite para escrever um livro. Em 2015, há sete anos, eu finalizava o texto da primeira edição desta obra que me levou ao mundo. O lançamento foi uma surpresa até para os editores mais otimistas – faltou livro na livraria e foi necessário buscar mais exemplares para satisfazer a todos os que enfrentaram quase quatro horas de fila para conseguir um autógrafo. Teve gente que chegou à mesa onde eu estava já com metade do livro lido e grifado, rostos banhados em lágrimas e sorrisos emocionados. Foi lindo demais viver aquele primeiro dia de sucesso da minha escrita.
Quem diria: o sucesso se manteria e até cresceria ao longo dos anos. Desde aquela noite de autógrafos, A morte é um dia que vale a pena viver já vendeu 400 mil exemplares e agora ganha uma linda edição comemorativa, com novas reflexões e um texto revisto, atualizado e ampliado. Afinal, a vida desabrochou imensa no tempo decorrido desde a primeira edição. Centenas de milhares de pessoas se transformaram com a leitura do livro. Outras tantas compreenderam o que era preciso fazer por elas mesmas quando encontraram uma doença que ameaçava a continuidade da vida. Outras ainda se sentiram preparadas para orientar familiares e amigos. Por causa do livro, souberam o que dizer, o que fazer e entenderam o que estavam sentindo. Foram encorajadas a amar acima de tudo, amar acima de morrer. Amar antes e depois de morrer.
A grande surpresa que este livro me trouxe foi esta: minha escrita conseguiu alcançar um público que ainda não tinha sido tocado pela doença ou pela morte em si, concretamente. Essas pessoas perceberam que refletir sobre a morte trazia vida para suas vidas, para os sentidos e sentimentos, uma vida muito mais viva e intensa do que a que era vivida sem sentido ou propósito por se acreditar infinita.
Cumpri os ciclos de nove e de sete anos. Agora é seguir jornada nesta nova fase, ainda mais repleta de amor por meu trabalho e pela escrita (tenho planos de passar a vida escrevendo!). E o melhor de tudo isso: por causa deste livro encontrei com quem partilhar o caminho, encontrei meu par, não estou mais sozinha. É o resultado de acreditar que o melhor modo de fazer algo, por mais simples que possa parecer, é amar o que se faz.
Imperdível a chance de celebrar essa grande oportunidade que a vida me trouxe. Dez anos depois da experiência única e preciosa de trabalhar num hospice (quem quiser saber o que é pode ler tudo a respeito aqui e no livro Histórias lindas de morrer), sou capaz de mostrar o que tenho de melhor: o prazer de trabalhar com gente, com pacientes, famílias e principalmente estudantes. Pessoas comprometidas com seu trabalho e que acreditam no poder de aprimorar seus conhecimentos e em deixar florescer sua humanidade a ponto de transformar a prática do cuidar numa verdadeira cura – não do corpo, mas da existência humana.
A vida assim já é inesquecível. Toda a felicidade que está acontecendo está acontecendo mesmo.
Introdução
“Entrega:
todas as possibilidades numa única escolha.”
ACQA
Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém além da anfitriã. Pela recepção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados em saber quem sou. Aproximam-se. Fico meio tímida nessas ocasiões e tenho dificuldade para começar a conversar. Mais uns instantes e a roda se amplia; a conversa flui. Cada um diz quem é e o que faz da vida. Observo gestos e olhares. Um instinto misteriosamente provocador brota em mim. Sorrio. Por fim, alguém pergunta:
– E você? Trabalha com o quê?
– Sou médica.
– Mesmo? Que máximo! Qual é a sua especialidade?
Segundos de dúvida. O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra, e a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com minha experiência, recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre um familiar que parece “esclerosado”. Dessa vez, porém, quero responder algo diferente. Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer, e que me realiza muito. Não quero fugir. Essa decisão interna me traz uma inquietude e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um silêncio profundo. Falar de morte em uma festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo a distância percebo olhares e pensamentos. Posso escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, buscando o buraco onde gostariam de se esconder. Outras continuam me olhando com aquela expressão de “Oi?”, esperando que eu rapidamente conserte a frase e explique que não me expressei bem.
Já havia algum tempo eu tinha vontade de fazer isso, mas me faltava coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário. Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu me consolava e perguntava a mim mesma: “Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por esse caminho. Será que vai ser hoje?”
Então, em meio ao silêncio constrangedor, alguém toma coragem, se esconde atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Nossa! Deve ser bem difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo se dispersou. Um se afastou para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi buscar um drinque e não voltou mais. Uma terceira pessoa saiu para ir ao banheiro, outra simplesmente pediu licença e se foi. Deve ter sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa natural e transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário. Assumi minha versão “cuido de pessoas que morrem” e, à revelia de quase todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte está ganhando espaço na vida. A prova disso? Estou escrevendo este livro, e há quem acredite que muita gente vai ler.
Quem sou eu
“Não importa a altura da torre ou a profundidade do poço.
Escolha qualquer viagem, a mais longa ou para o espaço mais distante. E apesar de infinitas viagens, o lugar mais desconhecido e misterioso fica sempre dentro de nós.”
ACQA
O poeta Manoel de Barros escreveu um poema que reflete muito bem o meu modo de ver o mundo:
“Eu tive uma namorada que via errado.
O que ela via não era uma garça na beira
do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça.
Ela despraticava as normas.
Dizia que seu avesso era mais visível do
que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de
comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com
suas contradições.”
Eu vejo as coisas de um jeito que a maioria não se permite ver. Mas tenho aproveitado várias oportunidades de capturar a atenção de pessoas interessadas em mudar de posição, de ponto de vista. Algumas apenas podem mudar, outras precisam; o que nos une é o querer. Desejar ver a vida de outra forma, seguir outro caminho, pois a vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida.
Este livro pode ter chegado às suas mãos na forma de um presente enviado por alguém que poderia ter nos olhos algum traço de insegurança: “O que vão pensar de mim se eu der de presente um livro com este título?” Ou, se o livro foi comprado por você, pode ser que uma questão parecida estivesse presente: “O que vão pensar de mim se me virem lendo esse livro?”
A você ou a quem lhe deu o livro de presente, uma esperança que sinto é que a vida possa lhes agradecer pela coragem.
Por meio deste livro, você e eu começamos uma convivência na qual espero compartilhar parte do tanto que tenho aprendido, a cada dia, com meu trabalho como médica e também como ser humano que cuida de seres humanos, intensamente humanos. De cara, preciso já dizer que saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida de quem amamos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com nosso tempo, nosso movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.
Quase todo mundo pensa que a norma é fugir da realidade da morte. Mas a verdade é que a morte é uma ponte para a vida. Despratique as normas.