Prólogo
– Ce l’abbiamo fatta, Chou-Chou, nós conseguimos – diz ele, usando o apelido que me deu, agarrando o volante do velho BMW com as duas mãos, os cotovelos para fora como asas, os ombros levantados e o corpo inclinado para a frente de tanta animação, dando uma risada conspiratória e ofegante.
– É. Nós conseguimos – digo, com apenas uma ponta de desdém ao pronunciar o “nós”.
Desvio o olhar e observo pela janela as luzes da Ponte della Libertà. O dia ainda dorme. Reflexos levemente amarelados do sol que começa a despertar envolvem a lua pálida que se põe no azul úmido e escuro de um céu que parece uma lagoa. Sua alegria infantil e o zumbido da estrada embaixo de nós são os únicos rastros em meio ao silêncio. Começo a chorar. Por mais que eu tente refreá-las, as lágrimas escorrem quentes e rápidas. Não quero ir embora de Veneza. Ainda assim, sorrio ao pensar no nome da ponte, tão apropriado. Liberdade. Que outra estrada seria melhor para uma fuga? Mas aquela é a fuga dele, o novo começo dele. Ah, sei que também é meu. Nosso. E uma grande parte de mim está exultante com a perspectiva de morar no deslumbrante interior da Toscana. Além disso, a viagem até Veneza leva apenas uma manhã. Ficaremos indo e voltando. Sei que será assim. Mas agora preciso evocar a nômade tolerante que há dentro de mim e torcer para que ela me atenda.
Meu marido veneziano rompeu todos os laços com sua cidade. Depois de pedir demissão e vender nossa casa, ele está rasgando os resquícios do passado como se fossem uma carta de condenação, atirando os pedacinhos no mar. Essa transformação intencional aconteceu – às vezes a passo lento; outras, a galope – nos mil dias desde que nos conhecemos. Com seu destino selado, ele diz que agora pode se tornar um iniciante. Embora propenso à melancolia, Fernando acredita que os inícios são, por natureza, passagens alegres e floridas, nas quais a dor é proibida. Ele acredita que os velhos fantasmas não encontrarão o caminho da Toscana.
Quando chegamos a terra firme e atravessamos Marghera para pegar a autostrada, ele desvia rapidamente os olhos cor de mirtilo para mim, acariciando minhas lágrimas com as costas da mão. Olhos antigos, distantes, moldados por tristezas e perdas. Foram aqueles olhos a primeira coisa que amei. Os olhos e o sorriso tímido como o de Peter Sellers. Inesperada, foi o que disseram da nossa história – inesperada, improvável, um conto de fadas. É uma terça-feira chuvosa em Veneza; ele – que já não é mais jovem – está sentado no fundo do pequeno salão de um restaurante e vê uma mulher – que já não é mais jovem – que muda alguma coisa dentro dele, na verdade, muda tudo. Isso acontece apenas alguns dias antes de ele começar a mudar tudo dentro dela. Chef, escritora, jornalista encarregada de viajar pela Itália e pela França em busca de pratos e bebidas perfeitas, ela junta o que pode da sua vida muito agradável e solitária, se despede dos dois filhos já crescidos e bem encaminhados e vai viver com aquele estranho à beira do mar Adriático. Em meio às chamas de 100 velas brancas e à fumaça de incenso almiscarado, eles se casam em uma pequena igreja de pedra em frente à lagoa. Pegam o trem noturno para Paris e comem sanduíches de presunto e bolo de chocolate no leito superior da cabine. Vivem esse amor. Brigam e riem. Cada um tenta aprender o idioma e conhecer o jeito do parceiro, mas logo percebem que nunca haverá tempo suficiente para descobrir tudo o que desejam saber um sobre o outro. Nunca há.
1. Verão
As maravilhas que elas estão cozinhando são flores de abobrinha
O aroma é capaz de causar uma emoção rápida e aguda em uma pessoa com fome. Belezinhas fumegantes, elas repousam em uma grande e desordenada pilha sobre o linho branco. O amarelo das flores transparece sob a camada dourada e crocante que as recobre. “Uma pele fina como vidro veneziano”, penso. Mas estou longe de Veneza. Agora moramos na Toscana. Desde hoje de manhã, moramos na Toscana. Digo essas palavras a mim mesma despreocupadamente, como se tudo tivesse se resolvido em apenas um dia. Ontem, Veneza. Hoje, San Casciano dei Bagni. E, seis horas depois da chegada, já estou aqui dentro de uma cozinha: a pequena e enfumaçada cozinha do bar local, observando duas cozinheiras com chapéus brancos e aventais azuis que preparam antipasti para o que parece ter se tornado um festival do vilarejo.
As maravilhas que elas estão cozinhando são flores de abobrinha, grandes e aveludadas, quase tão largas e compridas quanto lírios. E a coreografia do processo de fritura é precisa: passar uma flor rapidamente pela mistura para empanar quase líquida, deixar o excesso escorrer de volta para a tigela, pôr a flor gentilmente na frigideira larga e baixa com óleo quente, escaldante. Depois outra flor e mais outra. Doze de cada vez em cada uma das quatro frigideiras. As flores são tão leves que, à medida que uma crosta vai se formando em um dos lados, elas se inclinam no óleo e ficam se revirando várias vezes até que uma escumadeira entra em cena para salvá-las, colocando-as por um instante sobre um papel marrom e grosso. Depois, o papel é usado como apoio para transportar as flores até uma bandeja forrada de linho. Uma das cozinheiras enche uma garrafa vermelha de vidro com água morna salgada, encaixa um borrifador no gargalo e, segurando a garrafa com o braço esticado, asperge as flores douradas. As crostas quentes sibilam e o aroma das flores fritas sobe e é levado pela úmida brisa de junho.
Comida que sai “da panela para a mão e da mão para a boca”. Esse é o alimento para os 12 minutos de intervalo até o jantar, então, quando as primeiras 100 flores estão prontas, a cozinheira que se chama Bice me passa a bandeja:
– Vai, vá – diz sem levantar os olhos.
Uma instrução de cozinha de uma colega para outra, de uma chef para outra. Ela a pronuncia com familiaridade, como se trabalhássemos juntas há anos. Mas esta noite não sou a chef. Acho que sou uma convidada – ou, quem sabe, a anfitriã? Não sei ao certo como essa festa começou, mas fico contente que tenha começado.
Ainda sem ter tomado banho depois da viagem da manhã e do trabalho da tarde, estou feliz e salgada como as flores de abobrinha que ofereço às pessoas, que as aceitam sem cerimônia. Sinto a mesma familiaridade à medida que cada um sorri ou me dá um tapinha nas costas, dizendo “Grazie, bella, obrigado, minha linda”, como se eu tivesse lhes servido flores de abobrinha quentes e crocantes a vida toda. Gosto disso. Por um instante, penso em sair correndo com a cesta para um canto escuro da piazza para devorar eu mesma as flores restantes, os olhos semicerrados em um êxtase sensual em meio às sombras. Mas não faço isso. Algumas pessoas não conseguem esperar que eu chegue até elas e se aproximam, pegam uma flor enquanto tomam um gole de vinho ou falam com alguém olhando para trás. As pessoas estão se reunindo à minha volta, aves de rapina que só param de dar seus rasantes quando sobram apenas migalhas crocantes e ainda quentes, as quais recolho com a ponta do dedo antes de levá-lo à boca.
Dirijo-me a um pequeno grupo que está elogiando o dono da fazenda onde aquelas delícias foram colhidas pela manhã. Ele diz que haverá mais no dia seguinte, que, se alguém quiser pegar algumas, vai deixar um carregamento de flores na casa de Sergio às sete horas. Seguem-se três conversas separadas e simultâneas sobre a melhor maneira de preparar flores de abobrinha. Recheá-las ou não? Recheá-las com mozzarella e anchovas salgadas, recheá-las com uma pequena fatia de ricotta salata, recheá-las com ricota fresca e algumas folhas de manjericão, preparar a mistura para empanar com cerveja ou com vinho branco, acrescentar azeite ou não? E a pergunta mais importante de todas: fritar as flores em óleo de amendoim ou em azeite extravirgem? Distraída por essas conversas, não ouço alguém me chamando do outro lado da pequena piazza.
– Chou-Chou – diz Bice, batendo exasperadamente o pé esquerdo na entrada do bar, com outra bandeja sobre os braços esticados.
Dessa vez, navegando por entre a multidão com mais agilidade, distribuo as flores fumegantes em tempo recorde. Embora eu não tenha sido apresentada à maioria daquelas pessoas, todas parecem saber que Fernando e eu acabamos de nos mudar para a casa dos Lucci, descendo a colina. Essa informação é apenas um primeiro indício da eficiência do sistema de comunicação interna do vilarejo, ativado, sem dúvida, pelo pequeno batalhão de san cascianesi que se reuniram mais cedo na porta de nossa casa para nos dar as boas-vindas.
Uma coisa leva a outra, mas… como um aperitivo de boas-vindas se transformou num grande jantar e por que estou segurando com tanta força esta bandeja vazia?