INTRODUÇÃO
Quando as pernas deixarem de andar,
caminharemos pelas memórias.
Quando as pernas deixarem de andar e
os olhos deixarem de ver, caminharemos
pelas memórias e estas serão nítidas.
Quando as pernas deixarem de andar e
os olhos deixarem de ver e os ouvidos
deixarem de ouvir, caminharemos pelas
memórias e estas serão nítidas e vozes
esquecidas contarão tudo de novo.
Susana Moreira Marques.
Não um livro sobre mortes, mas um livro sobre vidas. Sobre como viver não apenas “sobre”vivendo – à margem, à parte, separado do viver de verdade. Para aqueles que acreditam que a busca da verdade se dá pelo conhecimento, pode ser uma epifania. A revelação de que a verdade não é uma teoria bem explicada, mas uma experiência. Saberemos a verdade sobre tudo o que pensamos ser verdade apenas no momento em que conseguirmos abrir mão de certezas e abraçar o desconhecido mundo da entrega à vida; da entrega ao Amor pela vida.
Tenho passado por incontáveis vidas presenciando o sofrimento e proporcionando, por meio do alívio da dor, experiências incríveis de superação, de coragem, de amor, de fé, de humor, de felicidade. Sim, acreditem: a vida digna e feliz é possível até nosso último momento. A felicidade de se saber importante, digno de ser lembrado, ouvido e respeitado é algo que penso ser indispensável no roteiro a que estamos sendo expostos nesta vida.
Sou médica e, dentro da medicina, escolhi olhar para o sofrimento que a morte e a consciência da finitude podem trazer. Ao longo do curso, na Universidade de São Paulo (USP), várias vezes pensei em desistir. Essa ideia se fez especialmente forte quando um professor me disse que não havia nada a fazer por um paciente que, encontrando-se no estágio mais avançado de uma doença e sentindo muita dor, não recebia tratamento para seu sofrimento total – ou seja, físico, mas também psicológico, social e espiritual. Naquela época – 1990 –, creio que o conhecimento sobre como agir em situações limítrofes como essa ainda não estava disponível no Brasil, embora na Inglaterra, por exemplo, se discutisse o assunto desde pouco antes de 1970. Eu identificava também certo conformismo diante da dor do outro em seus momentos finais. Indignada e me sentindo impotente, passei por uma crise não apenas vocacional como também existencial, enorme o suficiente para caber nos meus 20 e poucos anos. Tranquei a matrícula da faculdade e guardei a chave daquele templo que eu ainda não conseguia entender. Acabei voltando, mas a crise só encontrou um alívio quando, durante a residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas, li uma carta de alforria para a ignorância daqueles que presenciam sofrimentos e não sabem como cuidar de tudo que cerca a morte de um ser humano: Sobre a morte e o morrer, da médica suíça Elisabeth Kübler-Ross. Foi ali que decidi me dedicar a aprender essa grandeza de conhecimento e sabedoria.
Me especializei em Cuidados Paliativos, recebendo o diploma do Instituto Pallium e da Universidade de Oxford. Desde então, não parei mais. Implementei os primeiros protocolos assistenciais e políticas em cuidados paliativos no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e por cinco anos fui a médica responsável pelo Hospice, a unidade de cuidados paliativos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP). Todos os dias encontro pessoas que estão prestes a encerrar sua história por esta vida. Meu segundo livro (o primeiro foi de poesia, Linhas pares, de 2012, publicação independente), com o inquietante título A morte é um dia que vale a pena viver (Sextante, 2019), superou as expectativas mais otimistas em relação ao interesse que despertaria e ao desempenho nas livrarias. É uma reflexão sobre sofrimento, finitude e a necessidade de repensarmos nossa relação com a morte e com tudo que ela pode significar. Essa trajetória me colocou em contato diário com histórias de pessoas que se descobriram muito vivas sem precisar de nenhum diagnóstico de adoecimento fatal, pessoas que perceberam o valor da vida
sem que precisassem, para isso, se aproximar da morte.
Cada um dos personagens deste livro é um convidado de honra na minha existência como médica e como ser humano. Tive o cuidado de proteger a identidade deles usando apenas iniciais e alterando alguma informação, seja idade, tempo de vida ou diagnóstico, pois o que importa dessa verdade compartilhada vem da sabedoria dos diálogos, dos encontros, dos silêncios.
Não seria justo dizer que estão aqui as melhores histórias; estão aquelas que contemplaram a diversidade de
aprendizados que torna a vida tão bela e tão cheia de sentido exatamente porque termina. Uma vida que está se encerrando guarda um poder imenso de transformar outras vidas ao redor, com um toque de amor e generosidade que, para muitos, só será uma experiência possível no tempo de morrer. Partilho aqui alguns dos momentos reveladores em que a presença iminente da morte foi capaz de despertar o melhor de cada um, transformando o final da existência em uma epifania, uma descoberta. Cada linha deste livro foi escrita com vida de verdade e traz meu testemunho de histórias extraordinárias.
Quando se está próximo da morte, a percepção do que realmente importa viver se intensifica de maneira profunda. Tudo que não faz sentido para uma vida plena perde espaço, por mais que tenha sido valorizado no passado. As convenções sociais, os papéis impostos, o medo de encontrar olhos que digam tudo a respeito de sentimentos verdadeiros, tudo isso desaparece. Uma pessoa que sabe de sua morte iminente pode se tornar a mais sábia em relação à própria vida, que agora se revela em beleza e cores jamais vistas.
Evidentemente, nada disso ocorrerá na presença de sofrimento intenso, ainda mais se for físico. Só podemos
vislumbrar a beleza de nossa existência se o corpo estiver confortável, sem dor, sem falta de ar. Também precisaremos de pessoas à nossa volta que saibam ouvir nossos medos e desejos em relação a esse tempo de terminar.
Quando cuido de pessoas que morrem enfrentando a própria fragilidade com o máximo de potência e coragem, encontro seres humanos no ápice de sua sabedoria. Agora, imagine que cada um desses seres humanos que encontrei ao longo de minhas peregrinações como médica paliativista pudesse estar com você por uma noite para revelar o segredo da vida. Imagine que cada um desses mestres chegasse à sua casa para uma conversa a sós, com um sorriso de total disponibilidade, presente e iluminado, tendo como único propósito ensinar a você o que realmente importa aprender. Essa pessoa já completou sua vida. Já tem seu diploma, um legado reconhecido, e agora pode lhe mostrar o caminho que a fez chegar dessa forma diante de você, pronta para ouvir as angústias e dúvidas dos tempos que você atravessa agora. Imagine que a sabedoria de cada pessoa que se expressa aqui, por meio das minhas memórias, está a serviço de ouvir suas inquietações e seus temores, oferecendo amparo e escuta.
Jamais esquecerei essas pessoas e gostaria que você as conhecesse neste livro. Receba-as uma por vez, em uma noite fria, saboreando uma bebida que aquece, ou em uma noite quente, permitindo que uma brisa leve e fresca transporte seu coração a esse encontro sagrado entre quem vive e quem soube viver. Procure valorizar cada ensinamento, cada palavra compartilhada que elas descobriram como verdade na experiência de viver até o fim. Vai ter lágrima, uma forma de amor líquido que renovará seu coração. E vai ter muito sorriso, uma espécie de “limpeza de disco” que abrirá sua mente para a experiência da compaixão por uma vida que valeu a pena ser vivida. Espero que a cada visita você cresça em sabedoria e humanidade, sorrindo o mesmo sorriso com que foi recebido ao mergulhar na história dessas pessoas. Cada uma delas me fez muito melhor. Mais do que a afeição que nos uniu, elas me habitam. Ocupam um espaço imenso no meu coração. Integram meus atos e pensamentos.
Este livro que você tem nas mãos pode proporcionar encontros que seu coração jamais antecipou. A revelação de segredos belíssimos da vida de pessoas que chegaram ao seu fim com a grandeza de quem soube viver a própria história. Pessoas como C., que teve a coragem de atravessar de olhos abertos e sorriso limpo tempos que nunca se imaginou capaz de enfrentar. Ou a mãe de M., que compreendeu o sentido da palavra “fé” no momento mais delicado e doloroso de sua vida. Creio que você entenderá o que Dona J. quis dizer sobre o significado de “justiça” e se comoverá com M., que encerra sua vida sob as bênçãos de um perdão que já estava presente muito antes do sentimento de culpa. Graças à linda história de C., você vai compreender a profundidade e a beleza da kalotanásia – “a morte bela” –, algo que só poderia acontecer (como de fato aconteceu) em uma vida que se desdobrou à luz daquilo que acreditamos que vale a pena viver. Espero que essas e as demais narrativas que compartilho toquem seu coração e sua vida, como tocaram a de todos que conheceram os protagonistas delas e viveram o tempo possível e eterno ao seu lado.
Boa leitura! Que a felicidade depois de cada encontro por aqui seja sua companhia, sempre.