INTRODUÇÃO
Por que a desonestidade é tão interessante?
“Existe uma maneira de descobrir se alguém é honesto:
basta perguntar a ele. Se responder ‘sim’, é um trapaceiro.”
– groucho marx, ator e comediante americano.
Meu interesse por trapaças e fraudes foi despertado em 2002, poucos meses após o colapso da Enron. Eu estava passando a semana em outra cidade para participar de uma conferência ligada à tecnologia e, uma noite, conheci John Perry Barlow, compositor da banda Grateful Dead. Durante nossa conversa, descobri que ele trabalhava também como consultor para algumas empresas, inclusive a Enron.
Em linhas gerais, a queda da queridinha de Wall Street em 2001 foi mais ou menos assim: graças a uma série de truques de contabilidade – auxiliados pela vista grossa de consultores, agências de avaliação de risco, do conselho de administração da empresa e da agora extinta firma de auditoria Arthur Andersen –, a Enron alcançou altos patamares de sucesso financeiro para depois despencar quando seus atos não puderam mais ser ocultados. Acionistas perderam seus investimentos, planos de previdência viraram pó, milhares de funcionários ficaram sem emprego e a empresa foi à falência.
Enquanto eu conversava com John, a descrição que ele fez de sua própria cegueira voluntária me despertou interesse. Embora prestasse consultoria à Enron enquanto a empresa rapidamente degringolava, ele disse que não havia visto nada de sinistro ocorrendo. Na verdade, comprara totalmente a ideia de que a Enron era uma líder inovadora da nova economia até o momento em que a história chegou a todas as manchetes. De forma ainda mais surpreendente, ele também me contou que, depois que a informação foi divulgada, não conseguia acreditar que não tivesse enxergado os sinais aquele tempo todo.
Aquilo me fez pensar. Antes de conversar com John, eu supunha que o desastre da Enron fora causado basicamente por seus três perniciosos artífices de nível executivo (Jeffrey Skilling, Kenneth Lay e Andrew Fastow), que juntos haviam planejado e executado uma fraude contábil em larga escala. Mas ali estava eu sentado com aquele sujeito, de quem gostava e que admirava, que tinha a própria história de envolvimento com a Enron – uma história de cegueira voluntária, não de desonestidade deliberada. Era possível, claro, que John e todos os demais envolvidos com a Enron fossem profundamente corruptos, mas passei a pensar em um tipo diferente de desonestidade em ação – mais ligada à cegueira voluntária e praticada por gente como John, você e eu. Comecei a me perguntar se o problema da desonestidade vai mais fundo do que apenas umas poucas maçãs podres e se esse tipo de cegueira voluntária ocorre em outras empresas também.* Quis saber se meus amigos e eu teríamos nos comportado de forma semelhante se a consultoria para a Enron estivesse a nosso cargo.
Fiquei fascinado com o tema da trapaça e da desonestidade. De onde isso vem? Qual é o potencial humano para a honestidade e a desonestidade? E, talvez o mais importante, a desonestidade se restringe a umas poucas maçãs podres ou é um problema mais generalizado?
Percebi que a resposta a essa última pergunta poderia mudar substancialmente nossa forma de lidar com a desonestidade, ou seja, se apenas umas poucas maçãs podres são responsáveis pela maioria das trapaças no mundo, remediaríamos o problema com facilidade. Departamentos de recursos humanos poderiam fazer a triagem dos trapaceiros durante o processo de contratação ou melhorar o procedimento de se livrar das pessoas que com o tempo se mostrassem desonestas.
Porém, se o problema não se limita a uns poucos desajustados, então qualquer pessoa poderia se comportar de forma desonesta no trabalho e em casa – você e eu, inclusive. E, se todos temos o potencial de ser ligeiramente criminosos, é importantíssimo primeiro entender como a desonestidade funciona e depois achar meios de conter e controlar esse aspecto de nossa natureza.
O que sabemos sobre as causas da desonestidade? Na economia racional, a concepção predominante de trapaça vem de Gary Becker, economista da Universidade de Chicago. Vencedor do Prêmio Nobel, ele afirmou que as pessoas cometem crimes com base na análise racional de cada situação. Como descreve Tim Harford no livro A lógica da vida,* o surgimento dessa teoria foi bem trivial. Um dia, Becker estava indo para uma reunião, já em cima da hora, e, por não encontrar vaga para estacionar, decidiu parar em local proibido e se arriscar a levar uma multa. Ele examinou seu raciocínio naquela situação e observou que sua decisão havia sido uma questão de comparar o possível custo – ser pego, multado e provavelmente rebocado – com o benefício de chegar à reunião a tempo. Também notou que, ao comparar custos com benefícios, não houve lugar para considerações de certo ou errado. Tratou-se simplesmente de comparar os possíveis resultados positivos e negativos.
Assim surgiu o Modelo Simples do Crime Racional (do inglês Simple Model of Rational Crime – SMORC). De acordo com ele, todos pensamos e agimos basicamente como fez Becker. À semelhança de um assaltante comum, buscamos tirar alguma vantagem em nossa interação com o mundo. Se o fazemos assaltando bancos ou escrevendo livros, é irrelevante para nossos cálculos racionais de custos e benefícios. De acordo com a lógica de Becker, se estamos sem dinheiro e passamos por uma loja de conveniência, rapidamente estimamos quanto dinheiro existe na caixa registradora, consideramos as chances de ser pegos e imaginamos qual punição poderíamos sofrer (obviamente conseguindo uma redução da pena por bom comportamento). Com base nesse cálculo de custo-benefício, decidimos então se vale a pena assaltar o local ou não. A essência da teoria de Becker é que de cisões sobre honestidade, como quase todas as demais decisões, baseiam-se em uma análise de custo-benefício.
O SMORC é um modelo bem direto da desonestidade, mas a questão é se descreve precisamente a conduta das pessoas no mundo real. Se esse é o caso, a sociedade tem dois meios claros de lidar com a desonestidade. O primeiro é elevar a probabilidade de ser pego (contratando mais policiais e instalando mais câmeras de segurança, por exemplo). O segundo é aumentar a magnitude da punição para os criminosos (por exemplo, impondo maiores penas de prisão e multas). Esse, meus amigos, é o SMORC, com suas claras implicações para o combate ao crime, as punições e a desonestidade em geral.
Mas e se a visão um tanto simplista do SMORC for imprecisa ou incompleta? Nesse caso, as abordagens-padrão para vencer a desonestidade serão ineficientes e insuficientes. Se o SMORC é um modelo imperfeito das causas da desonestidade, precisamos primeiro descobrir quais forças realmente levam as pessoas a trapacear e depois aplicar essa compreensão aprimorada para reprimir a desonestidade. É exatamente disso que trata este livro.*
O chamado da arte
Em abril de 2011, o programa de rádio This American Life, 1 de Ira Glass, apresentou uma matéria sobre Dan Weiss, um jovem universitário que trabalhava no Centro John F. Kennedy de Artes Cênicas, em Washington. Sua função era cuidar do estoque das lojas de suvenires do centro, onde uma equipe de 300 voluntários bem-intencionados – em sua maioria, aposentados que adoravam teatro e música – vendia as mercadorias aos visitantes.
As lojas de suvenires eram administradas como barracas de limonada. Não havia caixas registradoras, apenas caixas de papel onde os voluntários depositavam o dinheiro e de onde pegavam o troco. As lojinhas eram um ótimo negócio, com mais de 400 mil dólares em vendas de mercadorias anualmente. Mas tinham um grande problema: daquela quantia, uns 150 mil dólares desapareciam a cada ano.
Quando foi promovido a gerente, Dan assumiu a tarefa de capturar o ladrão. Começou a suspeitar de outro jovem funcionário cujo trabalho era levar o dinheiro ao banco. Contratou um detetive para montar uma operação e, numa noite de fevereiro, armaram a cilada. Dan colocou notas marcadas na caixa de papel e partiu. Depois, ele e o detetive se esconderam atrás de umas árvores ali por perto, aguardando pelo suspeito. Quando acabou o expediente e o membro suspeito da equipe foi embora, eles o abordaram e acharam algumas das notas marcadas no seu bolso. Caso encerrado, certo?
Não exatamente, como se constatou depois. O jovem empregado furtou apenas 60 dólares naquela noite, e, mesmo após sua demissão, o dinheiro e as mercadorias continuaram desaparecendo. O próximo passo de Dan foi criar um sistema de estoque com listas de preços e registros de vendas. Ele orientou os aposentados a anotar o que era vendido e o que recebiam, e os furtos cessaram. O problema não era um único ladrão, mas a multidão de voluntários idosos, bem-intencionados, amantes das artes que se apropriavam dos produtos e do dinheiro que estavam ali de bobeira.
A moral dessa história não é nada edificante. Nas palavras de Dan: “Nós vamos nos apropriar de coisas que não nos pertencem se tivermos uma chance. (…) Muitas pessoas precisam de alguma forma de controle para fazerem a coisa certa.”
O principal propósito deste livro é examinar as forças racionais de custo- -benefício que supostamente impeliriam o comportamento desonesto mas que, na verdade (como você verá), muitas vezes não impelem. Além disso, vamos examinar as forças irracionais que achamos que não importam mas com frequência fazem a diferença. Ou seja, quando uma grande quantidade de dinheiro desaparece, em geral achamos que foi obra de um criminoso frio e calculista. Mas, como constatamos na história dos amantes das artes, a trapaça ou a fraude não se devem necessariamente a um único sujeito fazendo uma análise de custo-benefício e furtando um montão de dinheiro. Em vez disso, não é incomum que muitas pessoas achem justificável pegar um pouquinho de dinheiro ou poucas mercadorias repetidas vezes.
A seguir exploraremos as forças que nos incitam a trapacear e daremos uma olhada mais de perto no que nos mantém honestos. Discutiremos o que faz a desonestidade se manifestar e como trapaceamos em nosso benefício ao mesmo tempo que mantemos uma visão positiva de nós mesmos – uma faceta de nossa conduta que viabiliza grande parte de nossa desonestidade.
Uma vez exploradas as tendências básicas subjacentes à desonestidade, nos voltaremos para alguns experimentos que nos ajudarão a descobrir as forças psicológicas e ambientais que aumentam e reduzem a honestidade em nosso cotidiano, incluindo conflitos de interesse, falsificações, promessas, criatividade e o mero cansaço. Exploraremos os aspectos sociais da desonestidade também, inclusive de que forma os outros influenciam nossa compreensão do que é certo e errado, e nossa capacidade de trapacear quando outros conseguem se beneficiar de nossa desonestidade. Por fim, tentaremos entender como a desonestidade funciona, como depende da estrutura de nosso ambiente cotidiano e sob quais condições tendemos a ser mais ou menos desonestos.
Além de explorar as forças que moldam a desonestidade, um dos principais benefícios práticos da abordagem da economia comportamental é mostrar as influências internas e ambientais sobre nossas atitudes cotidianas. Depois que entendemos mais claramente o que de fato nos impele, descobrimos que não estamos impotentes diante de nossas falhas humanas (entre as quais a desonestidade), que podemos reestruturar nosso contexto e assim obter melhores comportamentos e resultados.
As pesquisas que descrevo nos próximos capítulos ajudarão a entender o que causa nosso comportamento desonesto e indicarão alguns meios interessantes de reprimi-lo e limitá-lo.
Que comece a jornada!