Autor: Filipe Isensee
“Enquanto eu respirar”: a beleza de viver cada dia como se fosse o último
Num relato comovente, jornalista conta como a notícia de que não havia mais cura para seu câncer a transformou: “Essa história não é sobre câncer, mas sobre viver”
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Num relato comovente, jornalista conta como a notícia de que não havia mais cura para seu câncer a transformou: “Essa história não é sobre câncer, mas sobre viver”
“Enquanto eu respirar” é uma celebração da vida. Não carrega, porém, o traço ingênuo dos filtros que se contentam em camuflar dores. Há apenas – embora isso seja tanta coisa – um desejo vibrante de que as dores não subtraiam a alegria que é viver o tempo que se tem para viver, com o que se tem para viver. Lidar com incertezas faz parte da jornada de qualquer ser humano, pois flertamos com a morte a todo instante, quer queiramos ou não. Um dia, talvez sem consciência disso, façamos algo pela última vez. Para morrer basta estar vivo, não é mesmo? Mas há alguns casos, especialmente diante de doenças graves e incuráveis, que a efemeridade se torna mais latente, se agiganta, ocupando espaço no corpo, na alma e na casa de quem recebe uma notícia que parece gritar: “não há mais tempo de ser tudo”. Aos 32 anos, a jornalista Ana Michelle Soares descobriu que seu câncer de mama atingiu outros órgãos e que não havia mais possibilidade de cura. Por meio de cuidados paliativos, os sintomas da doença estão sendo controlados para garantir qualidade de vida até o fim. Esse é só o começo da história.
O livro é a resposta de AnaMi, como a jornalista é conhecida. Aqui, ela desenvolve um relato tão delicado quanto emocionante da sua relação com a morte e com a vida. De fato, é um texto sobre o tempo: o que passou, o que pode não chegar, mas, sim, sobretudo sobre o tempo que se vive dia após dia, como numa íntima dança a dois. E se vive. Se vive mesmo, é bom frisar. É essa a prerrogativa de sua história. “Enquanto eu respirar” é o testemunho de uma mulher que se agarrou à felicidade de viver e, na medida do possível, tornou a sentença abotoada ao câncer uma lembrança de que aproveitar a vida é urgente. Ela costura a história sem perder as marcas de sua personalidade, o que significa pitadas de humor lá e cá, contribuindo para a sensação de ler algo vivo, que pulsa. Visceral, portanto. “Quem se toca que todo dia é um passo rumo ao fim não permite a existência de dias inúteis”, salienta.
Há também em seu relato uma reavaliação do que foi vivido e um alargamento de perspectivas imposto por esse momento-limite. Generosamente, AnaMi compartilha impressões, intensidades e temperaturas de sua jornada, nos lembrando de obviedades que insistem em nos escapar: “Sim, é possível rir disso tudo”, “A vida acaba pra todo mundo, saudável ou não” ou “Essa história não é sobre câncer, mas sobre viver”. Essas e muitas outras.
Numa época em que se fala cada vez mais sobre o processo de morrer, o livro dá um destaque merecido aos chamados Cuidados Paliativos, um conjunto de ações que atenuam o sofrimento de pacientes que enfrentam doenças que ameaçam a vida – aliás, a introdução do livro é um recado carinhoso de Ana Claudia Quintana Arantes, médica especialista no assunto e autora de “A morte é um dia que vale a pena viver”, título fundamental para conhecer melhor os preceitos desse processo humanizado. Em determinado trecho, a jornalista reclama do fato de muitos pacientes ignorarem o significado do tratamento paliativo e de perderem o poder de decisão sobre a própria vida por medo do médico, da família, do julgamento alheio.
“Enquanto eu respirar” é sobre amizade
A história de AnaMi encontra a de Renata, a quem o livro é dedicado. Em comum, não só o diagnóstico de câncer de mama metastático e o tratamento paliativo, mas, principalmente, a sede de vida. As duas queriam a emoção de mais um dia, “mesmo que a programação fosse fazer quimioterapia”. Decidiram ir à luta, com um sorriso no rosto e uma piada na ponta da língua. AnaMi conta que a amiga estava num bom momento profissional quando foi obrigada a pausar a carreira para tratar do câncer. Passagens felizes da vida de Renata, como o casamento com Rafael e as viagens feitas com as amigas, e as mais densas e tristes, como a negligência médica e os efeitos colaterais do tratamento, estão nas páginas de “Enquanto eu respirar“. A jornalista recorda que a postura questionadora de Rê convivia com a capacidade de ela sempre rir da própria vida, apesar dos muitos choros pelo caminho.
“Conhecer a Renata, que enfrentava o mesmo diagnóstico que o meu, foi fundamental para a minha sanidade mental, assim como outras pacientes com câncer de mama metastático que se tornaram grandes amigas e que ressignificaram para mim até mesmo o conceito de sororidade. Não era sobre ter o mesmo objetivo. Era sobre lutar umas pelas outras, ainda que os objetivos fossem diferentes”, ressalta AnaMi. Em outro momento, ela volta a exaltar a amiga, “a única pessoa capaz de me fazer esquecer de qualquer dor que estivesse sentindo. Estar com ela era garantia de, no mínimo, voltar pra casa com boas reflexões na bagagem”.
Como AnaMi confirma, as duas tomaram para si a vivacidade elétrica das pessoas que não se desculpam pelo que sentem, vivendo em três anos de amizade o que muita gente não experimentou em noventa. “Eu e Renata nos permitimos viver belas curas quando simplesmente perdoamos a nós mesmas. Fazer as pazes com o passado nos possibilitou um hoje mais leve e um futuro com melhores perspectivas. E, acredite, não tem nada melhor do que o desejo real de poder dizer que ‘não escolheria outra vida’, como sempre repetia a Renata”.
Ao apostar na honestidade de seu relato, no amor pela amiga e na perspectiva positiva como bússola de escrita, “Enquanto eu respirar” comove o leitor. Os ensinamentos contidos nele são para guardar e lembrar. Renata morreu em agosto de 2018. A vida permanece na memória de quem conviveu com ela.
Parte das aventuras das amigas está registrado no perfil Paliativas, criado no Instagram no dia 9 de novembro de 2016.