O que levou AnaMi escrever um livro numa cama de hospital, em um cenário de dúvidas e angústias a respeito da própria sobrevivência, superando dores, teclando uma letra de cada vez?
O que leva uma pessoa a escrever um livro numa cama de hospital, em um cenário de dúvidas e angústias a respeito da própria sobrevivência, superando dores, teclando uma letra de cada vez?
Foi o que eu me perguntei, como editora, quando chegaram os primeiros textos de Entre a lucidez e a esperança, o terceiro livro de Ana Michelle Soares.
Eu já sabia que ela estava internada. Sabia que a doença havia progredido. O câncer, que surgiu na mama e evoluiu para metástase, agora tinha alcançado a cabeça. A radioterapia era massacrante. AnaMi, como a comunidade de seguidores do perfil @paliativas no Instagram passou a conhecê-la, tinha muito com que se ocupar. E, no entanto, estava escrevendo mais um livro.
Em dezembro passado ela teve uma alta breve para comemorar seus 40 anos em casa. Estive lá. Naquela altura, eu já tinha lido os primeiros textos e estava impressionada. Era um livro diferente dos anteriores. Enquanto eu respirar, lançado em 2019, era um relato de amor à vida. Vida inteira, de 2021, vibrava com espiritualidade. E este, o que seria?
Entre a lucidez e a esperança é um legado.
À medida que novos textos chegavam, vinha também o entendimento de por que AnaMi estava tão dedicada a escrever mais um livro. De algum jeito, ela queria continuar vivendo. Se não com o corpo físico, que fosse através das palavras.
Para sobreviverem a ela, suas palavras teriam que ser ainda mais relevantes do que tudo que já tinha escrito. E foi isso que ela buscou.
Há uma probabilidade enorme de que o câncer bata à porta de alguém que amamos, ou à nossa porta. Não é uma sentença de morte. É sentença de vida a ser vivida sem picuinhas, com alegria, porque não há como saber – com ou sem câncer – quanto tempo ainda temos.
Dancemos com a incerteza, diria ela.
Ana Michelle ensina alguns passos expondo como nunca as próprias fragilidades. Seu último livro – ela faleceu em 21 de janeiro de 2023 – não esconde dor nem raiva. É o desnudamento de emoções de uma mulher intensa que queria viver mais, mas pressentia a partida. É de se ler com a respiração suspensa, um sorriso de vez em quando, lágrimas sorrateiras e uma vontade imensa de honrar cada dia.
Naquela festa de 40 anos, ela me perguntou:
– Me fala a verdade, seja honesta. Está ficando bom? Posso continuar escrevendo?
(Como se precisasse da minha permissão. Ela, que já sabia tudo.)
Eu a abracei. Disse que estava ficando lindo e que era para continuar naquele caminho. O resultado está nas prateleiras das livrarias, nas plataformas digitais, no coração de quem sente saudade.
Vida longa ao legado de Ana Michelle. Que possamos envelhecer como ela gostaria de ter envelhecido.