INTRODUÇÃO
São quase sete da noite em Santa Fé, no Novo México, e o céu de julho ainda está claro. Estou sentada num banco sob as flores. Passarinhos cantam numa árvore próxima. Não consigo vê-los, escondidos no emaranhado de folhas, mas os ouço com tanta clareza que parecem estar ao meu lado. Mais ao longe, um corvo grasna. Estaria conversando com os passarinhos? Ainda mais distante, o latido de um cão. Uma brisa leve balança as flores roxas e compridas que ladeiam meu banco, e elas farfalham umas contra as outras. Um carro passa perto, seu motor mais silencioso que as rodas pesadas que esmagam o cascalho. Uma buzina toca ao fundo na rua principal. As asas de um pássaro se agitam enquanto ele cruza o céu, deslizando para longe até sumir. Perto de mim, na folhagem acima, os passarinhos conversam menos, mas ainda cantam numa disputa afinada. Antes era como se todos falassem ao mesmo tempo; agora parecem se revezar. Será que estão se escutando?
E o que significa escutar? Qual a importância disso em nosso dia a dia? Escutamos o mundo à nossa volta, seja no canto dos pássaros, seja no tumulto da cidade – embora às vezes nos desliguemos sem escutar nada. Escutamos os outros – mas talvez devêssemos escutá-los melhor. Os outros nos escutam – ou gostaríamos que nos escutassem. Escutamos nossos instintos, palpites, tendências – ou talvez precisássemos ouvi-los mais e melhor. Praticar a arte da escuta é sintonizar-se com as pistas e os sinais que nos cercam todos os dias. É reservar um momento para desacelerar e simplesmente ouvir, sabendo que com isso não perdemos tempo. Pelo contrário: ao escutar, ganhamos tempo. Escutar é algo que todos fazemos e podemos fazer melhor. Quando aprimoramos nossa capacidade de escuta, melhoramos nossa vida. E nesse processo há ferramentas que podemos usar para nos tornarmos melhores ouvintes – do mundo, dos outros e de nós mesmos.
Este livro é um guia que vai estimular você a exercitar a escuta mais atenta e profunda. Quando escutamos de verdade, prestamos atenção. A arte da escuta promove cura, percepção e clareza. Traz alegria e entendimento. Traz, acima de tudo, conexão.
O CAMINHO PARA A ESCUTA MAIS PROFUNDA
Ao longo das próximas seis semanas, você será convidado a expandir sua escuta, um nível de cada vez. Cada etapa serve de base para a próxima. Aprendi que, quando exercitamos a escuta de forma consciente, nossa habilidade se desenvolve mais rápido. Mergulhar na arte da escuta não requer tempo, já que é uma simples questão de estar atento. Este livro guiará você para uma escuta cada vez mais profunda, dentro da sua rotina normal, não importa se você vive com a agenda cheia, more no campo ou na cidade.
Todos escutamos, e fazemos isso de infinitas formas.
Quando escutamos o mundo à nossa volta, sintonizar os sons que geralmente não notamos é surpreendentemente prazeroso: os passarinhos cantando no alto da árvore nos encantam; o tique-taque do relógio da cozinha nos dá a sensação de estabilidade e conforto; o tilintar da plaquinha da coleira do cachorro batendo na tigela de água nos faz sorrir.
Escutando outras pessoas, aprendemos que podemos ouvi-las mais atentamente. Quando escutamos – de verdade – o que os outros têm a dizer, muitas vezes nos surpreendemos com suas percepções. Quando não interrompemos nem apressamos nosso interlocutor, deixando que ele exponha com calma seus pensamentos, percebemos que realmente não podemos prever o que o outro vai dizer. Somos lembrados de que cada um de nós tem muito a oferecer, e que, tendo oportunidade de falar e ser ouvidas, as pessoas podem contribuir com algo além do que esperávamos. Só precisamos escutar.
Escutamos nosso eu superior e, com isso, encontramos um caminho. Não precisamos nos esforçar demais para pensar numa solução; em vez disso, escutamos e recebemos a resposta. A voz de nosso eu superior é calma, clara e direta. Aceitamos cada inspiração que nos chega, confiando nos pensamentos geralmente simples que surgem como ideias, palpites ou intuições.
Depois que aprendemos a escutar nosso eu superior, ficamos aptos a ouvir ainda mais profundamente, alcançando até os entes queridos que já se foram. Encontramos um caminho único e individual em que nossa conexão com eles permanece intacta, assim como nossa capacidade de explorá-la e expandi-la com facilidade. Indo mais longe, aprendemos a escutar nossos heróis, aqueles que não chegamos a conhecer, mas que gostaríamos de ter conhecido. E, finalmente, aprendemos a escutar o silêncio. Passo a passo, esse caminho se tornará uma experiência agradável por estarmos mais conectados com o mundo, com nós mesmos, com as pessoas amadas e muito mais.
Escutemos.
AS FERRAMENTAS BÁSICAS
Há quarenta anos venho ministrando oficinas sobre desbloqueio criativo, apresentando técnicas e ferramentas práticas. Tenho observado alunos florescerem criativamente, publicando livros, escrevendo peças de teatro, abrindo galerias de arte ou redecorando suas casas. Também vejo mudanças nítidas e constantes em meus alunos à medida que vão trabalhando com as ferramentas que ensino: eles ficam mais felizes e mais serenos. Muitos consertam relacionamentos, outros colocam um ponto final em relações nocivas. Suas relações se tornam mais sinceras e produtivas. Conforme ficam mais francos consigo mesmos, tornam-se mais francos com os outros. Quando tratam a si mesmos com mais gentileza, ficam mais gentis com os outros. Se ousam mais, inspiram outros a ousarem também.
Passei a acreditar que essas mudanças acontecem porque, com o uso das ferramentas, os alunos se tornam melhores ouvintes – primeiro de si mesmos, depois dos outros. Meu trabalho parte dessa observação e mergulha mais fundo na raiz de toda criação e conexão: nossa capacidade de escutar.
As ferramentas básicas para desenvolver a arte da escuta são as mesmas que apresento no livro O caminho do artista: Páginas Matinais, Encontro com o Artista e Caminhadas. Neste livro, cada ferramenta foi adaptada à ideia da escuta, e todas desenvolvem essa habilidade de maneira específica.
Com as Páginas Matinais, somos testemunhas de nossa própria experiência, ouvindo-nos atentamente todas as manhãs e abrindo caminho para uma melhor escuta no decorrer do dia. No Encontro com o Artista, escutamos nossa parte juvenil, que anseia por aventuras e é cheia de ideias interessantes. E, com as Caminhadas, escutamos o nosso ambiente e o nosso poder superior, ou eu superior. Caminhar sozinho costuma trazer grandes revelações, momentos de epifania que chamo de “aha”.
Já escrevi quarenta livros. Quando me perguntam como faço para arranjar inspiração, digo simplesmente que escuto. Às vezes pensam que estou sendo arrogante. Mas não; estou descrevendo meu processo de criação da forma mais precisa que consigo. A escrita é uma forma de escuta ativa. Escutar me diz o que escrever. Para mim, escrever é como fazer uma transcrição. Há uma voz interior que fala conosco quando escutamos. Ela é clara, calma e objetiva. É segura, pondo uma palavra após a outra, desenrolando o fio condutor do nosso pensamento.
Quando escutamos, somos guiados espiritualmente. Ao escutar nossa verdade emergente, nossa voz interna, tornamo-nos cada vez mais fiéis a nós mesmos. A franqueza se torna nosso guia. Recebemos um vislumbre de nossa alma.
“Sê fiel a ti mesmo”, aconselhou-nos o bardo. Quando nos tratamos com sinceridade, também lidamos com os outros de forma mais verdadeira. A arte da escuta nos leva à conexão. É um caminho comunitário, onde nos encontramos e saudamos o mundo, nossos semelhantes e a nós mesmos.
Por se basear na franqueza, esse caminho é espiritual. Quando escutamos nossa verdade particular, ouvimos a verdade universal. Exploramos um recurso interior que pode ser chamado de graça. Quando trabalhamos para escutar com mais autenticidade, ficamos cada vez mais francos. Passo a passo, vamos nos treinando para a franqueza. Com o tempo, ela se torna automática. O hábito da escuta precisa ser criado e praticado, e começar é simples. Você pode fazer como eu, que comecei (e ainda começo a cada dia) com a prática das Páginas Matinais. Vamos a elas?
PÁGINAS MATINAIS
Escreva diariamente três páginas com fluxo de consciência, logo ao acordar. O texto pode abordar toda e qualquer coisa. Pode ir do pensamento mais trivial ao mais profundo. Não há um jeito errado de fazê-las. As Páginas Matinais são a ferramenta mais poderosa para treinar a escuta.
“Esqueci de comprar a areia do gato…”, “Não liguei de volta para minha irmã…”, “O carro está com um barulho esquisito…”, “Detestei que Jeff tenha levado o crédito pela minha ideia…”, “Estou cansada, de mau humor…”.
As Páginas Matinais são como uma vassourinha com que você vasculha todos os cantinhos da consciência. Elas dizem: “É disso que gosto/É disso que não gosto/É isso que quero mais/É isso que não quero tanto.” As páginas são íntimas. Elas nos contam como realmente estamos nos sentindo. Nelas, não há espaço para evasão. Dizemos a nós mesmos que nos sentimos “ok” e depois analisamos o que queremos dizer: o que significa estar “ok”? Quer dizer “bem” ou “poderia estar melhor”?
Essas páginas são privadas e pessoais, só para seus olhos lerem. Não devem ser mostradas a ninguém, por mais íntima que seja a pessoa. Devem ser escritas à mão, não no computador, porque escrever à mão nos dá a sensação de vida real. Digitar é mais rápido, mas não estamos atrás de velocidade – estamos atrás de aprofundamento e individualidade. Queremos registrar exatamente como nos sentimos e o porquê desse sentimento.
As páginas põem fim às nossas negações. Com elas, descobrimos em que pensamos de verdade – o que muitas vezes pode nos surpreender.
“Preciso largar esse emprego”, podemos nos pegar escrevendo. Ou “Preciso de mais romance no meu relacionamento”. Escrever as páginas nos impulsiona a agir. Algo que parecia “bom o suficiente” já não parece satisfatório. Admitimos que merecemos mais e, com isso, reconhecemos nossa própria inércia.
Essas páginas são uma forma de meditação, pois escrevemos nossos pensamentos nebulosos à medida que vão passando por nossa consciência. São meditações, mas com uma diferença: ao contrário da meditação convencional, as páginas nos fazem agir. Em vez de exterminar nossas preocupações, elas nos confrontam com a pergunta: “O que você vai fazer a respeito disso?”
As Páginas Matinais nos colocam contra a parede e não se contentam com nada menos do que ação. Elas nos ensinam a assumir riscos, mas para nosso próprio bem. Na primeira vez que as páginas nos sugerem uma ação, pensamos: “Não consigo fazer isso!” Acontece que essas páginas são persistentes. Na segunda vez, pensamos: “Talvez eu consiga.” Pouco a pouco avançamos: “Acho que vou tentar…” No final acabamos realmente tentando – e com frequência somos bem-sucedidos.
“Eu sabia que você conseguiria”, as páginas parecem dizer, exultantes. Elas são companheiras que testemunham nossa vida. Mergulhamos nelas nos momentos de turbulência, e elas nos ajudam a organizar nossas ideias, tantas vezes conflitantes. Escrevemos: “Acho que preciso terminar esse relacionamento.” E logo depois completamos: “Talvez eu precise, na verdade, ter uma conversa franca.” Então chamamos a pessoa para uma conversa e ficamos satisfeitos com o resultado.
As Páginas Matinais nos põem em contato com nossa sabedoria. Por meio delas, acessamos um recurso interior que nos dá respostas para os mais variados problemas. Nossa intuição se acentua, e encontramos soluções surpreendentes para situações que antes nos deixavam desconcertados. Quem tende à espiritualidade começa a falar em Deus. Ele, segundo dizem, faz por nós o que não podemos fazer. Não importa se chamamos nosso auxílio de Deus ou simplesmente de Páginas Matinais – o que experimentamos é o progresso. Nossa vida começa a fluir mais tranquilamente. Passamos, assim, a contar com elas.
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– Você ainda faz as Páginas Matinais? – perguntei a um colega que lecionava comigo havia vinte anos.
– Faço sempre que estou com problemas – respondeu ele.
– Mas, se as fizesse regularmente, você não teria problemas – adverti, reconhecendo que eu soava um pouco prepotente.
Contudo, minha experiência mostrou que as Páginas Matinais realmente nos previnem das dificuldades, alertando-nos quando os problemas se aproximam. E elas não têm medo: não hesitam em abordar temas desagradáveis. Por exemplo: seu parceiro está cada vez mais distante, e nas páginas você naturalmente menciona esse fato incômodo. Impulsionado pelo que escreveu, você toma coragem de chamá-lo para uma conversa. É um risco que você decide correr. E, no fim, a intimidade entre vocês é recuperada.
As páginas nos orientam e nos ajudam a evoluir em determinados aspectos. Elas fazem o que chamo de “quiropraxia espiritual”, guiando-nos pelos caminhos que precisamos seguir. As pessoas que falam demais aprendem a manter segredo em relação ao que pensam, e as muito fechadas começam a se abrir. Sempre somos movidos para onde devemos ir. É surpreendente.
Mas não se engane: as Páginas Matinais são como amigas duronas. Se evitarmos alguma questão delicada, elas vão apontá-la.
Alcoolismo, problemas de autoestima, dependência emocional: as páginas abordarão tudo. Somos cutucados na direção certa e, se a cutucada não funcionar, somos empurrados. As páginas dão fim à procrastinação – fazemos o que temos que fazer, mesmo que seja só para as páginas se calarem.
Uma mulher no Canadá me escreveu contando que nunca teve o hábito de fazer diários, mas que ficou curiosa com as Páginas Matinais. Intrigada, ela começou a prática e em poucas semanas já estava colhendo os benefícios. Diferentemente dos diários convencionais, em que se costuma escrever sobre certos assuntos – como relacionamentos amorosos ou problemas familiares –, as páginas não têm formato preestabelecido. Elas parecem – e são – dispersas. Pulamos de um tema para outro: uma frase aqui, outra acolá. Minha leitora canadense se viu vasculhando velhas lembranças e encontrando inspiração em muitos lugares.
As páginas podem ser profundas ou triviais, e muitas vezes são as duas ao mesmo tempo. Uma “coisinha” nos incomoda e, com o avanço da escrita, essa “coisinha” se revela a ponta de um iceberg. O modo como nos sentimos diante da questão é importante. Escrevemos “acho que fiquei um pouco chateada com isso”; depois, “eu realmente fiquei muito chateada”. Ficamos íntimos de nós mesmos, camada por camada. Descobrimos nosso eu oculto, e essa percepção é apaixonante.
Como o autoconhecimento é empolgante, escrever as páginas se torna uma espécie de vício. As pessoas que começam declarando “Minha vida não tem graça” logo passam a achar essa mesma vida fascinante. “Eu não sabia que me sentia assim” é uma frase que ouço com frequência. A arte da escuta revela um caminho que nunca é monótono.
“Aprendi mais em poucas semanas de Páginas Matinais do que em anos de terapia”, relatou um leitor que pratica o método que ensino. Isso aconteceu porque as páginas lhe deram um vislumbre do que podemos chamar de “eu sem defesas”. Os junguianos dizem que, ao despertar pela manhã, temos uma janela de 45 minutos até as defesas de nosso ego se erguerem. Se nos pegarmos com a guarda baixa, diremos a verdade, e a verdade pode diferir bastante da versão dos fatos narrados pelo nosso ego. Quando escutamos – e registramos – nossos reais sentimentos, nos habituamos com a verdade. Furamos o balão do “me sinto bem com isso” para revelar que podemos não nos sentir nada bem com isso. Quando descobrimos nossos sentimentos autênticos, descobrimos nosso eu autêntico, o que é “Eu me apaixonei por mim!” é uma exclamação comum de quem faz as páginas. Sim, elas nos ensinam a nos amar. A partir do momento em que aceitamos todos os pensamentos que nos chegam, descobrimos a autoaceitação radical. Ao escutar um pensamento atrás do outro, passamos a prever com entusiasmo exatamente o que pretendemos. Cada novo pensamento revela outra camada do nosso eu. E, aos poucos, descobrimos nossa capacidade de amar.
Como não rejeitamos nenhum pensamento, entendemos que todas as partes de nós são bem-vindas. Essa atitude receptiva é o fundamento da arte da escuta. Uma palavra de cada vez, um pensamento de cada vez, aceitamos nossas ideias e percepções. Nenhum pensamento é rejeitado ou considerado sem valor. “Estou de mau humor” tem a mesma importância de “eu me sinto ótimo”. Os pensamentos leves e pesados são igualmente válidos. Somos abertos a todos os estados de espírito.
A arte da escuta exige prática. “Ouvimos” os pensamentos, mas a voz interior é sutil. A princípio, é tentador descartar o que ouvimos, dizendo que é “mera imaginação”. Mas a voz é real, como nossa conexão com o divino. E assim continuamos a escutar, passando a confiar em nossa orientação interna. As Páginas Matinais se tornam um recurso confiável. O que a princípio parecia improvável se mostra confiável com o tempo.
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Escrever as Páginas Matinais é como dirigir com o farol alto: “vemos” além de nós mesmos e com mais clareza do que com nossa visão normal de farol baixo. Os eventuais obstáculos se destacam à nossa frente, e assim passamos a evitar problemas. A prática também nos ensina a identificar oportunidades. Nossa “sorte” aumenta quando captamos os sinais que as páginas nos enviam.
“Nunca acreditei em percepção extrassensorial”, afirmou um leitor. “Mas agora acho que alguma coisa mágica está acontecendo. As páginas são sobrenaturais!” Esse jeito “sobrenatural” se revela muitas vezes como sincronicidade. Escrevemos sobre algo e esse algo aparece em nossa vida. Nossos desejos se tornam tangíveis. “Peça, acredite, receba” se torna uma ferramenta de trabalho da nossa consciência. Quando escrevemos as Páginas Matinais, passamos a ser cada vez mais sinceros. Expomos nossos desejos verdadeiros, e o Universo responde.
“Eu não acreditava em sincronicidade”, alguém me escreveu. “Agora conto com ela.”
Eu também.
Escrevi em minhas páginas que queria muito fazer um filme. Dois dias depois, num jantar, sentei-me ao lado de um cineasta, que por acaso também dava aulas de cinema. Eu contei meu sonho, e ele disse: “Ainda tem uma vaga na turma. Se quiser, é sua.” Eu quis. Minhas páginas seguintes registraram minha gratidão.
Embora as páginas possam tratar de todo e qualquer assunto, a gratidão encontra um terreno fértil nelas. Enumerar nossas bênçãos abre espaço para mais gratidão. Quando dizemos “Não tenho nada para escrever”, podemos virar a lente para o lado positivo e enxergar nossas bênçãos, das grandes às pequenas. Um alcoólico em recuperação pode escrever “Obrigado pela sobriedade”. Uma pessoa em boa forma pode agradecer a saúde. Todas as vidas têm base para a gratidão. O caminho da escuta enumera uma miríade de causas para o coração agradecido. Concentrar-se no positivo gera otimismo, um fruto primário da arte da escuta.
A passagem deliberada do negativo para o positivo pode ser feita sempre que nos vemos sem “nada a dizer”. Todo mundo tem algo a agradecer, mesmo que seja elementar. “Sou grato por estar vivo. Sou grato por respirar.” Fundamentalmente, cada vida é um milagre, e, ao admitir esse fato, celebramos a vida em si.
“Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus”, aconselham as Escrituras. Quando praticamos a escuta, sentimos algo que toca nossa consciência com uma sensação de pertencimento. Com as páginas como testemunhas, não estamos mais sozinhos: em vez disso nos tornamos parceiros de um Universo interativo. Recentemente tentei pôr esse fato em palavras: “A resposta às minhas orações é um Deus que escuta e sabe que estou aqui.” Não é soberba evocar um “Deus que escuta”. Escrever as Páginas Matinais é uma prática espiritual. Enquanto escrevemos, ajustamos nossa visão de mundo; ele deixa de parecer hostil e passa a ser benévolo. Enquanto escutamos, somos guiados – bem e cuidadosamente guiados.
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Escrever as Páginas Matinais logo se transforma em hábito. Alguns cientistas dizem que formar um novo hábito leva noventa dias. Mas nos habituamos às Páginas Matinais em bem menos tempo. Como professora, observei que duas ou três semanas são o ponto de virada. É um pequeno investimento de tempo para uma grande recompensa. O hábito de escrever as páginas nos coloca em um caminho espiritual. Esse caminho – o caminho da escuta – tanto nos guia quanto nos guarda.
Meu colega Mark Bryan compara a prática das páginas com o lançamento de um foguete: começamos a escrever e a mudança que vemos parece pequena – um desvio de alguns graus da nossa vida normal. Com o tempo, esses poucos graus serão a diferença entre pousar em Vênus ou em Marte. A pequena mudança de nossa trajetória se agiganta.
Recentemente, numa tarde de autógrafos, um homem se aproximou da minha mesa e disse: “Quero lhe agradecer por um quarto de século de Páginas Matinais. Em todo esse tempo, só perdi um dia… o dia em que fiz uma cirurgia cardíaca.”
Às vezes sinto falta das páginas nos dias em que viajo cedo. Quando chego a meu destino, faço “páginas noturnas”, mas não são a mesma coisa. Se escrevo à noite, reflito sobre um dia que já vivi e que não tenho o poder de mudar. As Páginas Matinais traçam a trajetória do dia que terei pela frente, já as “páginas noturnas” registram a jornada do dia como sucesso ou fracasso. Olhando para trás, vejo os muitos “pontos de escolha” do dia – momentos em que eu poderia ter feito uma escolha melhor.
As Páginas Matinais são frugais. Fazem o melhor e mais produtivo uso do dia que começa. “As páginas me dão tempo”, ouvi de uma mulher. “Parece que subtraem tempo, mas na verdade somam.” Conheço esse paradoxo. Escrevo durante 45 minutos pela manhã, mas aí, ao longo do dia, aproveito muitos momentos livres, porque meu tempo de acordo com minhas prioridades. O tempo se torna meu tempo.
Quando escrevemos as páginas, vivemos o dia com mais eficiência. Eliminamos as “pausas mentais para o cigarro” – aqueles longos intervalos em que ponderamos o que fazer em seguida. Com as páginas, conseguimos nos mover tranquilamente de uma atividade a outra. “Eu poderia fazer X”, pensamos, deixando de procrastinar. Então fazemos “X”, e assim nos apropriamos do tempo, usando-o para nosso próprio bem.
Costumo dizer que as páginas são uma abstinência radical da codependência. Passamos o tempo segundo nossa pauta, não mais seguindo a de outras pessoas. Muitas vezes nos espantamos ao descobrir quanto tempo e atenção gastamos para agradar os outros. Quando trazemos a energia de volta à nossa essência, ficamos chocados com o poder que descobrimos e que podemos usar para fazer o que quisermos. Muitos de nós passamos a vida carregando a bateria alheia. Trabalhamos para realizar seus sonhos negligenciando os nossos. De repente, com as páginas em ação, nossos sonhos passam a estar a nosso alcance. À medida que damos os pequenos passos que as páginas nos indicam, nossos desejos se tornam realidade.
“Julia, durante anos desejei escrever, mas não escrevia. Aí comecei a fazer as Páginas Matinais. E eis meu romance. Espero que goste”, disse uma mulher, me entregando seu livro.
Para mim, ensinar é como visitar um jardim. Ganho livros, vídeos, CDs, joias que as pessoas produzem. Elas usam minhas ferramentas e as sementes de sua criatividade germinam.
“Dirigi um longa-metragem”, me disse um ator, exultante. “Devo isso às Páginas Matinais.” Fiquei feliz por ele, reconhecendo a realização de um sonho.
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Com as Páginas Matinais, ousamos escutar – e articular – nossos sonhos. Dizemos o que antes seria indizível. O ator de sucesso sonha em ser diretor; o redator de publicidade anseia por escrever um romance. O que antes parecia grandioso, de repente se torna factível. Somos incentivados a ousar e, depois de ousar, a ousar ainda mais e mais. Estamos nos “reestruturando”. Antes tínhamos medo de dar “um passo maior do que as pernas”, agora nos expandimos.
Nas palavras de Nelson Mandela, percebemos que o que temíamos era a nossa real dimensão – que é maior, e não menor, do que imaginávamos.
Começamos a ver que o céu é o limite e que esse céu é grande, iluminado e extenso, e não nublado e sombrio. “Gostaria de poder” se transforma em “acho que posso”. Conforme mudamos de tamanho, podemos nos confrontar com a resistência de pessoas próximas, acostumadas com nosso tamanho menor. Com o tempo elas se adaptarão. O bom é que as páginas são contagiantes. É possível que, ao ver as mudanças que as páginas produzem em nós, aqueles à nossa volta as adotem também.
Um professor de teatro competente explicou à turma que o segredo de uma boa atuação é a escuta. E as páginas nos treinam a ouvir. “Aquilo que vocês procuram é ser um canal”, diz ele, desenhando um arco no ar e traçando o caminho da escuta. “A energia se move através de nós.”
Como praticantes das Páginas Matinais, treinamos a arte criativa da atenção. Ficamos atentos às deixas do próximo pensamento. “Ouvimos” as palavras que querem passar através de nós e sentimos como se fôssemos um canal, um bambu oco que deixa a energia fluir.
Dylan Thomas escreveu sobre “a força que do pavio verde inflama a flor”. Ele falava da energia criativa, a mesma que sentimos quando escrevemos nossas Páginas Matinais. Com nosso ouvido interno preparado para “receber”, captamos mensagens sutis. Ao colocá-las no papel, registramos um caminho psíquico. Somos levados a transcrever o que precisamos saber e fazer. Aprendemos a não ceder ao nosso censor interno, dizendo-lhe apenas “Obrigado pela opinião”, e seguindo em frente.
Esse truque de fugir do censor é uma habilidade útil. Ao produzirmos qualquer forma de arte, nosso censor interno começa a nos criticar. Mas aprendemos a simplesmente agradecer sua opinião e, assim, enfraquecemos o nosso juiz perfeccionista. As páginas nos treinam a confiar em nosso impulso criativo e a ir adiante, escrevendo palavra atrás de palavra. Aprendemos a confiar que cada uma delas é perfeita, ou ao menos boa o suficiente. Nosso perfeccionista interno protesta em vão. Nós passamos a ouvir sua voz como um gritinho fraco, quando antes o ouvíamos como a voz retumbante da verdade. Nosso perfeccionista interno se torna um mero incômodo, não mais um tirano. A cada página bem-sucedida, miniaturizamos sua voz. Embora não eliminemos inteiramente o perfeccionismo, reduzimos drasticamente seu poder.
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Quando dou aulas, faço um exercício sobre perfeccionismo. “Escrevam os números de um a dez”, digo aos alunos. “Agora, na frente de cada número, terminem as frases que eu vou começar. Prontos? Vamos lá. Número um: Algo que eu tentaria fazer, se não precisasse executar com perfeição, seria… Dois: Algo que eu tentaria fazer, se não precisasse executar com perfeição, seria… Três: Algo que eu tentaria fazer, se não precisasse executar com perfeição, seria… Quatro: Algo que eu tentaria fazer, se não precisasse executar com perfeição, seria… Continuem até dez.”
Depois de citar dez impulsos e desejos que o perfeccionismo bloqueou, os alunos se veem pensando: “Eu acho que poderia tentar…” Pela primeira vez, enxergam o perfeccionismo como o bicho-papão que é. Ao escutar e listar seus sonhos, eles dão mais um passo para tentar experimentá-los.
As páginas nos desafiam à expansão. Escutamos o desejo do coração e a voz que diz “Talvez eu possa tentar”. Desmantelamos nosso condicionamento negativo, que sussurra: “Não, eu nunca conseguiria.” Mas conseguiríamos, sim.
Podemos fazer muito mais do que nosso medo nos faz acreditar. O medo vem disfarçado de perfeccionismo. Temos medo de parecer tolos e recuamos, dizendo a nós mesmos que somos sensatos por evitar o risco. A verdade é que não há nada sensato em recuar. Nós nos privamos da alegria da criação, negamos nossa necessidade humana de criar. Nossos sonhos e desejos foram feitos para serem realizados. Quando recuamos, frustramos nossa verdadeira natureza. Nascemos para ser criativos, para dar atenção à voz que diz “Você consegue, basta tentar”.
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O caminho da escuta exige atenção, pois muitas vezes nossos sonhos são sussurrados. Quando escutamos esse murmúrio, nossa audição fica mais aguçada. Nossas páginas diárias nos ensinam a arte da atenção. Quando escutamos cada pensamento que se desenrola, passamos a confiar em nossa própria percepção. Cada palavra marca um ponto da consciência. Analisadas em conjunto, as palavras são os lembretes de nossa alma. Quando ficamos atentos a seu desenrolar, prestamos atenção à narrativa de nossa vida. Longe de serem incolores, nossas histórias são ricas e multicoloridas. Quando damos importância a nossos sonhos, mais sonhos se apresentam para nós. Ao examinar nossa vida, descobrimos que ela vale a pena.
As Páginas Matinais abrem uma porta. Onde antes era terra incognita, agora é uma vida conhecida. Nossos sentimentos passam de misteriosos a evidentes. Sabemos o que sentimos e por que nos sentimos assim. Há um lugar para nós no grande esquema das coisas.
A arte da escuta nos diz o que precisamos saber. Os eventos não nos surpreendem mais. Com nossa intuição em alerta, é comum pressentirmos as coisas que estão por vir. Os amigos observarão nossa capacidade aparentemente misteriosa de cair de pé. Para nós não há mistério, é apenas o resultado de nossas Páginas Matinais. Passamos a confiar nas páginas como um tipo de sistema de alerta precoce. Captamos dicas sutis de mal-estar. Com o tempo essas dicas se aproximam da percepção extrassensorial. Passamos a confiar nelas. Prestamos atenção em nossas “sensações esquisitas” e as levamos a sério.
Quando nos abrimos para a arte da escuta, desenvolvemos a fé de que estamos seguros. Passamos a confiar que existe algo maior que quer nosso bem, e esse “algo” fala conosco através das páginas. Nossa intuição se mostra um guia confiável. Nossos palpites são inspirados.
“Faça isso”, “Tente aquilo”, sugerem nossas páginas, e, quando agimos com base em suas sugestões, descobrimos que sua orientação dá certo. Instados a ir em novas direções, constatamos que os novos territórios explorados são compensadores. Por exemplo, as páginas me levaram a tentar compor. “Você escreverá canções lindas”, me disseram.
“Mas não entendo nada de música”, protestei. Até tentar compor e me ver realmente escrevendo belas canções. Agora, quando dou aulas, faço meus alunos cantarem algumas dessas músicas. Eles gostam delas, e amo ouvi-las serem cantadas. A turma é pega de surpresa quando lhes digo que fui eu que compus. É um talento meu que eles desconheciam – e eu também, até que as páginas revelaram.
Começamos a fazer nossas páginas pensando que conhecemos nossos talentos. Acreditamos que somos talentosos até aqui e nada mais. Por exemplo, achamos que nosso dom é de determinado tamanho. Mas aí as páginas causam seu efeito sobre nós e descobrimos que, criativamente, somos maiores do que pensávamos. Achei que a música estava além do meu alcance, mas notei que tinha talento musical. Do mesmo modo, um não escritor pode descobrir sua aptidão para escrever, ou um não pintor pode descobrir que tem jeito para pintar. Nossos dons são numerosos e muitas vezes insuspeitos. “Mas, Julia, como é que não conhecemos nossos próprios talentos?”, me perguntam às vezes. Em resposta, cito meu próprio exemplo. Fui criada como a “não musical” de uma família muito musical. Nas histórias da família, eu era a escritora desafinada. Quando as páginas me sugeriram compor, pensei que estavam malucas. Mas me permiti tentar.
A mitologia familiar é poderosa, tanto que, quando contei a meu irmão músico que eu estava trabalhando com um compositor e toquei algumas canções para ele ouvir, ele comentou: “Esse cara é bom.” Mas, quando revelei que a compositora era eu, meu irmão disse: “A última música até que era legal.”
Conto essa história para demonstrar a força do condicionamento familiar. Meu querido irmão simplesmente não conseguiu acreditar que eu tivesse talento musical. Eu mesma tive dificuldade de acreditar. Agora, com três musicais e duas coletâneas de canções infantis em meu repertório, ainda tropeço na frase “sou compositora”, embora as páginas tenham certeza de meu talento.