Introdução
Nenhuma relação econômica de dominação se constitui sem a elaboração de uma trama simbólica de ideias e valores que a legitimam e justificam. Nosso objetivo aqui é reconstruir a origem dessas ideias e valores na relação entre Brasil e Estados Unidos e analisar como foram utilizados para interromper, mais uma vez, o processo democrático de soberania brasileira nos anos recentes.
Embora o vínculo nacional seja uma dimensão importante, não se trata aqui de oposição entre nações, mas sim da condução pela elite americana de um processo imperialista de dominação mundial, inclusive sobre o seu próprio povo. Nesse sentido, tudo que aconteceu no planeta desde o começo do século XX teve a influência decisiva americana – seja para o bem, seja para o mal. Isso é verdade em todas as dimensões da vida: econômica, política, social e cultural. Este livro reconstrói as precondições históricas que possibilitaram esse desenvolvimento e investiga as causas profundas desse fato.
Como são sempre as ideias (e os valores morais a elas ligados) que interpretam, arregimentam e direcionam os interesses e as paixões individuais e coletivas, será nelas, em primeiro lugar, que concentraremos nosso interesse.
As “ideias americanas”, que servirão como justificação do império informal americano, irão se mostrar como “superação” de todo racismo e preconceito, quando, na realidade, constroem um racismo ainda mais sofisticado. Uma adaptação quase perfeita para um tipo de imperialismo baseado na influência econômica e cultural indireta, que substitui com vantagens a dominação militar direta, custosa e violenta.
A elite americana irá testar no próprio país, contra suas próprias classes populares e trabalhadoras, todas as ideias e estratégias de domínio cultural e político que utiliza para garantir a longevidade de seu domínio econômico. Nesse sentido, conhecer a história da produção do consentimento social nos Estados Unidos é compreender também as várias etapas do processo global de dominação. Isso é especialmente verdade para o caso brasileiro: um país cuja “identidade nacional” foi construída em referência direta aos vizinhos norte- -americanos e cuja dinâmica econômica, política e social interna irá se construir sob a influência americana.
Este livro completa e se une ao esforço que empreendi, em livros anteriores, para compreender de modo alternativo e crítico tanto a história quanto a dinâmica da sociedade brasileira. Ele representa, por assim dizer, a consideração de sua dinâmica externa mais importante da nossa sociedade, que se soma aos estudos tanto teóricos quanto empíricos da dinâmica interna – reconstruída a partir das classes sociais e de suas relações à sombra da influência continuada da escravidão como o dado principal.
O sucesso de A elite do atraso se deu, em grande medida, por ser uma leitura totalizante da história e da sociedade brasileiras que considera a escravidão sua influência principal até os dias atuais. O que muda nessa interpretação é que a escravidão, que não existia em Portugal, ganha o status de fator principal que determina todos os outros. Em vez de perceber a formação brasileira como uma herança cultural portuguesa que se alonga em personalismo, patrimonialismo, cordialidade, “jeitinho brasileiro” e outros tantos, como imagina o pensamento hegemônico até hoje, a institucionalização do escravismo passa a ser percebida como a origem fundamental de toda a vida material e simbólica brasileira. Precisamente por nunca ter sido criticada adequadamente, essa herança continua a existir sob formas e máscaras modernas. Duas décadas de estudos empíricos com todas as classes sociais me permitiram perceber as manifestações atuais desse fenômeno na sociedade brasileira.
O que é decisivo em uma explicação é, afinal, a hierarquia entre as ideias. Ninguém nunca negou a existência da escravidão. Mas esse dado jamais foi posto como a explicação fundamental de toda a vida econômica, política e social brasileira em todas as suas manifestações principais. O que é fundamental aqui, vale lembrar, não é a mera reconstrução histórica do escravismo, por mais importante que esta seja para o trabalho sociológico. O mais significativo é perceber como tanto a relação entre as classes sociais quanto a justificação simbólica da dominação social como um todo implicam uma continuidade da escravidão, mesmo com o advento do trabalho livre e do sufrágio universal. Rapidamente apropriado por escolas de samba, artistas, políticos importantes e por boa parte da sociedade brasileira mais crítica, hoje esse ponto de vista já não é mais individual. Tornou-se coletivo. E é bom que seja dessa forma. Só assim ele será capaz de produzir frutos sociais duradouros.
Neste livro, essa ideia é radicalizada. O estudo empírico da classe média que realizei em A classe média no espelho e a reflexão sobre a assombrosa ascensão política do bolsonarismo me fizeram compreender melhor o notável papel do racismo “racial” como o interdito, o assunto proibido, e a verdade reprimida mais importante da sociedade brasileira. Tendo estudado empiricamente todas as classes sociais no Brasil nos últimos vinte anos,1 percebi com clareza como esse racismo “racial” recobre perfeitamente as relações de classe entre nós.
Como falar de racismo foi interditado – em parte pelo sucesso da celebração do “brasileiro mestiço” por Gilberto Freyre na cultura e por Getúlio Vargas na política –, a questão racial foi substituída pelo falso moralismo do suposto combate à corrupção no Brasil. O que fez brasileiros privilegiados da classe média branca saírem às ruas aos milhões contra Lula e Dilma, sabemos hoje, não teve jamais qualquer coisa a ver com “corrupção”. Se assim fosse, muito mais gente branca e bem-vestida teria saído às ruas para protestar contra Aécio e Temer, apontados em evidências explícitas de corrupção e alusão a assassinatos. Como não se pode falar de racismo, seu perfeito substituto é o falso moralismo canalha do combate seletivo à suposta corrupção, voltado apenas contra quem ousa incluir negros e pobres na sociedade brasileira. É, portanto, o ódio à classe dos excluídos e marginalizados, quase todos negros e mestiços, a pedra de toque que explica a vida política arcaica e odiosa do Brasil.
Isso torna ainda mais próxima nossa relação orgânica com os Estados Unidos – um país cuja vida social e política é igualmente determinada pelo racismo “racial”, como veremos a seguir. Como as relações de dominação entre as classes sociais são baseadas na reprodução de privilégios de nascimento e permanecem literalmente invisíveis para a grande maioria das pessoas, é, em grande medida, a linguagem do racismo “racial” que possibilita sua compreensão e lhe confere concretude. A principal diferença é que nos Estados Unidos o racismo usa seu próprio nome, enquanto no Brasil ele se manifesta, quase sempre, por “interposta pessoa”, no falso moralismo do combate seletivo à corrupção que cimenta a solidariedade que existe entre as classes do privilégio no país.
No bolsonarismo, são as ideias e as práticas da extrema direita americana abertamente racista que se tornam operantes no Brasil. Nesse contexto, o racismo brasileiro passa por uma transformação. Em vez de consolidar a união das classes altas contra os pobres, como no passado, ele serve agora de combustível para a “guerra entre os pobres” que o bolsonarismo institui. Como representante político máximo das milícias organizadas, um tipo de organização criminosa que vive da exploração do medo dos mais pobres, essa guerra é, para Bolsonaro, politicamente funcional. Mas foi a extrema direita americana que lhe forneceu as ideias, as práticas, as estratégias – e, com toda a probabilidade, também o dinheiro – para o assalto ao poder de Estado no Brasil.
Este livro analisa desde as precondições históricas e simbólicas mais amplas e gerais até o momento presente, quando se insinua o instante mais perigoso da história brasileira. Hoje o poderio americano se une ao crime organizado para destruir a sociedade e o Estado brasileiros de modo consciente e voluntário, como parte de um projeto de poder mundial planejado nos ínfimos detalhes. Boa parte do que será dito aqui, sobretudo na parte final, que trata da influência da extrema direita americana na vitória eleitoral de Bolsonaro, poderá parecer a alguns “teoria da conspiração”. A mesma crítica me foi dirigida quando da publicação de A elite do atraso. A Vaza Jato de Glenn Greenwald, no entanto, comprovou a trama que havíamos reconstruído no livro.
Sem dúvida existem conspirações falsas, que podem ser criticadas com bons argumentos. Mas é óbvio que os interesses econômicos e políticos fundamentais se unem, ou seja, “conspiram” para se reproduzir ao longo do tempo. O que não existe é o acaso, que nega o fundamento mais primordial do entendimento humano, que é a relação de causalidade, ou seja, a realidade insofismável de que os fatos dispersos que observamos são encadeados a outros que permitem explicá-los e compreendê-los. Abdicar de perceber esse encadeamento factual é abdicar de compreender o mundo e, portanto, aceitar ser feito de tolo pelos que mandam nele.
Esta é uma leitura para quem acredita que os fatos do mundo não são obra do acaso, como quer nos fazer crer uma imprensa que isola os fatos e fragmenta a realidade para torná-la incompreensível. Afinal, quem tem interesse em que o mundo seja percebido como um acaso, como algo fortuito e sem direção, é precisamente quem o controla com mão de ferro. Este mundo tem donos que efetivamente conspiram, todos os dias, para reproduzir seus poderes e privilégios e explorar os que são feitos de tolos. Geralmente, os “tolos” são os que acreditam no acaso e na coincidência. O que comprova a causalidade entre os fatos sociais são as consequências práticas observáveis das ações de indivíduos e coletividades. Esse é o nosso material de estudo neste livro.