Introdução
“Se você expressar o que habita em você, isso irá salvá-lo. Mas se você não expressar o que habita em você, isso irá destruí-lo.”
Jesus – Evangelho de São Tomé
Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém além da anfitriã. Pela recepção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados em saber quem sou. Aproximam-se. Fico meio tímida nessas ocasiões e tenho dificuldade para começar a conversar. Mais uns instantes e a roda se amplia; a conversa flui. Cada um diz quem é e o que faz da vida. Observo gestos e olhares. Um instinto misteriosamente provocador brota em mim. Sorrio. Por fim, alguém pergunta:
– E você? Trabalha com o quê?
– Sou médica.
– Mesmo? Que máximo! Qual é a sua especialidade?
Segundos de dúvida. O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra, e a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com minha experiência, recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre um familiar que parece “esclerosado”. Dessa vez, porém, quero responder algo diferente. Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer, e que me realiza muito. Não quero fugir. Essa decisão interna me traz uma inquietude e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um silêncio profundo. Falar de morte em uma festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo a distância percebo olhares e pensamentos. Posso escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, buscando o buraco onde gostariam de se esconder. Outras continuam me olhando com aquela expressão de “Oi?”, esperando que eu rapidamente conserte a frase e explique que não me expressei bem.
Já havia algum tempo eu tinha vontade de fazer isso, mas me faltava coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário. Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu me consolava e perguntava a mim mesma: “Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por esse caminho. Será que vai ser hoje?”
Então, em meio ao silêncio constrangedor, alguém toma coragem, se esconde atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Nossa! Deve ser bem difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo se dispersou. Um se afastou para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi buscar um drinque e não voltou mais. Uma terceira pessoa saiu para ir ao banheiro, outra simplesmente pediu licença e se foi. Deve ter sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa natural e transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário. Assumi minha versão “cuido de pessoas que morrem” e, à revelia de quase todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte está ganhando espaço na vida. A prova disso? Estou escrevendo este livro, e há quem acredite que muita gente vai ler.
Quem sou eu
“Eu tive uma namorada que via errado.
O que ela via não era uma garça na beira
do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas.
Dizia que seu avesso era mais visível do
que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça
me contou uma vez que tinha encontros diários com suas contradições.”
Manoel de Barros
Eu vejo as coisas de um jeito que a maioria não se permite ver. Mas tenho aproveitado várias oportunidades de capturar a atenção de pessoas interessadas em mudar de posição, de ponto de vista. Algumas apenas podem mudar, outras precisam; o que nos une é o querer. Desejar ver a vida de outra forma, seguir outro caminho, pois a vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é um excelente motivo para buscar um novo olhar para a vida.
Por meio deste livro, você e eu começamos uma convivência na qual espero compartilhar parte do tanto que tenho aprendido, a cada dia, com meu trabalho como médica e também como ser humano que cuida de seres humanos, intensamente humanos. De cara, preciso já dizer que saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida de quem amamos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com nosso tempo, nosso movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.
Quase todo mundo pensa que a norma é fugir da realidade da morte. Mas a verdade é que a morte é uma ponte para a vida. Despratique as normas.
Por que eu faço o que faço
“Queres ser médico, meu filho?
Essa é a aspiração de uma alma generosa,
De um espírito ávido de ciência.
Tens pensado bem no que há de ser
tua vida?”
Esculápio
Enquanto escrevo este livro, provavelmente já passei da metade da minha vida aqui nesta Terra, e venho há mais de duas décadas praticando medicina. Muitas escolhas profissionais podem levar a questionamentos, e a medicina está entre os mistérios. Por que a medicina? Por que escolhi ser médica? Uma das razões mais mencionadas pelos que seguem esse caminho é a existência de médicos na família, alguém que admiram, mas não, não há nenhum na minha. No entanto, sempre houve doença e sofrimento, desde que eu era muito pequena.
Minha avó, a quem atribuo o primeiro passo em direção a essa escolha profissional, tinha doença arterial periférica e se submeteu a duas amputações. Perdeu as pernas por causa de úlceras mortalmente dolorosas e gangrena. Expressava suas dores com gritos e lágrimas. Suplicava a Deus piedade, pedindo que a levasse. Apesar de toda a limitação que a doença lhe causou, ela me educou e cuidou de mim.
Nos piores dias, recebia a visita de um médico, o Dr. Aranha, cirurgião vascular. Lembro-me dele como uma visão quase sobrenatural, angelical. Um homem grande, de cabelos grisalhos penteados para trás cuidadosamente com Gumex, um poderoso fixador. Ele cheirava bem. Era muito alto (não sei se era alto de fato ou se assim me parecia por eu ter apenas 5 anos) e se vestia sempre de branco. Camisa engomada, cinto de couro gasto, mas com a fivela sempre brilhando. Suas mãos grandes e muito vermelhas carregavam sempre uma maleta preta pequenina. Eu acompanhava com os olhos os movimentos daquelas mãos e desejava ver tudo o que se passava no quarto de minha avó. Mas sempre me mandavam embora. Mesmo assim, vez por outra esqueciam a porta entreaberta, e eu assistia a toda a consulta pela fresta. Ela contava a ele sobre as dores, sobre as feridas. Ela chorava. Ele a consolava e segurava suas mãos. Cabia todo o sofrimento dela dentro daquelas mãos enormes. Em seguida, ele abria os curativos e explicava os novos cuidados para minha mãe. Deixava a receita, passava a mão na minha cabeça e sorria.
– O que você vai ser quando crescer?
– Médica.