Introdução
ACHO QUE PASSEI DO LIMITE
Esta manhã, levantei da cama assim que meu celular tocou no criado-mudo. Verifiquei as notificações e fui me preparar para começar o dia. Durante o café, li todos os tweets da noite anterior, respondi mensagens do meu Stories com corações, cliquei em alguns links de notícias e capturei um monstrinho no meu Pokémon Go. Terminei meu omelete e joguei uma partida de buraco on-line. Ganhei. Me animei para tomar mais uma xícara de café e fazer um Sudoku. Pretendo chegar, em breve, ao nível avançado.
Vi a previsão do tempo no aplicativo, escolhi a roupa que iria usar durante o dia e me vesti para a academia. No caminho, fui respondendo aos vários grupos de WhatsApp de trabalho. Assim que cheguei, fui para as bicicletas ergométricas, que deixam as mãos livres para responder mensagens.
Ao pegar a ficha de exercícios na gaveta dos alunos, percebi que minha série, como os Pokémons, havia evoluído: de três repetições com carga fixa para quatro repetições com aumento progressivo de carga. A primeira coisa que pensei foi que o treino seria mais demorado. A segunda foi que eu teria mais intervalos para dar uma checada no smartphone.
Logo no primeiro descanso, um instrutor me viu em pé ocupada com a tela do telefone e perguntou, elegantemente, se estava tudo bem, se eu precisava de alguma coisa. Estava tudo bem, e sim, eu precisava de alguma coisa, no caso, ajuda para focar no treino e deixar o celular de lado. Botei o dito na bolsinha e continuei. Fui para o aparelho de braço, mas tive que esperar enquanto uma moça usava o equipamento como cenário para tirar uma selfie. Aproveitei aqueles segundos para checar o Twitter mais um pouco. Minha filha, que treina comigo, passou e brincou dizendo que eu estava jogando em vez de me exercitar. Fiquei tão envergonhada que deletei o vídeo que ia postar no Stories. Três mensagens de WhatsApp pularam na tela, duas delas de “Bom dia!”.
Em minha defesa, fiz a série inteira, mas com que qualidade? Será que o benefício não teria sido maior se eu tivesse aumentado a concentração e diminuído a distração? Será que num dia de 24 horas eu não posso reservar uma hora para a academia sem ficar postando, lendo ou jogando de minuto em minuto no celular? Será que eu esqueci que fui diagnosticada com osteoporose e, mais do que querer, preciso fazer musculação na academia? Em que momento a distração passou a ser mais importante do que a saúde?
Considerando que a academia é cara e que sou eu que pago, não é meio besta gastar dinheiro e não usar o serviço direito? E por que eu levo o celular para a academia, para começo de conversa? Vou cedo, antes do horário comercial, qualquer comunicação de trabalho pode esperar. Não existe necessidade, é vontade, capricho. É hábito.
Voltei da academia andando, pensando e tentando não interagir com a tela no caminho, até porque usar o celular na rua é perigoso: um levantamento feito em 2016 mostrou que roubos de celulares acontecem em metade das ruas de São Paulo. Foi difícil, porque ouvi uns quatro ou seis bips de notificações. Provavelmente o Facebook, o Messenger e meu e-mail.
Cheguei ao meu prédio e, enquanto subia pelo elevador (ainda bem que o 4G pega!), abri as notícias e vi que, na Índia, um homem foi morto por um elefante ao tentar tirar uma selfie com ele. A história é chocante. Ele viu o elefante comendo na beira da estrada, desceu do carro e começou a provocar o animal para fazer uma selfie. Havia muita gente olhando a cena – inclusive gravando vídeo com o celular mostrando o homem provocando o bicho, o elefante se aproximando do homem – mas ninguém fez nada. O elefante, provavelmente assustado, atacou e matou o homem. Um horror, uma tristeza.
Ao clicar no vídeo – que não recomendo a ninguém assistir –, a palavra que veio à minha cabeça foi “limite”. Os anúncios de venda de pacotes de dados para celular vivem oferecendo “internet ilimitada”, e talvez isso nos tenha levado a achar que podemos mesmo usá-los sem restrições. Mas a verdade é que se a internet e o celular podem ser maravilhosamente ilimitados, nós não. Nós precisamos de limites. Limite de velocidade para não dirigir como loucos e matar pessoas no trânsito; limite de ingestão de alimentos para não comer demais e sobrecarregar os órgãos do corpo; limite financeiro para não gastar mais do que temos; limite verbal para não ofender o outro. Limite de ousadia, de loucura, de tudo. Limites não são necessariamente ruins ou fruto de censura e autoritarismo. Limites podem impedir que crianças se tornem monstrinhos despóticos e que adultos se comportem de maneira abusiva. Limites são regras, leis, que as sociedades definem para que todos possam conviver com o máximo de justiça, liberdade e igualdade.
Limite é o que eu preciso para usar esta dádiva da criação humana chamada celular. Quero usá-lo sempre, mas com sabedoria, a meu favor. Quero impedir que o uso excessivo desse aparelho abençoado me cause outros problemas além dessa dor no pescoço que venho sentindo desde 2007.
Enquanto o celular e a tecnologia como um todo nos trouxerem coisas boas, devemos usar tudo o que pudermos. O que não podemos, o que não devemos, o que não queremos é transformar o uso em abuso. Porque nosso corpo e nossa vida também têm limites. Eis aí um ensinamento que eu poderia ter aprendido logo cedo, se tivesse prestado atenção na carga da remada supinada na polia baixa em vez de capturar um Pikachu de touquinha.
Tem alguma coisa fora da ordem na minha, na sua, na nossa relação com o celular e, ao que tudo indica, a culpa não é do elefante.
Não há culpados, na verdade, porque não é uma questão de culpa. O que há é um novo comportamento mundial em relação ao celular e que ainda é recente em termos históricos e, por isso mesmo, precisa ser discutido e estudado.
Estamos todos nos adaptando a esse pequeno aparelho móvel que gerou mudanças permanentes para a humanidade. Não é exagero. A combinação do celular com a internet alterou totalmente nossas vidas. Não existe um único aspecto, seja em termos de segurança, comunicação, entretenimento, educação, cidadania, só para citar alguns, que não tenha sido afetado por esse combo.
O celular é tão útil, entretém tanto, é tão presente e cheio de possibilidades cada vez mais ricas que a vida sem ele se tornou inconcebível. Inclusive de forma retroativa, pois não conseguimos compreender como um dia pudemos viver sem ele.
O processo de mudança foi gradativo. Primeiro, incorporamos o celular como uma extensão de nossas mãos. Depois, passamos a dedicar mais tempo do nosso olhar para sua tela. Em seguida mergulhamos de cabeça nas redes sociais e, como uma Alice no País das Maravilhas, finalmente “caímos para dentro” dele.
Agora estamos todos morando nos nossos celulares. Vivemos boa parte de nossos dias nessa outra dimensão, que, mesmo não atendendo a todos os nossos sentidos, costuma ser muito mais divertida e segura do que a realidade ao nosso redor.
É gostoso morar no celular e saber da vida dos outros que ali estão. É bem parecida com a vida do lado de fora, só que com mais emoção. Se você não gostar de algo ou alguém, é só excluir, bloquear, não clicar, deixar de seguir, esconder. Dá vontade de passar o dia todo na janelinha papeando com os infinitos vizinhos que passam pelas nossas linhas do tempo e vendo a vida das pessoas em seus perfis.
O problema é que nosso tempo é finito. Os dias só têm 24 horas e a vida, com sorte e saúde, dez décadas. E, como o tempo que passamos no celular – seja jogando, conversando, vendo fotos e vídeos ou só dando um rolê, mas sempre com olhos presos na tela – é cada vez maior, o tempo que sobra para interagir no mundo 3D diminui cada vez mais.
Claro, não há nenhum problema em usar o celular diariamente, em não desligá-lo, em consultá-lo frequentemente, em amá-lo ou em morar dentro dele. O celular é mesmo uma invenção genial e não vou abrir mão dele. Mas quero fazer uma D.R.
Estamos vivendo uma era de questionar e problematizar tudo, o que é ótimo. Com tantas informações novas, tantas mudanças, faz sentido a gente se perguntar, o tempo todo, se as regras que valiam antes ainda valem, se nossas escolhas ainda fazem sentido ou precisam de revisão, se estamos vivendo nossas vidas ou se estamos nos deixando levar sem perceber.
Minha intenção ao escrever este livro foi questionar nossa relação com o celular, o tempo que estamos dedicando a ele, o quanto dessa dedicação é consciente ou não. Será que temos ideia de quantas horas por dia passamos diante de sua tela iluminada? Quantas interações realizamos todos os dias? Somos nós que estamos no controle, ou o celular, as notificações, as outras pessoas que nos solicitam é que têm o controle sobre nós?
No processo para responder a essas e tantas outras perguntas, aprendi muito, lendo livros, artigos, posts, conversando com pessoas, trocando mensagens e ideias. Descobri coisas deliciosas, surpreendentes, assustadoras, inclusive sobre mim mesma. Ao me colocar como objeto de estudo, percebi que, só de instalar um aplicativo que monitora o tempo de uso do celular, meu comportamento já se alterou. Como se o app fosse minha mãe me vigiando e, a cada interação, dizendo: “Menina! Larga esse telefone e vai fazer a lição!” Porque, em muitas ocasiões, eu realmente tinha “lição” para fazer e me perdia em distrações no labirinto hiperbólico dos links e likes.
É imprescindível, no ambiente da internet, ser dona da própria vida e ter consciência de que o que estamos fazendo é uma escolha nossa. Porque tudo o que você vai encontrar no seu celular, em todos os aplicativos, redes e sites, foi projetado para prender você o máximo de tempo, produzindo o máximo de dados, para expor o máximo de publicidade, para que você consuma o máximo possível. Esse é o jogo. O tempo todo. “Ah, mas eu não gasto dinheiro no celular, só uso coisas grátis!” Então, não tem “grátis” na internet. Como diz o velho ditado de marketing: “Não existe almoço grátis; se o almoço for grátis, o almoço é você.”
O objetivo deste livro não é demonizar o celular, nem “almoçar” o leitor. Assim como você e mais 5 bilhões de humanos, eu também estou morando no meu celular. Mas, exatamente por passar tanto tempo da minha vida nesse “lugar”, quero saber exatamente quem são as pessoas com as quais convivo, a confiabilidade das coisas que consumo, a credibilidade das informações que acesso e, principalmente, se tem pessoas dentro da minha própria casa me mantendo em cárcere privado. Por melhor que seja essa “casa”, eu quero ter uma vida fora dela também. Quero poder entrar e sair do celular sem sofrer, sem pedir permissão, sem medo de estar perdendo alguma coisa.
Vou continuar a usar meu smartphone sempre que tiver vontade, necessidade, curiosidade, mas com consciência de que a decisão é minha, e não de algum algoritmo que explora as vulnerabilidades do meu cérebro.
Quero ser feliz também nesse lugar, meu celular, doce lar.