Prefácio
“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando
o odor dos excrementos que mescla com o barro podre.
Quando estou na cidade tenho a impressão que
estou na sala de visita com seus lustres de cristais,
seus tapetes de viludos, almofadas de sitim.
E quando estou na favela tenho a impressão que sou um
objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.” 1
Neste livro defendo a tese de que o racismo racial é o elemento central da sociedade brasileira moderna e o grande responsável pelo atraso moral, social e político do Brasil. No entanto, não é fácil demonstrar e verdadeiramente explicar como esse fenômeno acontece. Sempre haverá alguém que dirá: “Mas isso eu sempre soube!” Só que, na verdade, quem diz isso tem uma mera intuição, uma crença, a qual não consegue demonstrar. Isso ocorre porque o racismo racial muitas vezes – se não na maioria delas – assume outras formas para poder continuar existindo.
Os que acham que essa convicção basta esquecem que o racismo racial pode ser exercido das mais variadas maneiras, disfarçado, por exemplo, de “moralismo anticorrupção” ou de “guerra contra o crime” – e serão a vida inteira feitos de tolos pelas máscaras que ele assume para continuar bem vivo fingindo que está morto. A história do Brasil moderno é a história dessas máscaras.
Para superar a dimensão da mera “convicção”, afetiva e desinformada, é necessário reconstruir não somente o que o racismo destrói nas pessoas, mas também todas as múltiplas formas que ele assume. Sem isso, não compreenderemos como ele adota esses disfarces para continuar enganando as pessoas. Além disso, é fundamental explicar que, se o racismo racial pode assumir outras máscaras, então existem, obviamente, manifestações não raciais do racismo, que produzem o mesmo efeito destruidor e deletério nas pessoas.
Por conta disso, temos que compreender o que é o racismo em sua dimensão mais genérica, o que ele destrói nas pessoas e, em seguida, aprender a identificá-lo em todas as suas roupagens. É esse trajeto que faremos neste livro. Minha ambição é verdadeiramente explicar o racismo, tanto o racial quanto o multidimensional. Isso significa reconstruir sua gênese histórica e demonstrar sua dinâmica e sua função social na manutenção da opressão e da humilhação de indivíduos e grupos sociais.
Minha tese é a de que até hoje, tanto no Brasil quanto fora dele, as tentativas de explicar o racismo se reduziram, no entanto, a meramente comprovar que ele existe. Porém as estatísticas já fazem isso ao mostrar o tratamento desigual legado aos negros em todas as dimensões da vida e demonstrar a existência do privilégio branco. É preciso ir além da mera comprovação de que ele existe. É necessário compreender sua gênese histórica e seu papel nas relações sociais. É porque o racismo é um grande mistério que existe todo tipo de confusão em relação a ele, como a invenção de um “lugar de fala” autorizado e a pretensão de “representar” outros sem a devida procuração das vítimas, já convenientemente silenciadas. Neste livro enfrentaremos todos esses mitos e fantasmas.
A única maneira de verdadeiramente explicar o racismo é compreendermos o que ele destrói nas pessoas. Por essa razão é tão gritante a necessidade de reconstruir as precondições, historicamente construídas, afetivas e morais, para que a individualidade de cada um possa ser exercida com confiança e autoestima de forma a merecer o respeito dos outros. É isso, afinal, que o racismo destrói. Só assim poderemos reconhecer o racismo como o meio de opressão e humilhação social em grande escala que ele é.
Depois examinaremos todas as formas multidimensionais do racismo para poder compreender de que maneira, em uma sociedade como a brasileira, o racismo racial assume o comando da vida social a partir da construção de uma “ralé de novos escravos”. Uma classe/ raça composta em sua esmagadora maioria por negros, destinada a ser a “Geni” da sociedade brasileira, que todos podem oprimir, explorar, humilhar, cuspir e matar sem que ninguém realmente se comova. Uma classe/raça construída para que todas as outras possam se sentir superiores a ela, ajudando a justificar e legitimar uma sociedade que é desigual e perversa como um todo.
O que me faz acreditar ter avançado na compreensão dessa questão central da sociedade brasileira não é, seguramente, o fato de ser mestiço, ou “mulato”, como se dizia antes do politicamente correto, e me declarar pardo nos censos oficiais – o que me torna participante da maioria da população brasileira que se declara afrodescendente. Veremos quanto de mentira e de manipulação existe na crença de que o oprimido conhece melhor do que ninguém a opressão que sofre. Acreditar nessa tolice é não compreender absolutamente nada sobre. Acreditar nessa tolice é não compreender absolutamente nada sobre como funcionam as formas de humilhação e opressão na sociedade – e, portanto, contribuir para a sua continuidade. Todos esses temas serão discutidos em profundidade neste livro.
O que me faz acreditar ter avançado na explicação do racismo, além da mera comprovação de sua existência, foram, antes de tudo, os últimos 25 anos de estudo empírico ininterrupto dos diversos segmentos da sociedade brasileira2 e de outras sociedades.3 Esse esforço e essa dedicação me fizeram aprimorar o que aprendi em mais de 40 anos de estudo teórico sistemático de grandes pensadores4 e me ajudaram a compreender melhor tanto as causas sociais de todo aprendizado coletivo, ou seja, aquele que a sociedade como um todo realiza, quanto o funcionamento da opressão e da humilhação que impedem, por outro lado, esse mesmo aprendizado e, portanto, o real progresso social. Boa parte do trajeto intelectual que percorri ao longo da minha atuação como estudioso e pesquisador está neste livro de forma resumida e acessível, espero eu, a qualquer leitor interessado em aprender. Acredito que mesmo as ideias de pensadores complexos podem ser expostas de modo a que todos possam compreendê-las. Apenas a pretensão pedante de alguns falsos intelectuais acredita que a linguagem hermética e incompreensível é sinal de erudição e conhecimento. Tudo pode e deve ser exposto de tal modo que qualquer pessoa possa entender.
Finalmente, gostaria de agradecer a Boaventura de Souza Santos, que me fez críticas extremamente relevantes que ajudaram a melhorar este livro. Agradeço também à minha mulher, Joyce Anselmo, uma brilhante socióloga que também leu e criticou produtivamente várias versões do livro. Por fim, agradeço a Boike Rehbein, meu parceiro de muitos anos em pesquisas empíricas no mundo todo, por sua crítica sempre sincera e estimulante.
Berlim, 31 de março de 2021