Introdução
Em 14 de outubro de 1943, um ano e quatro meses antes de morrer, Mário de Andrade escreveu a um amigo, mas pensando na posteridade: “Imagino que, numa possível biografia minha, o biógrafo teria que botar: o ano de 1943 não existiu.” Reclamava da inatividade causada por uma persistente dor de cabeça. Não acatei a sua sugestão. Aquele ano foi bem produtivo e a frase hiperbólica era mais um dos paradoxos de alguém que sempre foi um enigma para muitos que o conheceram e para si próprio.
Ousado e tímido. Recatado e escandaloso. Confessional e comedido. Modesto e vaidoso. Apolíneo e dionisíaco. Singular e plural. Tantos contrastes num espírito criativo e dotado de imensa curiosidade intelectual tornaram Mário de Andrade um caso único na cultura brasileira. Autodidata com visão multidimensional, consciente de seu papel histórico, esteve no centro dos principais debates num dos períodos mais agitados do país, com polêmicas ardentes, grandes transformações urbanas, crescimento industrial, evolução da imprensa, crises e rupturas políticas. E, ao contrário da maioria dos companheiros de jornada, sempre manteve coerência de ideias e atitudes.
Embora paulistano da gema, abominava bairrismos e dedicou a maior parte de sua vida tentando decifrar a intricada alma brasileira. Nessa missão, desdobrou-se em poeta, romancista, contista, cronista, crítico de arte, musicólogo, folclorista, fotógrafo, professor, colecionador de arte, epistológrafo, jornalista, bibliófilo, ícone da vanguarda modernista e diretor do primeiro órgão cultural no Brasil.
Sob a sua liderança informal nossas artes começaram a se livrar do espartilho e da cartola, nas primeiras décadas do século XX. Dezenas de pintores e escritores consagrados o tiveram como mentor e/ou incentivador. Muita gente passou a conhecer e entender bumba-meu-boi, maracatu, samba de roda, repente, cordel e outras criações populares a partir dos textos dele. Seu principal personagem literário virou adjetivo – macunaímico. Com verdadeira obsessão pelas coisas brasileiras, fez longas viagens a Minas Gerais, Amazônia e Nordeste, além de ter morado dois anos e meio no Rio de Janeiro.
Muitos dos problemas, indagações e reflexões que ele discutiu continuam presentes no Brasil de hoje. Seus desbravamentos na cultura popular são cultivados por vários discípulos e projetos de sua iniciativa frutificaram e são parte importante de seu legado – a Biblioteca Municipal de São Paulo, a Sociedade de Etnografia e Folclore, o Coral Paulistano, a Discoteca Pública, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, cuja semente ele plantou.
Mário de Andrade era, portanto, um oceano. Tão infinito que se tornou, pela minha estimativa, o segundo escritor brasileiro mais estudado, após Machado de Assis. Centenas de livros, artigos, ensaios, teses, dissertações e monografias têm sido escritos discutindo os mais diferentes aspectos de sua obra, e ainda há muitos a serem desvendados. Daí porque me abstive aqui de comentar seus escritos, exceto o mínimo pertinente à narrativa.
Alguns livros sobre a sua obra (e as suas cartas) contêm informações biográficas, mas sucintas e fragmentadas. Já o biógrafo, no sentido lato, reconstrói a vida individual, do nascimento à morte, abarcando as dimensões pública e privada – ou seja, os ângulos profissional, afetivo, emocional, comportamental e familiar, com base em documentação, análise e discernimento diante das informações. Esse gênero de escrita exige técnica narrativa e metodologia bem específicas, e disposição para gastar sola de sapato.
E foi com esse espírito que me dispus a reconstruir a vida completa de Mário de Andrade. Embasado em fontes primárias novas, conferindo e reconferindo documentos escritos, orais, iconográficos e audiovisuais, consultando a vasta bibliografia existente, confrontando versões, descobri muitas informações inéditas que preenchem lacunas importantes e corrigem reiterados equívocos sobre o escritor e a história do Modernismo. Também apresento pela primeira vez detalhes sobre a sua família, a militância religiosa na juventude, a participação na guerra civil de 1932, além de uma releitura da gênese da Semana de Arte Moderna e aspectos do cotidiano dos modernistas brasileiros em Paris, um tema que mereceria um livro à parte.
Meu interesse por essa multifacetada personalidade começou quando eu fazia mestrado em Literatura Brasileira na Universidade de Brasília, na década de 1990. Mas o trabalho efetivo de redação só teve início a partir de 2010. Uma aventura tão fascinante quanto desafiante. Foi necessário penetrar nas ações e reações individuais e coletivas envolvendo Mário de Andrade, bem como na conjuntura social, cultural, política e religiosa, sem perder de vista os seus companheiros, todos figurinhas carimbadas.
Espero ter assim trazido alguma contribuição para um melhor entendimento de um dos capítulos mais fascinantes de nossa história cultural no século XX.
Durante as etapas deste livro, contei com a generosidade e a competência de diversas pessoas e instituições que me concederam colaboração e assistência imprescindíveis, às quais agradeço imensamente: Arquivo Público do Estado de São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo), Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (CPDOC e Arquivo Capanema), Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Fundação Casa de Rui Barbosa, Anne Pinheiro, Benedito José de Santana, Bianca Dettino, Edson Rosalini, Elaine Pelegrini, Fábio de Sousa Coutinho, Flávia Camargo Toni, Florestan Fernandes Júnior, Gabriela Giacomini, Gonzalo Pastor Castro Barreda, Jair Mongelli Jr., José Miguel Wisnik, Kathia Ferreira, Márcia Camargos, Marcos Antonio de Moraes, Maria Isabel Barrozo de Almeida, Mauro Pinheiro, Olympio Barbanti, Paula Sacchetta, Reynaldo Santos Neves, Ruthe de Andrade Moraes, Ruy Castro, Sílvia Maria G. Bezerra Lima, Telê Ancona Lopez (maior estudiosa de Mário de Andrade no Brasil e que me apoiou com palavras e livros desde o início), Vladimir Sacchetta, Wilson Figueiredo, e agradecimentos especiais ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (Elisabete Marin Ribas e sua eficiente equipe no Serviço de Arquivo) e, infelizmente póstumos, ao professor Antonio Candido de Mello e Souza, por sua paciência e disposição de ler o texto e me atender várias vezes para esclarecimentos e informações.
J. T.