Prefácio
Tem algo diferente no jeito como a Daiana se veste.
Calma. Antes que você pense “Lá vem mais um marido querendo que a esposa se esconda”, já digo que é exatamente o contrário. Eu acho que ela se esconde demais. Sempre achei.
Ela usa um sutiã que aperta os seios e deixa seu tórax praticamente chapado. Usa roupas muito largas no corpo. Não é todo marido que olha para a esposa e diz: “Tira isso aí, é muito pano! Vamos valorizar mais!”
Não, ela não precisa se esconder. Quem assiste ao canal dela no YouTube vê que ela é perfeita, uma obra de arte. Eu também vi tudo isso de longe, num Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, quando ela apareceu na minha vida pela primeira vez. Olhei para a Daiana com a mesma expressão assombrada que reconheço no rosto das pessoas assim que ela entra em algum lugar: os olhos arregalados, a boca entreaberta. A beleza dela choca. Naquele GP de F1 que Daiana estava cobrindo para o jornal SPTV e eu para o Globo Esporte, ela não me viu. Ah, mas eu a vi!
Quatro anos depois, nos casamos.
Desde o começo, saquei que tinha alguma coisa diferente com ela. Toda mulher reclama do corpo em algum momento, mas comecei a achar a preocupação dela desproporcional. Com frequência, ela “brigava com
a imagem”, como a gente diz no jornalismo esportivo. É tipo quando o comentarista insiste que não foi pênalti, mesmo com o atacante sangrando, urrando por conta de uma fratura exposta. A Dai brigava muito com a imagem: o reflexo era lindo, mas ela enxergava outra coisa.
Isto se chama “distorção da imagem corporal”. Mas a briga com o espelho vai muito além disso. Para se curar, o caminho é bem longo e punitivo, passando por vários pontos importantes: a autoestima, a vergonha, a família, o marido, a comida, o trabalho, o espelho, a terapia, o remédio… Ela resolveu trilhar esse caminho, inclusive pedindo demissão para se dedicar exclusivamente a estudar, pesquisar e falar sobre como as mulheres podem fazer as pazes com o corpo.
E foi com o primeiro vídeo que fez para o YouTube, alguns dias depois de se demitir, que Daiana descobriu que não estava sozinha. Mais que isso: que as pessoas que assistem ao canal dela, assim como você que está com este livro nas mãos, é que são, na verdade, o padrão. A insatisfação com o corpo é muito, muito comum. E, especialmente no caso das mulheres, é incentivada pelo mercado, pela mídia e até pelas próprias mulheres.
Daiana resolveu falar sobre isso. A cada vídeo, postagem nas redes sociais e resposta aos milhares de e-mails que recebe e que em geral começam com “Pelo amor de Deus, não fala meu nome no canal”, Daiana foi reunindo pessoas e construindo uma comunidade. Uma comunidade que chegou para combater, por exemplo, as blogueiras fakeness (essas que não passariam em nenhum exame antidoping) e para questionar a desnutrição quase subsaariana das modelos de campanhas de moda.
E aí você pensa: “Uau, que legal, Daiana está curada e vai me ensinar a me curar!” Não. Minha esposa vai oferecer algo muito melhor. Ela vai contar a verdade. Se deu errado, ela vai falar. Se foi uma merda, ela vai falar. Aqui não é o Instagram perfeitinho “Puxa, sou muito feliz e estou lacrando”. Aqui não tem hormônio do crescimento nem hashtagzinha, nem milk-shake de whey. Aqui não tem fotinha com o endocrinologista. Isso tudo é uma puta babaquice. Aqui neste livro você terá algo muito melhor, porque é verdadeiro. Seria isso um spoiler?! Pode ser. Quer outro? Daiana não está totalmente curada. Há dias ótimos, dias bons, dias ruins e dias horrorosos. O que mudou foi a proporção: os bons e os ótimos, hoje, são maioria. E, como minha esposa é honesta, ela vai deixar claro que não existe milagre nem fórmula de farmácia de manipulação que cure esse problema abordado no livro. E ela também não é uma revoltadinha que fica fazendo textão e protesto.
Não é nada disso.
A Daiana está aqui para, com transparência, apresentar a realidade. Abrir os arquivos mais íntimos e mostrar que somos todos humanos. Há coisas que ela conta aqui que nem eu sabia. Há também muita coisa que ela aprendeu com alguns dos melhores especialistas do país, profissionais de várias áreas da saúde física e mental. Fora as dezenas de livros que devorou nesses últimos meses!
E existe o caminho, como eu estava falando. Daiana vai contar como ele é e por que vale muito a pena. Será que existe uma parada final? Não sabemos. Será que o caminho é tão longo que somente nossos filhos e netos vão poder desfrutar de um mundo livre da pressão pelo corpo perfeito? Talvez. Mas, para isso, alguém tem que caminhar, e Daiana resolveu fazer isso. Por ela e por todos. Nas páginas a seguir ela vai começar do começo, voltar aos traumas de infância e, depois, por mais doloroso que seja, vai refazer o caminho inteirinho até os dias de hoje, mas agora com a sua companhia. Que bom que ela não está sozinha desta vez.
Tiago Leifert
INTRODUÇÃO
Por mais de 20 anos, vivi uma guerra interna.
Eu odiava meu corpo. Odiava minhas curvas, meu quadril largo, minha estrutura grande. Nunca gostei de ser chamada de mulherão – algo que muita gente consideraria um elogio. Para mim, era quase um xingamento. Eu era pesada demais, gorda demais, inadequada demais. Pelo menos era o que eu pensava.
Comecei a travar batalhas diárias contra mim mesma muito cedo. Colocar uma roupa para sair de casa era um suplício. Eu praticamente só me vestia de preto e sempre com blusas de manga, de preferência longa. Nunca saía com os braços de fora pois tinha vergonha de como eles eram grossos. Em alguns dias eu nem conseguia sair para trabalhar, com medo de que as pessoas rissem de mim, de como eu era imensa e esquisita.
Foram raras as vezes em que me olhei no espelho sem roupa e fiquei feliz com o que vi. Não gosto de tirar fotos e guardo pouquíssimas em que minha imagem não me desagrada por completo. Em geral, são aquelas em que meu corpo não aparece. Também não gosto de me ver em vídeos, mesmo tendo trabalhado por muito tempo como repórter na TV. Nunca gostei de assistir às matérias que fazia, mas tive que aprender a tolerar e a conviver com isso.
É horrível não se sentir bem na própria pele. É péssimo não se sentir confortável no corpo que você habita. E isso não tem nada a ver com vaidade. É uma vergonha extrema, uma sensação de total estranhamento em relação ao meu corpo. Como se ele não me pertencesse.
No entanto, sempre achei meu rosto bonito. Gosto do meu cabelo, dos meus olhos, adoro me ver maquiada. Infelizmente, a visão que eu tinha do meu corpo sempre foi bem diferente. Tenho tanto pavor de engordar que desenvolvi uma relação doentia com a comida. A hora das refeições era uma tortura: eu queria devorar tudo o que estava na mesa, até mesmo o que havia no prato dos outros; por outro lado, não queria comer para não engordar. A comida acabou se tornando minha maior paixão e minha pior inimiga. Se eu comia, me sentia um fracasso. Se não comia, a vontade aumentava ainda mais. Não havia meio-termo, ou eu comia incontrolavelmente ou passava dias à base de maçã e água.
Datas como Natal e Ano-Novo eram terríveis. Um mês antes, eu já ficava desesperada só de pensar que teria que encarar aquelas mesas lindas e cheias de pratos deliciosos, temendo não ser capaz de me segurar. Ir a algum restaurante em que houvesse bufê para se servir à vontade era a morte para mim. Só de imaginar a possibilidade de comer livremente, eu entrava em pânico. Comigo não existia essa coisa de “Não estou com vontade hoje”. Nunca! Eu não tinha fundo. Eu não tinha limites.
Além de tudo, eu me punia por sofrer assim. Pensava: Como posso ser tão egoísta de sofrer por uma mesa cheia de comida enquanto milhares de pessoas no mundo estão passando fome? Então eu chorava por sofrer por comer. Chorava por me sentir uma pessoa má.
Eu queria ser magra, seca. Sonhava em ver meus ossos aparecendo sob a pele. Sabe aquele corpo que parece que vai quebrar de tão esquelético? É assim que eu queria ser – e essa obsessão me perseguiu por mais de 20 anos.
Para conseguir ser magra, já fiz tudo o que você pode imaginar. Tomei todos os tipos de remédios para perder peso e controlar o apetite: anfetaminas, tarja preta, fórmulas e medicamentos fitoterápicos e até remédios para diabetes. Tomei laxantes, diuréticos, calmantes, ansiolíticos, estimulantes, soníferos e também aquele medicamento que tira 30% da gordura dos alimentos, mas que, ao menor descuido, faz você sujar as calças sem perceber. Fiz todas as dietas que existem – da proteína, da lua, do abacaxi, dos dias ímpares, do jejum. Já fiquei dois anos sem comer carboidratos. Tentei vomitar depois das refeições, mas não consegui. Desejei ter anorexia, mas não resistia muitos dias sem comer. Fiz diversos tratamentos estéticos e confesso que já fiz três cirurgias de lipoaspiração – e ainda precisei pegar empréstimo bancário para pagar esses procedimentos, ficando endividada até as orelhas por muitos anos.
Você deve estar pensando que passei por tudo isso porque era obesa. Na verdade, não. Tenho 1,70 metro e meu peso variou, nos últimos vinte anos, entre 57 e 72 quilos, o que corresponde a IMCs (Índice de Massa Corporal) entre 19,7 e 24,5. Ou seja, tudo dentro da faixa considerada normal pela Organização Mundial da Saúde. Em termos médicos, nunca estive nem com sobrepeso.
Hoje sei que nunca fui gorda de fato. Mas saber e sentir são coisas totalmente diferentes. Mesmo ciente de que estava dentro da faixa de peso saudável, eu não era capaz de sentir isso. Só pensava em ser cada vez mais magra.
Aliás, não conseguia conversar com ninguém sobre esse assunto, quanto mais entender o que estava acontecendo comigo. Eu carregava um enorme fardo que era invisível para os outros. Por muitos anos, me esforcei para fingir que esse problema não existia, por medo do que as pessoas iriam pensar de mim. Eu imaginava que diriam: “Ah, que patricinha! Como ela pode dizer que não gosta do corpo dela?! Como pode dizer que é infeliz? Essa menina é louca! Ela não é gorda!” Muitas vezes eu mesma me julguei e acreditei que realmente fosse uma menininha mimada que não tinha outra coisa com que se preocupar. No início, achei que fosse coisa de adolescente, que iria passar. Mas não passou.
Demorou muito até eu perceber que o problema de peso que atrapalhava minha vida não estava no meu corpo – estava na minha cabeça. Mas eu só soube disso quando tive coragem de procurar ajuda médica. E foi então que finalmente descobri que o que eu tenho não é maluquice, não é frescura, não é vaidade. É uma doença.
Sofro de transtorno alimentar não especificado, que é uma das manifestações do transtorno alimentar. Nesse quadro, a pessoa apresenta um comportamento desequilibrado em relação à comida, gerando prejuízos reais para a saúde e causando um sofrimento profundo. No entanto, ele é “não especificado” porque não se encaixa em todos os critérios de nenhum transtorno específico. Por exemplo, eu tinha comportamentos típicos de uma anoréxica, mas nunca cheguei a ficar muitos dias sem comer nem tive perda de peso acentuada. Também costumava usar métodos purgatórios (como o uso frequente de laxantes), mas não apresentava todas as características do quadro de bulimia.
Um dos meus sintomas – o que mais me fazia sofrer – era a distorção da imagem corporal, que fazia com que eu enxergasse meu corpo de uma maneira totalmente diferente de como os outros me veem.
Eu queria muito me ver como as pessoas me viam. Mas isso não acontecia. E parte da minha angústia tinha a ver com o fato de que ninguém parecia entender o tamanho do meu sofrimento. Muitas pessoas nem sequer acreditavam que eu tinha uma doença de verdade.
Então me dei conta de que era hora de dar um basta. Estava exausta de me odiar, de não me aceitar. Não aguentava mais tratar meu corpo como se fosse meu inimigo. Decidi priorizar minha saúde, cuidar do meu corpo, da minha mente e da minha alma.
Depois de pensar bastante, ler muito, analisar, ponderar, fazer contas e planos, resolvi transformar por completo minha vida. Em abril de 2016, iniciei uma nova fase. Pedi demissão do emprego e criei um canal no YouTube, chamado EuVejo, para falar abertamente sobre o meu problema e dividir com as pessoas as minhas dúvidas e descobertas. A ideia era entrevistar nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e especialistas em transtornos alimentares com o objetivo de chamar atenção para um assunto sobre o qual ninguém parecia querer falar.
A essa altura eu já sabia que não estava sozinha, que muita gente sofria em silêncio, oprimida pela vergonha e pelo medo do julgamento alheio. Desde que o canal foi criado, já recebi milhares de mensagens de pessoas me confidenciando suas maiores angústias e me agradecendo por ter dado voz à sua dor. Espalhei alguns desses depoimentos ao longo do livro para mostrar que nosso sofrimento é real, é legítimo e mais intenso do que a maioria das pessoas é capaz de imaginar. Os nomes dos personagens são fictícios, mas as histórias são dolorosamente verdadeiras.
Precisamos fazer uma revolução interior. Precisamos mudar. Não podemos mais permitir que a mídia, as redes sociais e a indústria da moda destruam nossa autoestima ditando um padrão de beleza impossível de ser alcançado pela maioria das pessoas. Somos mais de 7 bilhões no planeta e ninguém é igual a ninguém. Como pode haver um “padrão de beleza”? Ser bonito é ser feliz do jeito que você é. É viver em paz com o seu corpo do jeito que ele está. É respeitar-se independentemente do número que aparece na balança.
Escrevi este livro para dividir com você como os acontecimentos que deram origem aos meus problemas foram se sobrepondo até culminarem em uma situação insustentável, e como, a partir daí, comecei a aprender a respeitar meu corpo e a fazer as pazes com a comida e com a saúde. Vou mostrar tudo o que fiz para conseguir gostar do que eu enxergo no espelho, para desenvolver a autocompaixão, o amor-próprio, para ter prazer de comer sem culpa, sem excessos e sem restrições, e para, sobretudo, parar de me julgar e me aceitar como sou, com todos os meus defeitos e qualidades.
Descobri que é possível, sim, ser feliz exatamente como se é. Não vou dizer que é fácil, não vou prometer nada. Não existe receita nem fórmula mágica. É um caminho difícil, mas que vale a pena ser trilhado.
Como fiquei perdida muito tempo nesse labirinto, espero que minha experiência ilumine seu trajeto e ajude você a encontrar a saída. Porque tem saída, acredite.