JOÃO
No dia em que o conheci, levado que fui à sua casa por George Legman, um grande amigo que temos em comum, João parecia inquieto, ansioso. Era como se ele esperasse adentrar à sua porta o editor que traria a fórmula mágica que o faria escrever o livro que, enfim, chegaria ao grande público. O homem que, com sua arte, foi ovacionado nos mais disputados teatros e palcos do mundo e levou a música clássica aos povoados mais remotos do interior do Brasil parecia ter dado lugar ao menino inseguro de outrora.
(O piano no centro da sala.)
De minha parte, esforçava-me para não demonstrar qualquer sinal de insegurança, muito embora tivesse as pernas bambas. Tinha diante de mim o homem-vulcão, o maior intérprete de Johann Sebastian Bach, o maestro que memoriza cada partitura das obras mais complexas, pois que já não podia contar com seus dedos. Tinha diante de mim, portanto, o pianista brasileiro que, aos 20 anos, estreou no Carnegie Hall, o sonho maior de todo grande artista.
(O piano no centro da sala.)
Sentia-me preparado para a conversa, mas estava atônito. Para além do que já conhecia da trajetória do pianista e maestro, havia feito a lição de casa: reli sua biografia, assisti a várias de suas entrevistas, ouvi alguns de seus concertos. “E a ideia, Pascoal, e a ideia?” – era o que martelava a minha cabeça. Até encontrá-lo não me havia ocorrido nenhuma ideia mirabolante, nenhuma fórmula mágica, mas uma pergunta se sobrepunha a tudo: “Quem é o cidadão João Carlos Martins?”
(O piano no centro da sala.)
Passamos quase três horas a conversar. João falou-nos apaixonadamente da vida, de sua vida, da música, de suas mãos e seus dedos, dos seus grandes amigos, de seus pais, de seus amores, de suas dores lancinantes, de seu perfeccionismo, de seus erros, de sua alegria de viver, de Deus, de tudo. Tudo parecia tão claro, tão absolutamente claro: João acabara de “escrever”, naquelas três inesquecíveis horas, a sinopse do que viria a ser este JOÃO: De A a Z.
(O piano no centro da sala parecia tocar sozinho.)
Saí daquele encontro com a nítida sensação de que João sempre soube exatamente qual o livro que desejava escrever. Era como se minha presença lhe tivesse servido para reencontrar a segurança e a certeza de que aquele era mesmo o único caminho. O livro seria um grande – e profundo – passeio pelo universo afetivo do homem João Carlos Martins.
(O piano seguia tocando sozinho, em mim.)
Com a preciosa ajuda do jornalista Vicente Vilardaga, outro grande amigo que se somou ao projeto, João passou quase um ano a escrever esta obra tão especial. Ao longo daquele período, Vilardaga foi os dedos que o maestro já não podia utilizar para escrever nem tocar nem reger. E foi além, pois ajudou-nos a estruturar este dicionário da alma de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos.
Do Amor ao Zênite, eis aqui, leitor, o livro do João!
(O piano…)
Pascoal Soto
INTRODUÇÃO
Aos 79 anos, não gostaria de ensinar ninguém, mas mostrar o que a vida me ensinou e aproveitar para dividir emoções, pois só sabe multiplicar aquele que aprende a dividir.
Os últimos tempos têm sido desafiadores e estimulantes, pois a pior coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano, e a melhor coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano.
Sobraram dois polegares, mas garanto que são dois polegares atrevidos. Sobraram também os olhos, os braços e o corpo para desenvolver a atividade de maestro do meu jeito, sempre procurando transmitir emoção através da música. Em outras palavras, vão-se as mãos, mas ficam os braços, o coração, os olhos, o cérebro, a fé.
Além disso, conto sempre com a ajuda providencial da ciência. Uma solução médica pode surgir a qualquer momento no horizonte. Há um mundo digital para explorar. A neurociência se une à informática e se expande a cada dia. A minha carreira terá desdobramentos digitais que ainda desconheço. Não me faltam alternativas para driblar meus infortúnios. Se quiser ser mais convencional, e como me despedi do piano definitivamente nos concertos, posso com os dois polegares e um quarteto tocar a linha melódica de uma peça de quando em quando para mim mesmo, pois jamais abandonarei o meu velho companheiro.
Muitas águas ainda vão rolar. Faço isso sem qualquer ansiedade. Sou inquieto, muito ativo, mas tranquilo. Há 16 anos o piano vem se tornando secundário na minha vida profissional. A função de maestro virou a dominante. Descobri que a regência me sacia musicalmente e realiza a minha necessidade de palco. Se houvesse um índice de satisfação com o trabalho, o meu seria 10. Dá gosto ver o desenvolvimento da Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP, que iniciei em 2004, quando comecei na regência. Dois anos depois idealizei a Fundação Bachiana. É uma instituição sem fins lucrativos já consolidada, que só me traz alegria e mantém minha crença num futuro promissor para o Brasil.
O gráfico da minha vida tem montanhas e vales. Altas montanhas e vales profundos. Até que ponto um ser humano consegue resistir? Qual a nossa capacidade de suportar a dor? Conhecemos realmente nossas forças? Por que é importante ter uma missão, um propósito? Em que medida o trabalho define o homem? Como viver as paixões e ao mesmo tempo perseguir e admirar a moderação?
Quando olho hoje para minha história vejo claramente os acontecimentos se entrelaçando e percebo que nada é por acaso. Conforme o tempo vai passando, tudo ganha mais sentido e você consegue enxergar a linha da própria vida. Estamos num eterno aprendizado.
A necessidade e a curiosidade fazem o homem. Reinvenção é uma das palavras da minha vida, ao lado de determinação e obstinação. Não gosto do termo autoajuda, e sim da palavra compartilhamento.
Neste livro, escolhi a ordem alfabética porque posso organizá-lo a partir das ideias, e o A a Z tem o sentido de completude. Penso em me expor plenamente e fazer um relato esclarecedor e sincero. Depois de dois documentários europeus e um brasileiro, três livros, um filme e uma peça de teatro, achei que estava na hora de fazer um livro diferente, uma espécie de almanaque recheado de memórias e reflexões.
Nas páginas seguintes serão apresentados pensamentos e lembranças de um pianista incansável e de um maestro em plena atividade, um homem de 79 anos que aprendeu bastante na sua jornada. Sou um observador do meu tempo.
Desfrutei das delícias do sucesso e fui mais forte quando consegui me reerguer das dificuldades e dos fracassos. Fiquei cansado, desisti duas vezes de tocar piano, pensei até em me matar.
Acredito num Deus justo, que estabelece a medida das coisas, e acho que nada se constrói sem a ajuda Dele. Também fui influenciado pelo espiritismo e tenho um caráter ecumênico.
Apesar da minha história feliz, não quero contar vantagem. Creio que tenho muito a dizer sobre vacilos e descuidos. Cometi mais do que deveria e menos do que podia.
Procuro trazer a emoção para a música clássica ao tocá-la, regê-la e promovê-la. Claro que Bach, por si só, é suficientemente emocionante. Mas com minha interpretação tentei acrescentar novos sentimentos à sua música. Posso chamar de tropicalidade ou latinidade. Ou mesmo de energia brasileira.
O tempo passa e não perco o amor pelo ofício. Na verdade, ele só aumenta. Acho que essa é a primeira razão deste livro: ame seu ofício. Penso que todas as pessoas encontram o prumo em seu ofício, palavra que merece um capítulo à parte. Aquilo que fazemos é, no fim das contas, o que nos define. O mais importante é ter atividade e saber se transformar de acordo com as circunstâncias e necessidades. É um privilégio e uma bênção poder fazer o que se gosta durante a maior parte da existência. Conseguir viver dessa maneira é uma forma de unir trabalho e prazer. Incertezas profissionais e crises fazem parte de qualquer caminho ou carreira profissional. Para superá-las, precisamos de discernimento e força de vontade. E também de amigos e conselhos. Sem eles não vamos muito longe. Houve muitas pessoas que me ajudaram ao longo dessa jornada e estiveram ao meu lado nos momentos decisivos com contribuições concretas e providenciais, às quais agradeço profundamente. A elas dedicarei muitas linhas desta obra.
Costumo chegar aos ensaios sempre entusiasmado e com as ideias claras sobre o que pretendo fazer, já com a música que vamos ensaiar esmiuçada por completo. A busca pelo perfeccionismo, que pode ser uma qualidade ou um defeito, me acompanha na regência como me acompanhava ao piano.
O movimento de músicos jovens querendo dar o melhor de si e tornar nossa filarmônica cada vez mais relevante nacional e internacionalmente é algo que me estimula. O século XX foi o da busca do sonho; o século XXI é o da renovação. Buscamos parcerias para criar orquestras pelo Brasil afora, centenas delas, e formar milhares de jovens músicos.
Vamos de A a Z.
Meu Deus! Quantas letras!!!