O alfabeto afetivo do maestro João Carlos Martins: música, superação e reinvenção | Sextante
O alfabeto afetivo do maestro João Carlos Martins: música, superação e reinvenção
NÃO FICÇÃO

O alfabeto afetivo do maestro João Carlos Martins: música, superação e reinvenção

“João de A a Z” reconta a emocionante trajetória de João Carlos Martins. O maestro narra como conseguiu se reinventar na vida e na profissão após quase abandonar a música

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“João de A a Z” reconta a emocionante trajetória de João Carlos Martins. O maestro narra como conseguiu se reinventar na vida e na profissão após quase abandonar a música

A intimidade do maestro João Carlos Martins com a música é bonita e espantosa. Bonita porque é fruto de uma paixão que extrapola o corpo. Espantosa também, porque persiste a despeito das quedas dissonantes que ameaçam desafinar a relação. Só ameaçam. Entre ele e ela – João e música -, existe um tipo apurado de amor, orquestrado pelo tempo. É a história desse casal que sustenta grande parte das memórias registradas em “João de A a Z”. O livro se constrói a partir de um alfabeto afetivo, desfiando lembranças que apontam a reinvenção de um sujeito resistente. Isso só foi possível porque ele e ela sempre estiveram perto um do outro. Aquecidos. Juntos. Vivos. Em harmonia.

João e a música

A carreira prodigiosa de Martins foi interrompida quando, durante uma partida de futebol, ele sofreu uma queda que provocou a atrofia de três dedos, deixando-o temporariamente longe do piano. “Comecei a perder, aos poucos, os movimentos da mão direita”, lembra o maestro, hoje com 79 anos. Era 1965. Ele tinha 25 anos, já reconhecido internacionalmente, quando se submeteu à primeira cirurgia no braço.

Os lances seguintes oscilaram entre a esperança da recuperação e o desespero de novos reveses. Em 1995, num assalto ocorrido na Bulgária, Martins foi golpeado na cabeça com uma barra de ferro. A pancada foi tão violenta que os movimentos ficaram comprometidos para sempre. A partir daí a superação se tornou marca inerente de sua trajetória.  Não que tenha sido um caminho fácil. Até hoje, foram mais de 20 operações. “A pior coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano, e a melhor coisa que aconteceu em minha vida foi perder as mãos para o piano”, afirma ele, ciente da transformação pela qual passou. Este ano, após nova cirurgia, aposentou-se do instrumento, mas não da música. Dela jamais.

A história, com detalhes a mais ou a menos, já foi contada no cinema (“João, o maestro”, com Alexandre Nero no papel-título, é uma das produções sobre sua vida) e no carnaval (a Vai-Vai, de São Paulo, foi campeã quando o homenageou). Este livro, contudo, é o produto mais pessoal dessa experiência. Cada letra o leva a desenvolver um pensamento-recordação sobre si. O leitor o acompanha do Amor ao Zênite, passando pela Paixão, pelo Talento, pela Velhice. A letra M, claro, é dedicada à Música. Como poderia ser diferente? “A música é meu ofício, é dela que entendo e a ela devo tudo de bom que aconteceu na minha vida”, justifica. Mas os apontamentos sobre ela contemplam o livro todo. Há um capítulo dedicado a Bach, cuja obra emociona e contagia João Carlos Martins, que considera o compositor, “o criador mais decisivo na exploração das potencialidades da música”, sua maior influência.

A vida e a recusa da morte

Nas palavras de Martins, “João de A a Z” é definido como “uma espécie de almanaque recheado de memórias e reflexões”, na qual destaca alegrias incontáveis, mas também momentos de tristeza e descrença. Numa passagem de Querer, ele revela ter cogitado tirar a própria vida, tamanha sua insatisfação com a rotina longe do piano.“Achei que minha carreira de pianista havia terminado. Em certo momento, pensei até em me matar com uma gilete na banheira de meu apartamento em Nova York. Entrei em depressão. Extremamente rigoroso comigo mesmo, havia desistido de enfrentar meus limites. Me sentia acovardado. Meus problemas de saúde pareciam grandes demais para suportar”, relata.  O momento delicado fez também com que questionasse a existência de Deus, tensionando o fio de religiosidade tão forte desde a infância.

Ao buscar alternativas profissionais após o acidente, Martins trabalhou como empresário em diversas frentes. No esporte, foi o responsável pela volta do pugilista Éder Jofre aos ringues. “Foi quando, seguindo seu exemplo vitorioso, decidi voltar ao piano”, completa. A volta por cima viria pela música.

O maestro se esquiva do termo autoajuda para definir a obra, mas pinça uma palavra que considera mais adequada: compartilhamento. De fato, é o que faz “João de A a Z” especial. Num relato sincero e detalhado, Martins divide com o leitor a linha da sua vida, um gráfico composto por altas montanhas e vales profundos. Seu depoimento confirma como conhecer seu propósito no mundo o ajudou a se reinventar, sempre tendo a música como par. “Quando quiser realizar algo, diga a si mesmo: ‘Eu quero!’ Repita dezenas de vezes e vá à luta. Já é meio caminho andado. A conhecida frase popular ‘Querer é poder’ tem lá seu fundamento. Mas apenas querer, às vezes, pode não ser o suficiente”, aconselha.

Reflexões e aprendizados de João

– “A vida às vezes apresenta ao ser humano obstáculos aparentemente intransponíveis. Cabe a nós reagir de forma adequada. A maioria dos problemas que temos costuma ser do nosso tamanho. Devemos ser capazes de resolvê-los”.

– “Toda história produz algum ensinamento. Raramente uma paixão traz paz e felicidade. Quem proporciona esse bem-estar é o amor. O importante na vida é tentar encontrar um ponto de equilíbrio entre a paixão efêmera e o amor duradouro. A relação deve ser intensa sem ser irracional. O sentimento amoroso deve ser emocionado e buscar a harmonia”.

– “O importante na vida é tentar encontrar um ponto de equilíbrio entre a paixão efêmera e o amor duradouro. A relação deve ser intensa sem ser irracional. O sentimento amoroso deve ser emocionado e buscar a harmonia. Faz parte deste livro pensar livremente. Ele próprio é um livro de um homem apaixonado, intenso, mas que também sabe amar”.

A emoção é algo que nasce com você. Se quando criança, ao ver um filme ou ter conhecimento de um fato dramático, você chega às lágrimas, então pode ser considerado uma pessoa emotiva. No meu caso, eu tenho uma ferramenta – o piano e a regência –, e o que me move é o desejo de transmitir emoções e deixar as pessoas satisfeitas, dizendo ‘Tá aí, vivi uma experiência!’, ou ‘Que bacana!’”.

– Precisamos nos precaver enquanto somos jovens para conseguir desfrutar dos pequenos e grandes prazeres mais tarde. Procure levar uma rotina sem vícios. É uma boa fórmula para continuar vivo por mais tempo e continuar ativo, trabalhando e influenciando a sociedade ou o grupo que o cerca. Escrevo estas linhas porque a idade me trouxe consciência. Não sei se com todo mundo é assim. Nem penso em parar. Até acontece me ver mais vigoroso do que na juventude. Se as mãos se perderam, o entusiasmo diante da arte continua intacto”.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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