Prefácio
Uma operação transformadora
Por Fernando Gabeira
A Lava Jato ainda não terminou e talvez não termine tão cedo. Mas quando o jornalista Vladimir Netto colocou o ponto final neste livro, ela já era uma operação transformadora, que desvendava, com competência, o maior escândalo da história do Brasil.
Inspirada na Operação Mãos Limpas, que estremeceu a Itália nos anos 1990, a Lava Jato é um extraordinário trabalho de equipe que conseguiu sobretudo provar com fatos e documentos a inescapável realidade de que a Petrobras foi saqueada e os saqueadores levaram os recursos para fora do país.
O autor conta em detalhes a gênese da Operação Lava Jato e seus principais desdobramentos – da surpresa diante da dimensão do problema ao surgimento de seus inevitáveis tentáculos. E, passo a passo, vai desnudando a engrenagem apodrecida que ligava as empreiteiras aos partidos no poder.
Quanto aos personagens, são apresentados nas suas mais importantes intervenções. Da coquete doleira ao sóbrio juiz, todos são retratados através de seus movimentos no próprio processo. E para conhecer o protagonista desta história, o juiz Sergio Moro, a melhor maneira é analisar seu trabalho: o grande conhecimento técnico, as perguntas meticulosas, as sentenças fundamentadas e a coragem de enfrentar a pressão dos advogados mais bem pagos do país.
Foram tão contundentes os fatos apresentados pela operação que seus adversários não tiveram outro caminho exceto criticá-la na forma. Mas a própria Justiça brasileira reconheceu sua legitimidade, dando-lhe a vitória em inúmeros questionamentos.
Um dos momentos mais tensos aconteceu quando a Lava Jato levou o ex-presidente Lula para depor, baseando-se no princípio de que todos são iguais perante a lei. Até aquele momento, tinham sido feitas 116 conduções coercitivas. Ninguém protestara. No entanto, no caso de Lula, havia ainda a suposição de que era um símbolo nacional e merecia respeito. Nesse modelo de pensamento, é aceitável o princípio de que a lei vale para todos – menos para os símbolos.
Os procuradores da força-tarefa da Lava Jato não se limitaram ao trabalho áspero de desmontar uma organização criminosa que unia, num só caso, os maiores empreiteiros do país e os principais partidos da base do governo. Eles perceberam que era necessário modificar e fortalecer a lei para que o Brasil não se tornasse presa fácil dos políticos e empresários corruptos. Fizeram uma proposta para acabar com a impunidade no país, “As 10 medidas contra a corrupção”, que conseguiu mais de 2 milhões de assinaturas e virou um projeto de lei de iniciativa popular, já em tramitação no Congresso.
Uma forma de ler este livro é observar como cada movimento da Lava Jato foi determinando a agenda política no Brasil, levando o país a se concentrar na tarefa histórica de combater a corrupção. O que se ouvia com regularidade em Brasília era isto: nada será como antes e não sabemos quem ficará de pé. Os nomes de parlamentares não paravam de aparecer, com destaque para os presidentes da Câmara, Eduardo Cunha, e do Senado, Renan Calheiros.
Mesmo no front econômico, a operação encontrou resistência. O que acontecerá se as maiores empresas do país quebrarem? O que fazer com a multidão de desempregados? O problema é que, independentemente da Lava Jato, os limites da própria economia indicavam que a festa tinha acabado. A inflação, o desemprego e a crise viriam de qualquer maneira, porque são gerados pelas próprias leis do universo econômico.
Gastamos mais do que podíamos, esta é a primeira constatação. A segunda, imposta pelos fatos revelados nas investigações, é que, além de gastar a rodo, o governo montou uma imensa máquina de corrupção nas empresas estatais.
Os terremotos políticos que a operação ainda provocará, tremores isolados e tardios que abalarão as estruturas de Brasília – tudo isso pertence ao futuro. E por falar nele, a Lava Jato, como se não bastasse sua performance técnica, nos colocou em contato com a perspectiva de um país livre dos saqueadores e dos salvadores da pátria que nos jogaram no buraco.
Sua consagração aconteceu no dia 13 de março de 2016, quando milhões de pessoas foram às ruas, na maior manifestação política da história brasileira, e não se limitaram a pedir a queda do governo, mas a expressar sua indignação com a roubalheira.
Isso é um alento para quem quer ver as investigações chegarem às últimas consequências, revelando o processo de corrupção que domina a política brasileira e parte do mercado. A busca da verdade não acaba com o fim do governo.
Conhecer a Lava Jato e sua trajetória, portanto, é conhecer uma das maneiras pelas quais o Brasil pode construir um novo caminho para dificultar a corrupção e puni-la com severidade.
Prólogo
De um posto de gasolina
ao coração da República
Quinta-feira, 17 de março de 2016
Por ironia do destino, a posse do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro-chefe da Casa Civil aconteceu no dia em que a Operação Lava Jato comemorava seu segundo aniversário. Não foi uma ocasião festiva. O país, em convulsão política, assistia a manifestantes contra e a favor do governo ganharem as ruas. Um grupo exigia a renúncia da presidente Dilma Rousseff, com o “Fora Dilma, fora PT!”. Outro gritava: “Não vai ter golpe!” Em frente ao Palácio do Planalto, onde acontecia a cerimônia, eles se enfrentavam, numa ruidosa e tensa batalha de palavras de ordem e xingamentos.
Lula estava no meio do turbilhão. Nos últimos meses, o cerco da Operação Lava Jato vinha se fechando em torno dele. Alguns dias antes, em 4 de março, às seis da manhã, o ex-presidente, vestindo um abrigo de ginástica, abriu a porta do seu apartamento em São Bernardo do Campo. Eram 15 homens da Polícia Federal com um mandado de condução coercitiva para levá-lo a depor. Embaixo do prédio, uma van branca do Comando de Operações Táticas (COT), a tropa de elite da Polícia Federal, estava a postos para entrar em ação em caso de necessidade. Naquele momento ficou claro que Lula se tornara o alvo principal das investigações. Apesar das negativas do ex-presidente, havia suspeitas de que ele seria o verdadeiro proprietário de um tríplex no Guarujá e de um sítio em Atibaia, que estavam em nome de outras pessoas. O Ministério Público Federal buscava explicações para as reformas e benfeitorias feitas nesses imóveis e pagas pelas empreiteiras OAS e Odebrecht e pelo pecuarista José Carlos Bumlai, também na mira da Justiça.
O caminho que levou a Lava Jato até o líder do PT foi longo, tortuoso e cheio de fatos inesperados. O primeiro ato da operação foi a quebra de sigilo de um posto de gasolina – o Posto da Torre, em Brasília –, para obter informações sobre doleiros envolvidos com lavagem de dinheiro no Paraná. As escutas levaram à prisão de alguns deles, incluindo Alberto Youssef, que se tornaria peça-chave da operação. No dia 17 de março de 2014, quando a polícia chegou ao hotel Luzeiros, em São Luís, no Maranhão, para prender o doleiro, ninguém imaginava aonde aquilo iria chegar. Talvez só o próprio Youssef. No meio da madrugada, ao perceber que a Polícia Federal estava atrás dele, Alberto Youssef teve certeza de que teria que encarar de novo o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, que já o condenara anos antes no caso Banestado. Teve medo, mas não tentou fugir. Preferiu enfrentar seu destino.
A prisão de Youssef trouxe à tona suas ligações perigosas com o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa. Puxando o fio da meada, os investigadores revelaram um gigantesco esquema de corrupção na Petrobras envolvendo dirigentes da estatal, grandes empreiteiras e políticos da base do governo.
A Lava Jato detonou a mais eletrizante sucessão de eventos da história recente do país. Houve vários momentos dramáticos, como o dia, em março de 2015, em que a lista do procurador-geral da República Rodrigo Janot foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal, abrindo investigação contra 49 pessoas, dentre elas 47 políticos. Ou o dia em que a Polícia Federal bateu à porta do quarto de um hotel de Brasília, onde se hospedava o então senador e líder do governo Delcídio do Amaral. Ao ouvir a voz de prisão, ele perguntou: “Isso pode ser feito com um senador no exercício do mandato?” Nunca havia acontecido antes. A operação foi marcada por uma sucessão de acontecimentos surpreendentes. Rompeu todas as barreiras, derrubou mitos e tradições e mostrou que é possível mudar o que precisa ser mudado.
Dois anos depois de seu início, a Lava Jato chegou ao coração da República. No dia 13 de março de 2016, milhões de brasileiros tinham saído às ruas para protestar contra Dilma, Lula, o PT e a corrupção. Foi a maior manifestação da história do país. Três dias depois, Lula foi nomeado para a Casa Civil. E isso provocou nova onda de indignação e protestos, dessa vez em frente ao Palácio do Planalto. A ida do ex-presidente para o governo foi entendida como uma tentativa desesperada de lhe dar foro privilegiado, para fugir do juiz Sergio Moro, que vinha demonstrando rigor e coragem na condução dos processos da Lava Jato, fazendo valer o princípio de que a lei é igual para todos. Aliás, nesta história, todos tentam fugir de Moro.
Naquele mesmo dia em que a nomeação de Lula foi anunciada pelo governo, Moro tomou a decisão de suspender a escuta legal que vinha sendo feita nos telefones do ex-presidente e tornar públicas as gravações das conversas dele com amigos, ministros e até com a presidente da República. Foi a mais polêmica de suas decisões. Um dos diálogos, entre Lula e a presidente Dilma, incendiou o país.
– Lula, deixa eu te falar uma coisa.
– Fala, querida. Ahn.
– Seguinte, eu tô mandando o “Bessias” junto com o papel pra gente ter ele, e só usa em caso de necessidade, que é o termo de posse, tá?! – diz Dilma.
– Uhum. Tá bom, tá bom – responde Lula.
– Só isso, você espera aí que ele tá indo aí.
–Tá bom, eu tô aqui, fico aguardando.
–Tá?!
–Tá bom.
–Tchau.
–Tchau, querida – despede-se o ex-presidente.
Os investigadores viram na conversa uma tentativa de obstruir a justiça, uma medida para evitar uma possível prisão de Lula. O governo Dilma viu na gravação um crime contra a segurança nacional. A divulgação desse diálogo, gravado poucas horas antes, teve o efeito de mobilizar multidões. No fim da tarde, em Brasília, pessoas saíam do trabalho e iam engrossar o coro na frente do Planalto, gritando uma palavra forte: “Renuncia!” Todos os atores da cena política ficaram estupefatos. Ninguém sabia o que poderia acontecer naquele momento.
No dia seguinte, 17 de março, durante a cerimônia de posse, lotada de apoiadores, a presidente fez um duro discurso defendendo Lula, a quem chamou de “o maior líder político deste país”. Ela repudiou a versão de que a conversa sobre o termo de posse tivesse o objetivo de dar foro privilegiado ao companheiro de lutas e conquistas. Dilma disse que não abriria mão de uma apuração profunda dos fatos. Queria saber quem autorizara o grampo, por que o autorizara e por que permitira que ele fosse divulgado. “Convulsionar a sociedade brasileira em cima de inverdades, de métodos escusos, de práticas criticáveis viola princípios e garantias constitucionais, viola os direitos dos cidadãos e abre precedentes gravíssimos. Os golpes começam assim”, disse a presidente.
Logo depois, a nomeação de Lula para o ministério foi suspensa por uma liminar da Justiça Federal, confirmada posteriormente pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Lula nunca chegou a ocupar o cargo. Em meio à confusão daqueles dias, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, inimigo declarado de Dilma, viu o clima propício para dar início aos trabalhos da comissão que analisaria a admissibilidade do processo de afastamento da presidente. Naquela tarde, a Câmara dos Deputados escolheu a Comissão Especial do Impeachment.
A semana terminou com grandes manifestações “contra o golpe e em defesa da democracia” em todos os estados. Os militantes gritavam a favor do governo, do ex-presidente Lula e do PT, inclusive na frente do Congresso. Lula compareceu ao maior ato, na avenida Paulista, onde foi ovacionado depois de fazer um discurso dizendo que seria “Lulinha paz e amor” novamente. Nesses protestos contra o impeachment, o juiz Sergio Moro, considerado herói nas manifestações ocorridas dias antes contra o governo, era visto como vilão.
No dia 17 de abril de 2016, por 367 votos a favor e 137 contra, a Câmara deu prosseguimento ao impeachment e, em 12 de maio, o Senado autorizou a abertura do processo contra a presidente Dilma Rousseff, que terminou afastada. Mas, antes dela, caiu o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Réu da Lava Jato, ele teve seu mandato suspenso pelo Supremo Tribunal Federal.
Naquelas semanas vertiginosas de 2016, a operação ocupou todos os espaços da discussão pública, virou assunto em todos os bares e em todas as reuniões políticas, mobilizou plateias nos teatros, dominou a mídia social, invadiu as relações familiares. O país girava em torno dela. Independentemente do que aconteça daqui em diante, com cada um dos muitos personagens envolvidos, a operação entrou para a história. De março de 2014 a março de 2016, passou de uma perseguição a um conhecido doleiro para a definição de quais seriam as regras do exercício do poder no Brasil. Não faz mais o menor sentido perguntar se a Lava Jato levará a algum resultado. Ela já levou o país para sua mais dramática hora da verdade.