Prefácio
por Deepak Chopra
Quando escrevi Saúde perfeita, em 1991, que define os princípios do ayurveda para a vida cotidiana, eu não sabia se os leitores aceitariam fazer escolhas de estilo de vida que fossem tão diferentes do padrão básico ocidental. Mas fui incentivado pelo interesse natural que as pessoas tinham de descobrir qual é o seu tipo de corpo – a porta de entrada básica para o ayurveda –, que a partir daí leva à alimentação personalizada e às rotinas sazonais. Mais importante ainda, Saúde perfeita se concentra na consciência como o agente mais poderoso para mudar corpo e mente. Um ayurveda baseado na consciência vai muito além da ideia de ayurveda como “medicina alternativa” – trata da evolução da pessoa em todas as dimensões: física, mental e espiritual. Nas lendas do ayurveda, há práticas intensas que supostamente criavam imortais; no ayurveda real, você percebe sua condição de imortal logo no início, derrotando a ilusão de nascimento e morte.
No entanto, a medicina no Ocidente – e cada vez mais na Índia, na China e no Oriente em geral – não tem dado importância à expansão da consciência. Muito pelo contrário! A ideia é inventar uma espécie de rede de segurança baseada em comer os alimentos certos, fazer a quantidade ideal de exercícios físicos, gerenciar o estresse e controlar as várias influências negativas, como fumar e beber, que prejudicam a saúde e reduzem a expectativa de vida. Nesse aspecto, a sociedade parou de evoluir, penso eu, porque a noção de evitar riscos se baseia na ansiedade. O bem-estar se torna um estado inseguro fadado a ser temporário em razão dos muitos ataques provenientes do ambiente que nos cerca.
O ayurveda não contradiz essas medidas para obter bem-estar, mas o foco primário é o equilíbrio holístico, que leva a uma confiança profunda na natureza a partir da conexão do corpo com o ambiente que o cerca. Toda a tradição da sabedoria indiana se resume em dar fim à separação e viver na consciência da unidade. Não que a unidade seja um prêmio obtido depois de uma vida inteira de prática árdua. Em vez disso, a unidade é o estado básico da existência, do qual nos separamos. Retornar ao estado básico ou ser autêntico deve envolver um modo natural de vida que mantenha o corpo e a mente em equilíbrio enquanto evoluem.
Não se pode esperar de nenhum sistema de “medicina alternativa” que traga a consciência da unidade. Aproxima-se mais da verdade o uso da palavra sânscrita upaveda, na qual veda significa “o ensinamento sobre a realidade”, e upa, “perto de”. Upaveda não é um ensinamento espiritual puro, mas um acessório ou auxílio que chega perto do ensinamento puro. No Ocidente, isso soa como um papel dúbio da medicina, porque a medicina científica, em essência, equivale a levar o carro ao mecânico para consertar. De fato, a abordagem mecanicista ensinada na faculdade de medicina é vista com orgulho: o bom médico ignora o mundo instável e pouco confiável dos sentimentos do paciente e de seus pensamentos, hábitos, tendências ou qualquer coisa que seja considerada subjetiva. Até a psiquiatria, que é a especialidade que atravessa a fronteira do mundo interior do paciente, se tornou, em grande medida, uma questão de relacionar sintomas com o medicamento adequado, ainda que se saiba que os tratamentos medicamentosos raramente curam – se é que curam – os transtornos mentais subjacentes.
Quando não estão no consultório médico, as pessoas passam pouquíssimo tempo do seu cotidiano examinando o estilo de vida em que foram criadas, muito menos buscando o ideal ayurvédico, que é ter consciência diária da mente, do corpo e das circunstâncias mutáveis. Essa consciência, no sentido da atenção plena (mindfulness), não é o mesmo que ficar ansioso com o que você come e com o modo como se sente. Quando se leva a sério o “upa” de upaveda, a rotina seguida todos os dias e a cada estação do ano ajuda a atingir um nível mais alto de bem-estar em todas as frentes.
Chegando agora ao foco deste livro, a medicina ocidental vem passando por sua própria revolução silenciosa com o surgimento da cronobiologia, o estudo do modo como o tempo afeta a fisiologia de maneiras brutais e sutis. Como os indícios provam cada vez mais, o timing, o momento em que se faz alguma coisa, rege tudo dentro do corpo. Cada processo em trilhões de células é regulado por um relógio interno ou biológico – muito parecido com aquele descrito nos textos védicos. De fato, a importância fundamental do ritmo circadiano (que ocorre em um período de 24 horas) talvez seja o elo entre as antigas práticas ayurvédicas e a cura da moderna epidemia de doenças crônicas.
Em 2017, três fisiologistas ganharam o Prêmio Nobel por quatro décadas de pesquisas para desvendar os mistérios do ritmo circadiano na biologia. Eles descobriram que o ritmo diurno da natureza afeta o funcionamento das células de plantas, animais e seres humanos – e até de algumas bactérias unicelulares. Genes específicos mudam a função celular de acordo com a hora do dia. Embora essa descoberta pareça esotérica, o novo campo da cronobiologia tem aplicações práticas com consequências revolucionárias para o futuro do bem-estar.
Já foi comprovado que escolhas de estilo de vida mudam a expressão de nosso DNA, mas o que aprendemos há pouco tempo é que não basta comer bem, exercitar-se algumas vezes por semana e ter um sono de qualidade. Como ensina o ayurveda há séculos, é preciso saber qual cronograma das atividades diárias funciona a favor de sua fisiologia e não contra ela.
É essa percepção que torna este livro um acréscimo tão valioso ao conhecimento crescente sobre o ayurveda no Ocidente. Apesar de todos os conselhos úteis sobre como prevenir problemas de saúde, a rotina de milhões de pessoas é trabalhar muitas horas, comer às pressas e dormir mal, com o celular ao lado da cama. A “doença do tempo” (time sickness) se infiltra na realidade cotidiana, ou seja, essas pessoas vivem de olho no relógio e estão sempre preocupadas com prazos e assoberbadas com uma lista imensa de demandas.
Essas expectativas nada realistas em torno do estilo de vida se tornaram algo aceitável, mas novas pesquisas médicas estão derrubando o pressuposto de que nosso corpo pode se adaptar ao anormal. O desequilíbrio crônico tornou-se uma situação comum que afeta todas as células, e os principais culpados são o estresse crônico e a inflamação de baixo grau. Se os palpites dos principais pesquisadores se confirmarem, talvez seja verdade que literalmente todos os transtornos ligados ao estilo de vida, como cardiopatia, obesidade, hipertensão e diabetes tipo 2, tenham instalado suas raízes anos ou décadas antes que os sintomas apareçam. Essas raízes são o desequilíbrio causado em nível sutil pelo estresse cotidiano, que já consideramos praticamente natural, e a inflamação crônica, tão escondida que poucas pessoas a notam.
A prescrição ayurvédica para o estado de desequilíbrio, que se aplica tanto ao estresse quanto à inflamação, é restaurar o equilíbrio e depois permitir que a preferência natural do corpo-mente por permanecer em equilíbrio faça o resto. Em termos práticos, precisamos mover, nutrir e descansar o corpo em sincronia com o ritmo da natureza. Quando fazemos isso, fica mais fácil adormecer à noite e nos levantarmos de manhã, manter um peso adequado e resistir a alimentos tentadores mas nada saudáveis. Também se torna mais fácil nos desligarmos das distrações e encontrar mais tempo para nossas metas pessoais.
O ayurveda ensina há milênios que existe uma conexão entre mente e corpo, baseada na unidade de todos os processos naturais. Hoje, o Dr. Suhas G. Kshirsagar lidera a próxima onda do ayurveda no Ocidente. Ao apresentar um conhecimento profundo da cronobiologia, este livro vislumbra um futuro no qual cuidar de si mesmo se tornará muito mais importante do que recorrer a um médico para consertar os danos depois que os sintomas aparecerem.
Quando o cuidado consigo mesmo se baseia na autoconsciência, nos aproximamos do ideal ayurvédico apresentado pelos antigos rishis ou sábios. Pessoas como o Dr. Kshirsagar mantêm vivo esse ideal e, o mais importante, promovem a evolução do autocuidado exatamente no momento em que se faz mais necessário. Eu o considero um upaguru, um mestre que se senta junto aos alunos e os guia com amor e compaixão.
1 Não é você, são seus horários
Diga-me qual é sua rotina diária e eu lhe direi quanto você se sente saudável. Diga-me quando come e lhe direi se é fácil ou difícil para você manter o peso. Diga-me quando pratica exercícios físicos e lhe direi se está fortalecendo ou desgastando os sistemas de seu organismo. Diga-me quando desliga a televisão ou o computador à noite e lhe direi até que ponto você é sensível ao estresse. Diga-me a que horas pega no sono e lhe direi se precisa de café para ter mais energia à tarde ou se fica impaciente com as pessoas que ama no fim de um longo dia.
Parece magia, mas não é. Mais e mais pesquisas científicas revelam que nosso corpo está intimamente ligado ao ritmo circadiano de luz e escuridão até o nível celular. Esses estudos mostram que quando comemos é tão importante quanto o que comemos, que quando adormecemos é tão importante quanto o tempo que passamos dormindo e que quando malhamos é tão importante quanto o volume de exercícios que praticamos. O horário de nossas atividades diárias determina nosso peso, vigor, saúde geral e estado de espírito. Não acredita? Há décadas os pesquisadores do diabetes sabem que um modo simples de provocar obesidade em camundongos de laboratório é acordá-los e alimentá-los durante o ciclo do sono. Além disso, os camundongos engordam depois de uma semana se os pesquisadores simplesmente os expuserem à luz fraca quando deveriam estar dormindo.1
Ainda não acredita? Pense na última vez que viajou para longe e experimentou um jet lag. Como se sentiu? Quem já passou por um jet lag sabe que os sintomas podem ir muito além da alteração do sono. É comum ter prisão de ventre, dor de barriga, confusão cognitiva, pouca energia e aumento de sensibilidade ao estresse. Um estudo recente chegou a ligar o jet lag ao ganho de peso, porque a desorganização dos horários causada pelas viagens de longa distância confunde os micróbios do intestino.2
São justamente estes sintomas – ganho de peso, insônia, exaustão, estresse, depressão – que levam as pessoas à minha clínica. E, se você está lendo este livro, aposto que eles lhe parecem bastante familiares também. Por causa das exigências dos empregos modernos e da conectividade 24 horas por dia, sete dias por semana, muitos vivemos num estado constante de jet lag autoimposto: dormindo, comendo e fazendo exercícios em horários que não coincidem com o ritmo natural do corpo. Mas há uma boa notícia, e vou lhe dizer o que digo a todos os meus pacientes: o problema não é você, são seus horários. Há um modo mais fácil de emagrecer, ter mais energia e dormir melhor à noite. Se trabalhar a favor do ritmo natural de seu corpo e não contra ele, você pode criar um cronograma diário que transformará sua saúde e sua vida.
O ritmo circadiano
Os fisiologistas sabem que o corpo tem um ritmo natural, o chamado ritmo circadiano, que opera num ciclo de quase 24 horas e se reinicia toda manhã, quando você percebe a luz do dia. Esse ritmo indica ao corpo quando digerir os alimentos, como se preparar para dormir e como regular tudo no organismo, como pressão arterial, metabolismo, produção de hormônios, temperatura corporal e reparo celular. As células da pele também se reparam e se regeneram segundo um cronograma diário. Até a população de micróbios do trato intestinal muda profundamente no decorrer de um único dia. Certas cepas de bactérias intestinais proliferam durante o dia e outras predominam à noite.
A cada hora do dia, o funcionamento do corpo muda. As células e os sistemas são preparados para fazer coisas diferentes dependendo da hora do dia ou da noite. Assim, sabemos que você chega ao ciclo mais profundo do sono por volta das 2h e que a temperatura corporal é mais baixa perto das 4h. O aumento mais agudo da pressão arterial acontece lá pelas 6h45, e é mais provável que o intestino funcione às 8h30. Às 10h, o estado de alerta mental tem um pico, e a digestão opera com mais eficiência ao meio-dia. Coordenação, tempo de reação e força cardiovascular aumentam à tarde, enquanto a digestão se reduz. Depois do pôr do sol, a pressão atinge o ponto mais alto do dia, juntamente com a temperatura do corpo. Lá pelas 21h, o cérebro começa a liberar melatonina, e a velocidade da digestão cai pela metade. Às 22h30, os movimentos intestinais são suprimidos, e a digestão se arrasta. Isso acontece ou deveria acontecer todo dia. É por isso que o corpo fica tão confuso quando você atravessa fusos horários. A luz muda, e o organismo perde a bússola que controla todas essas funções corporais.
Isso é fascinante, porque nos achamos muito isolados da natureza. Vivemos em casas com temperatura controlada e trabalhamos em salas fechadas ou em cubículos dentro de espaços maiores fechados. Mesmo assim, todos os sistemas do corpo mudam num padrão diário previsível. Seu corpo está sempre tentando coordenar todos os seus sistemas segundo um relógio central, usando a luz natural disponível. Na natureza, todos os organismos operam dessa forma cíclica, e um novo campo da biologia chamado cronobiologia estuda as várias maneiras pelas quais organismos diferentes funcionam de acordo com o ritmo circadiano.
Hoje os pesquisadores estão estudando de que modo hábitos cotidianos interagem com o ritmo circadiano e já descobriram que os horários em que realizamos nossas atividades podem desorganizá-lo profundamente. Ficar acordado até tarde assistindo à TV ou trabalhando leva o corpo a pensar que a noite ainda não começou. Fazer uma refeição mais pesada à noite tem o mesmo efeito. São ações que retardam o ciclo e perturbam o sono, mas mesmo assim você força o corpo a despertar de manhã cedo quando o alarme toca. A falta de exercícios físicos e de luz natural desorganiza ainda mais o ritmo circadiano, o que, por sua vez, perturba tudo, da digestão à secreção de hormônios e ao sistema nervoso.
Muitos pacientes meus costumam ficar acordados até a meia-noite, trabalhando e beliscando algum lanchinho, e ainda se surpreendem quando só conseguem dormir depois de 1h. Então, saem da cama se arrastando às 6h e não entendem por que não conseguem comer nem se concentrar de manhã. Algumas horas de desvio do ritmo natural do corpo não parecem muita coisa, mas vejamos de outro ponto de vista: se você só dorme entre 1h e 6h, é como se atravessasse os Estados Unidos de Leste a Oeste e depois voltasse antes de trabalhar. Não surpreende que se sinta mal.
Muitos de nossos sintomas físicos mais comuns são criados ou exacerbados pelos horários modernos, que não combinam com as necessidades do corpo. Felizmente, os fisiologistas fizeram diversas pesquisas sobre o relógio biológico e o modo como o comportamento fortalece ou atrapalha os sinais enviados por esse relógio. Esse é o novo campo da cronobiologia, que aponta caminhos para criarmos um cronograma de atividades diárias que nos mantenha saudáveis e cheios de energia.
Como o seu corpo sabe as horas
Seu corpo sempre sabe que horas são, mesmo que você não saiba. Parece absurdo pensar que você não sabe que horas são. Provavelmente, você está hiperatento à hora em cada momento do dia. Tem que pegar o metrô ou deixar os filhos na escola. Tem uma reunião daqui a 15 minutos e um telefonema daqui a uma hora. Precisa chegar à lavanderia antes que feche. Você tem prazos para os projetos, reservas para o jantar e um despertador (ou dois) para acordá-lo toda manhã. Meus pacientes me dizem que estão sempre atentos ao tempo e que o relógio dita praticamente todas as atividades cotidianas.
Mas há dentro do corpo um tipo diferente de relógio que controla todas as células e sistemas. Para entender como ele funciona, é preciso entrar no cérebro e no hipotálamo.
O hipotálamo fica no centro do cérebro e é responsável por regular todos os sistemas do organismo. Ele ativa a reação de luta ou fuga quando você sente tensão ou detecta perigo. Ele lhe diz quando você está com fome ou com sede. Quando começa uma dieta de restrição, é o hipotálamo que lhe diz que você está passando fome por comer de forma diferente. Talvez você saiba que não está passando fome, mas o corpo sinaliza para o cérebro que não está recebendo a mesma quantidade de comida que recebia antes. Quando inicia uma nova rotina de exercícios físicos, o corpo avisa ao cérebro que está com fadiga muscular e estresse cardiovascular, e o hipotálamo insiste em que você pare. E, quando fica acordado até tarde trabalhando num projeto, é o hipotálamo que lhe diz que está com sono e entediado. Portanto, essa parte do cérebro consegue ler os sinais do corpo e tenta afetar seu comportamento para manter tudo igual ao que era ontem.
O hipotálamo também regula todo tipo de coisa que não controlamos conscientemente, como a temperatura do corpo, o equilíbrio hormonal e o metabolismo. Todas as mudanças nesses parâmetros acontecem em horas previsíveis do dia. Por exemplo, a temperatura do corpo é mais alta ao anoitecer; depois, cai durante a noite e chega ao ponto mais baixo pouco antes da aurora. A pressão arterial tem um aumento súbito quando acordamos pela manhã e depois vai aumentando aos poucos no decorrer do dia para cair durante a noite. O aumento rápido da pressão pela manhã acontece na hora em que as plaquetas do sangue têm mais aderência, o que explica por que tantos infartos acontecem de manhã cedo. O nível de cortisol também muda em horas previsíveis. O cortisol é um esteroide produzido pelo próprio organismo. Também chamado de “hormônio do estresse”, chega ao nível mais baixo quando vamos nos deitar e se acumula durante a noite. Ele é parcialmente responsável pela resposta inflamatória do organismo, e não é por acaso que suas dores pioram quando você se levanta ou que você se sente mais inchado pela manhã. O nível de cortisol vai diminuindo ao longo do dia e sobe levemente depois de cada refeição.
A motilidade colônica, que é um nome rebuscado para os movimentos do intestino, também muda ao longo do dia. De manhã cedo, o cólon acorda e se move no triplo do nível normal de atividade, com resultados previsíveis. É por isso que tanta gente tem prisão de ventre quando está passando por jet lag. O horário inadequado das refeições também confunde o cólon. À noite, o cólon descansa, e os movimentos intestinais são suprimidos. O humor e as ondas cerebrais também se alteram no decorrer do dia e da noite.
Para regular os sistemas do organismo, seu hipotálamo recebe dicas tanto dos tecidos e órgãos do corpo como do ambiente. Quando sente cheiro de comida, você tem fome; quando vislumbra o perigo, fica tenso e com energia para agir. Tudo isso é verdade. Mas não vamos esquecer o sinal mais insidioso que o cérebro absorve o dia inteiro: a presença de luz.
Há uma parte pequena do hipotálamo, chamada núcleo supraquiasmático (NSQ), encarregada de notar a luz. Tem mais ou menos o tamanho de um grão de arroz e contém cerca de 20 mil neurônios. Os fisiologistas entenderam há tempos que esses neurônios reagem à luminosidade e regulam os sistemas do organismo com base na luz e na escuridão. Quando a claridade atinge a retina do olho pela manhã, o NSQ avisa ao corpo que amanheceu. À noite, o NSQ manda um sinal para a produção natural de melatonina do corpo, que nos diz quando está na hora de dormir. Mas só nos últimos 20 anos os pesquisadores observaram o poder que esse minúsculo aglomerado de neurônios exerce sobre cada célula e cada sistema do corpo.
Uma breve história da cronobiologia
Para compreendermos melhor o campo da cronobiologia, temos que voltar quase 300 anos no tempo, até um experimento realizado pelo cientista francês Jean-Jacques d’Ortous de Mairan. Em 1729, Mairan se interessou pelo modo como algumas plantas abrem as folhas à luz do sol e as fecham à noite. Então ele expôs essas plantas à escuridão constante e as observou. Elas continuaram a abrir as folhas pela manhã e fechá-las à noite, embora estivesse escuro o tempo todo. As folhas se moviam como se esperassem a luz do sol, que nunca vinha. Mairan ficou perplexo, assim como os muitos pesquisadores que reproduziram a experiência. Outro cientista se referiu ao fechamento das folhas como um tipo de “sono vegetal”. As plantas continuavam a abrir e fechar as folhas na hora certa durante muitos dias depois que a luz solar era bloqueada.
Mairan se perguntou se as plantas conseguiam sentir de algum modo a luz do sol acima da superfície. Ele não chegou ao ponto de sugerir que as plantas tinham uma predisposição celular a abrir as folhas em determinada hora; sugerir uma coisa dessas seria heresia – e continuaria a ser por mais uns 200 anos. Em vez disso, ele se perguntou se variações ambientais na temperatura ou na rotação da Terra configuravam o comportamento dessas plantas.
Um mistério maior era por que o ritmo natural de abertura e fechamento das folhas não seguia um período de 24 horas. Finalmente, quando conseguiram estudar as plantas com mais rigor, os cientistas constataram que esses movimentos se tornavam menos pronunciados na escuridão total e que as plantas abriam e fechavam as folhas num ciclo de 22 horas. Mas, quando podiam sentir a luz, elas voltavam ao ciclo de 24 horas. Isso indicava que havia alguma predisposição biológica de se mover prevendo a luz e que a luz em si as ajudava a sincronizar seu relógio interno.
Era fácil teorizar o modo como a luz e a escuridão afetam as plantas porque elas precisam de luz, mas seria necessário um tipo específico de cientista para notar que outros organismos, como os mamíferos, também usam a luz para alterar suas funções fisiológicas.
Esse cientista foi um jovem médico romeno chamado Franz Halberg, que terminava uma bolsa de pesquisa em Harvard no fim da década de 1940 quando começou a monitorar o nível de leucócitos em circulação no sangue dos camundongos. Ele continuou a pesquisa na Universidade de Minnesota, onde notou que a contagem de leucócitos tinha um pico durante o dia e caía à noite. Diferentes variedades de camundongos tinham níveis diferentes de leucócitos no sangue, mas todos mostravam o mesmo padrão de aumento acentuado durante o dia e queda semelhante à noite. Depois Halberg passou a monitorar as flutuações horárias de pressão arterial e frequência cardíaca nos camundongos, além da temperatura corporal, e descobriu que essas reações fisiológicas variavam num cronograma similar de 24 horas. Em 1959, ele cunhou a expressão “ritmo circadiano” para explicar essas mudanças. Nas décadas seguintes, teorizou e depois comprovou variações similares em seres humanos.3
Halberg descobriu que uma série de processos fisiológicos – como a temperatura corporal, a produção de hormônios, a contagem de leucócitos, a pressão arterial, a frequência cardíaca, o nível de glicogênio no fígado e até
a divisão celular – varia segundo padrões previsíveis, aparentemente dependentes da luz. Mas a pesquisa genética ainda estava engatinhando, e poucos pesquisadores queriam acreditar que o corpo contivesse um relógio interno que variava de acordo com a hora do dia ou as estações do ano.
Halberg tinha certeza de que as flutuações dentro desses padrões eram possíveis marcadores de doenças. Ele acreditava que monitorar constantemente a pressão arterial permitiria uma previsão melhor de infartos e derrames do que uma única medição no consultório médico. Foi por isso que monitorou a própria pressão de meia em meia hora todos os dias nos últimos 15 anos de vida. Talvez tivesse certa razão, já que viveu até os 94 anos.
Ele também teorizou que os tratamentos anticâncer seriam mais eficazes quando a temperatura do núcleo do tumor fosse mais alta. Ele acreditava que o corpo funcionava inteiramente segundo um ritmo circadiano e que nutricionistas e médicos deveriam levar em conta esse ritmo como parte de qualquer plano de tratamento. E, embora centros de cronobiologia tenham brotado nas maiores instituições de pesquisa do mundo inteiro, foi difícil provar a eficácia dessas teorias até o finalzinho do século XX. O próprio Halberg teve dificuldade em obter financiamento para seus estudos e conseguir que a cronobiologia fosse ensinada nas faculdades de medicina.
Seria tentador dizer que o resto da comunidade médica desprezou essas teorias. Mas a verdade é que, na época, saía caro monitorar constantemente a pressão arterial, as contagens sanguíneas, a absorção da glicose no fígado e outras reações fisiológicas. As teorias de Halberg estavam bem além da tecnologia, e caberia aos geneticistas explorar essas ideias e descobrir exatamente como as células do corpo conseguem se coordenar com o NSQ a cada dia e noite.
Os genes do relógio
Hoje sabemos que as células do corpo contêm os chamados “genes do relógio”. Eles têm nomes específicos, como PER1, PER2, PER3, que são ativos à noite, ou CLOCK e BMAL1, ativos durante o dia. Esses genes funcionam numa espécie de circuito fechado ou loop. A atividade de um deles inibe a atividade de outro. As células são preparadas para fazer coisas diferentes com base nos ciclos diários de luz e escuridão. E as vias proteicas de cada uma dessas células ficam ativas ou inativas de acordo com a hora do dia.
Toda manhã, quando você abre os olhos e vê a luz do sol, seu NSQ dá o sinal para reiniciar o relógio biológico e envia informações a todos os sistemas do corpo e a todos os órgãos e tecidos para dizer que é dia outra vez.
E esse relógio determina as mudanças fisiológicas automáticas que têm que ocorrer no momento certo das 24 horas seguintes para o organismo funcionar. Dessa maneira, o NSQ é o relógio do cérebro. Ou talvez devêssemos dizer que é o maestro do cérebro e todas as células do corpo tentam dançar de acordo com o ritmo ditado por ele.
Enquanto o relógio-mor do cérebro tenta estabelecer um ritmo corporal total, as células do corpo reagem ao seu comportamento – sua hora de dormir, sua hora de comer, sua atividade – para estabelecer o ritmo dos próprios relógios. Quando o relógio do cérebro e esses relógios celulares, chamados de “relógios periféricos”, se desalinham, pode haver comportamentos celulares distorcidos. Lembra-se daqueles camundongos que engordavam quando eram alimentados durante o ciclo do sono? O corpo deles operava fora do ritmo circadiano principal, absorvendo nutrientes que as células do sistema digestivo não podiam processar. E a redução do período de sono fez com que, em nível celular, sistemas inteiros do organismo parassem de funcionar do jeito que deveriam. Isso provoca perturbações não só no processo digestivo, mas na produção de hormônios, na resposta imune e na resposta inflamatória.
Como podemos imaginar, isso redefine inteiramente o campo da epigenética e o modo como nossos comportamentos afetam e alteram a expressão gênica com o passar do tempo. Como campo de estudo, a cronobiologia ainda é nova, mas os genes do relógio parecem ter efeito sobre o envelhecimento e a supressão de tumores, além do metabolismo. Comer e dormir na hora errada perturba o ritmo circadiano e interfere no metabolismo saudável e na resposta imune forte. Embora os cientistas ainda estejam verificando várias nuances e aplicações em tratamentos clínicos, o que sabemos com certeza é que você pode estabelecer uma programação diária de atividades que reforce o ritmo circadiano e melhore a saúde.
Mesmo sem a presença de luz toda manhã, seu corpo tentaria funcionar naquele mesmo cronograma de 24 horas. Na década de 1970, os pesquisadores fizeram experiências com pessoas que concordaram em viver isoladas, sem exposição diária à luz natural. Alguns achados surgiram dessas experiências com o passar das décadas. Primeiro, o relógio biológico fica à deriva sem o reajuste diário de luz natural e escuridão. O meio primário pelo qual o organismo ajusta seu ritmo circadiano é a luz. Segundo, o corpo pode usar deixas sociais, como o horário das refeições, do sono e dos exercícios, como substitutas quando os sinais de luz estão ausentes.
Todas as tentativas do organismo de sincronizar seus sistemas num único ritmo circadiano principal se chamam entrainment ou arrastamento.
O corpo confia em sinais para reajustar o ritmo circadiano e se manter funcionando da melhor forma. Embora prefira usar luz e escuridão como sinais primários, pode e usa outras deixas, inclusive nosso comportamento. Tudo o que você faz o dia inteiro ajuda (ou atrapalha) o relógio circadiano principal a sincronizar as funções do organismo. Por isso, criar um cronograma diário que reforce o ritmo natural do corpo é o hábito saudável mais poderoso que você pode adotar.
Não é só o corpo humano que tenta estabelecer um ritmo diário. Toda a natureza segue o mesmo padrão diurno. As plantas de Mairan abriam as folhas prevendo a chegada da luz, mesmo que isso nunca acontecesse. Suas células continuavam tentando manter o ritmo diário. Muitos tipos de célula são encarregados de fazer um conjunto de coisas durante o dia e outro durante a noite. Isso acontece com mamíferos, plantas e até com as menores bactérias unicelulares. Nos últimos 30 anos, a pesquisa genética e a microbiologia transformaram o estudo desses ritmos naturais. Os cientistas vêm trabalhando para descobrir os genes do relógio dentro das células e o modo como funcionam nos níveis neurológico e molecular em todos os tipos de organismo.
Saber que as células operam de forma diferente em horas diferentes num ciclo de 24 horas tem implicações em muitos campos. O estudo do ritmo circadiano e da cronobiologia pode mudar muitos tipos de tratamento médico. Por exemplo, se você precisar tomar uma estatina de curta duração para baixar o nível de colesterol, o médico provavelmente lhe dirá para tomá-la à noite. Por quê? Porque os cronofarmacologistas sabem que é quando o fígado produz colesterol. Os estudiosos estão procurando o limite das maneiras pelas quais o ritmo circadiano regula os sistemas biológicos em todas as coisas vivas, mas ainda não o encontraram. Um pesquisador observou que deveríamos supor que todos os sistemas do organismo funcionam segundo o ritmo circadiano até prova em contrário.
Ayurveda e cronobiologia
Embora esses achados da pesquisa baseada na cronobiologia ainda sejam recentes, na verdade eles reforçam o que venho praticando há décadas na medicina ayurvédica. O ayurveda é uma tradição de cura natural praticada na Índia há cerca de 5 mil anos. Muito antes de Mairan se perguntar sobre as plantas e seu estranho comportamento, os médicos ayurvédicos já orientavam os pacientes sobre o ciclo diário do corpo e de seus muitos sistemas.
O ayurveda separa o dia em segmentos que descrevem a energia e os sistemas do organismo como ativos ou suspensos. Ele ensina que é preciso ter um cronograma de atividades saudável para viver bem. De fato, o ayurveda enfatiza que todos os nossos comportamentos, como alimentação, repouso e prática de exercícios, têm que trabalhar em conjunto com o relógio biológico principal para manter o corpo funcionando direito. Ele também indica como alcançar uma conexão corpo-mente de modo a permanecermos em contato com o que o corpo precisa ao longo do dia.
O ayurveda é também chamado de medicina do estilo de vida. Traduzido literalmente como “ciência da vida”, é o precursor de todas as outras tradições de cura, inclusive da medicina tradicional chinesa. Quando o budismo se espalhou pela Ásia, seus estudiosos levaram consigo o conhecimento ayurvédico. Na medicina tradicional chinesa, os praticantes ensinam que o equilíbrio é essencial, que o fluxo de chi pelo corpo facilita a cura e que o sabor da comida faz parte de seu efeito de cura e equilíbrio. Essas ideias foram influenciadas pelo ayurveda. Até os gregos leram os textos ayurvédicos e extraíram deles parte da sabedoria para configurar suas ideias sobre o funcionamento do organismo. Prana, palavra sânscrita que significa sopro da vida, tornou-se pneuma para os gregos. Agni, o jogo, ou calor, do metabolismo e da digestão, se tornou ignis. E, de algum modo, os três doshas, ou energias predominantes, se tornaram três dos quatro humores ou agentes metabólicos: fleuma, cólera e melancolia. Nos primeiros textos ayurvédicos, um estudioso concluiu que o sangue era o quarto dosha, e os gregos aparentemente concordaram, embora mais tarde os estudiosos ayurvédicos voltassem aos três doshas. Os gregos acreditavam que esses humores ou tendências precisavam ser equilibrados e que a perturbação ou a superabundância de um deles era a causa de muitas doenças, ideias tomadas de empréstimo ao ayurveda.
Mas poucas tradições de cura natural exploram o efeito da luz natural sobre o corpo. O ayurveda é o único a explicar que os sistemas do organismo operam num ciclo diário. Ele descreve uma rotina diurna, uma rotina noturna e uma rotina sazonal para sincronizar seu corpo com o relógio circadiano. A palavra “cronobiologia” pode ser relativamente nova na medicina ocidental, mas é parte essencial da tradição ayurvédica. Os textos esclarecem de que modo nosso organismo interage constantemente com a luz do sol e a mudança das estações. Mostram como sincronizar a rotina diária com essa mudança da luz natural. Talvez seja a única tradição médica que fala de organizar a rotina diária para obter saúde em todas as épocas da vida.
Além disso, é uma das poucas tradições que falam do tipo corporal e de como ele se manifesta em determinados problemas de saúde. Isso é importante porque muitas orientações de saúde e alimentação pressupõem que todo mundo é mais ou menos igual na necessidade de sono, exercícios e comida. Se você estiver numa sala cheia de gente, olhe em volta e veja que seu corpo não é igual ao de ninguém. No ayurveda não há o conceito de uma rotina única de alimentação ou de exercícios físicos que seja boa para todos. Embora todos devam saber como criar um cronograma adequado, nem todo mundo precisa exatamente da mesma rotina de alimentação e exercícios dentro dessa programação para obter o melhor resultado.
Neste livro, descreverei por que você precisa dormir bem e listarei todos os benefícios surpreendentes do sono de qualidade; e no próximo capítulo ajudarei você a identificar e vencer suas dificuldades de sono específicas. Farei o mesmo com a alimentação e os exercícios.
Com um determinado tipo de corpo você terá dificuldade para emagrecer, mas nunca terá insônia. Alguém com outro tipo de corpo talvez nunca tenha se preocupado com o peso, mas a dor de cabeça e a insônia são uma maldição. Existem respostas para todas essas preocupações. Assim, se você já tentou se exercitar e não conseguiu manter o hábito, talvez descubra por que e como resolver esse problema. Se experimentou dietas e elas não deram certo, provavelmente é porque não encontrou a dieta adequada ao seu tipo de corpo.
No ayurveda, tentamos equilibrar o corpo como um todo; mas também olhamos o indivíduo e resolvemos os problemas exacerbados por seu tipo corporal. Dessa maneira, você pode criar um cronograma diário que reforce o ritmo central de seu organismo e ajustá-lo para que a alimentação, o sono e a prática de exercícios não exijam grandes esforços.
Antes, porém, quero lhe mostrar como parar de atrapalhar seu ritmo circadiano. Quando fizer o relógio biológico trabalhar a seu favor, você verá sua saúde melhorar rapidamente.