PREFÁCIO
Comecei a me interessar por yoga em 1966, quando estava fazendo um curso de intercâmbio nos Estados Unidos e assisti, na escola, a uma demonstração de um ginasta profissional que se tornara praticante e divulgador do yoga. Não me lembro de muita coisa do que ele disse, mas me lembro de alguns slides com posturas, especialmente uma em que ele fazia shirshasana (o pouso sobre a cabeça) num posto de gasolina, ao lado de seu carro, enquanto o abastecia de combustível. Também disse que a prática de yoga supria todas as necessidades de exercício para sua atividade profissional e, ao sair do palco, deu um salto mortal com tal leveza e aparente facilidade que deixou a todos maravilhados.
Quando voltei dos Estados Unidos, trouxe dois livros que depois se mostraram muito importantes na minha vida: The Study and Practice of Yoga, de Harvey Day, e The Song of God: Bhagavad-Gita, numa tradução de Swami Prabhavananda e Christopher Isherwood.
O livro de Day, escrito nos anos 1950, era muito prático e agradável de ler, cobrindo muitos temas: posturas, respiração, fisiologia, meditação e alimentação. Assim começou minha aventura no mundo do yoga: tentando aplicar o que aprendera de um livro, como tantos outros naquela época.
Mais tarde entrei para uma academia de yoga e comecei a praticar sob a orientação de uma professora.
Em 1979, quando praticava na academia de yoga de Victor Binot, Paulo Guerra, meu professor, trouxe alguns livros do The Yoga Institute, o centro de yoga organizado mais antigo do mundo, fundado por Shri Yogendra em 1918, em Mumbai. Um deles era Yoga Sutra – Classic Yoga of Patanjali, na tradução do próprio Shri Yogendra. Esse foi meu primeiro contato com a obra de Patañjali.
Na introdução, Shri Yogendra conta que, enquanto praticava as técnicas do yoga sob as orientações de seu guru, ele não foi apresentado ao sistema de Patañjali. Como de um discípulo não era esperado que questionasse seu mestre, apenas o seguisse, ele decidiu coletar toda informação teórica que pudesse por si mesmo, de livros. Em 1921, quando estava no seu período de divulgação do yoga no Ocidente (1919-1922), recebeu da Índia o texto dos Yoga Sutras com comentários de Vyasa e Vacaspati, em sânscrito com tradução em inglês. Enquanto examinava o texto, resolveu traduzir os sutras com base na sua experiência em yoga. Por muitos anos continuou esse trabalho, inclusive coletando outros comentários dos Yoga Sutras, até que conseguiu assimilar e corroborar seu espírito com as técnicas que aprendera de seu mestre Madhavadasa. Esse trabalho foi publicado em 1978.
Em 1981 encomendei vários livros da Índia na Livraria Laissue, de Francisco Juan Laissue, um argentino de ascendência francesa, que durante muitas décadas foi a mais importante fonte de livros sobre o Oriente no Rio de Janeiro.
Um desses livros foi The Yoga-System of Patañjali, de James Haughton Woods, publicado em 1914 pela Universidade Harvard, onde era professor. Era, portanto, um trabalho acadêmico. Já existiam traduções dos sutras em si, mas Woods fez a primeira tradução para uma língua ocidental dos comentários de Vyasa sobre os Yoga Sutras, chamado Yoga Bhashya, e também de um comentário posterior, de Vacaspati Mishra, chamado Tattva Vaisharadi.
Ele tratava também da autoria dos Yoga Sutras, pois a primeira referência conhecida a Patañjali como seu autor aparece num verso laudatório na introdução do comentário de Vyasa, mas não no comentário em si.
No entanto, a tradição diz que Pantañjali é o autor não só dos Yoga Sutras, como também do Mahabhashya, o grande comentário sobre a gramática de Panini, além de ter escrito comentários sobre textos de medicina Ayurveda.
Também há quem defenda que os Yoga Sutras são uma criação coletiva de muitos autores.
A autoria é uma preocupação ocidental, pois nossa cultura valoriza a contribuição do indivíduo, que tem implicações legais e financeiras. Mas numa tradição em que tudo é uma manifestação de uma ordem cósmica, a expressão dessa manifestação através de um indivíduo também faz parte dessa ordem. Nesse caso a autoria não é uma preocupação tão importante.
Mais tarde examinei outras traduções dos Yoga Sutras feitas por mestres de Yoga: Iyengar, Swami Satyananda, Swami Satchidananda e T.K.V. Desikachar.
O que há em comum em todas as traduções a que tive acesso é que são bastante diferentes. Concluí que são a expressão da experiência pessoal de cada autor na interpretação dos sutras. Não identifiquei uma tradição de ensinamento de mestre a discípulo que mantivesse uma unidade de pensamento, como se tem em Advaita Vedanta e em outras tradições de ensinamento.
Também examinei trabalhos acadêmicos: Yogasutrabhashyavivarana of Shankara, da Dra. T. S. Rukmani, e The Yoga Sutras of Patañjali, de Edwin Bryant.
Os sutras são uma maneira peculiar de transmissão de ensinamento da cultura indiana. Usam um mínimo de palavras para transmitir uma mensagem e facilitar sua memorização. Para seu entendimento completo é necessário acrescentar outras palavras.
Por isso não se prestam ao estudo individual. Woods os chama de regras mnemônicas. Bryant diz que são como os bullet points que um palestrante utiliza para guiá-lo numa apresentação.
Portanto, para o entendimento dos Yoga Sutras é necessária uma interpretação.
Para muitos, os Yoga Sutras seriam uma expressão do Sankhya, uma tradição ateísta dentro do hinduísmo. Provavelmente por causa dos comentários de Vyasa, que seguiram essa tradição e serviram de base para os comentários posteriores.
Não vejo assim, pois há muitas referências a Ishvara (Aquele que governa). Portanto, uma tradução dos Yoga Sutras à luz de Vedanta me parece bem-vinda.
Estudei Advaita Vedanta com Gloria Arieira por 35 anos, desde que ela começou a ensinar, em 1979, após cinco anos de estudo intenso e dedicação total na Índia. Sou testemunha de seu empenho em viver uma vida de yoga. Optou por levar uma vida dentro da sociedade, com seus problemas e ensinamentos. Criou e educou três filhos. Escolheu não levar uma vida de renunciante, como muitos de seus colegas de ashram escolheram, mas todos que conheci têm enorme respeito por ela.
Portanto Gloria Arieira, pelo seu conhecimento profundo de Advaita Vedanta e sânscrito e pela sua experiência de levar uma vida de yoga, é a pessoa certa para nos apresentar essa tradução dos Yoga Sutras de Patañjali à luz de Vedanta.
João Mazza