Prefácio
A FINITUDE É A INFINIDADE AVASSALADORA de momentos que se esgotam vertiginosamente. Diferente do tempo-consciência dos que se acham imortais vivendo a própria rotina, ela tem um horizonte no tempo.
Descrever todo o choque e a comoção da experiência da finitude de tal modo que a lucidez humana a compreenda tem sido um desafio da linguagem e do pensamento. Da filosofia à psicologia, da religião à sociologia, da poética ao pragmatismo, apresentar a morte enquanto ainda se está na vida é caminhar sobre a fina linha do inconciliável. AnaMi faz duas escolhas que são determinantes para o sucesso dessa tarefa improvável: o bom jornalismo e a ótica da vida.
Essas escolhas rendem a Vida inteira e a Enquanto eu respirar, seu livro de estreia, uma originalidade e eficácia assombrosas. Por um lado, o jornalismo se faz com registros, anotações em caderneta do momento em existência; por outro, a vida não é o que vai acontecer, mas o que está acontecendo. Posso imaginar que, para AnaMi e todos que entram em contato com seu trabalho, essa fórmula tenha servido como um antídoto à morte decretada e antecipada. A vida é o “enquanto” que não pode ser contornado porque isso roubaria dela sua imprescindível qualidade indefinida. E o formato jornalístico tem esse predicado de permitir que o momento se eternize. É como se, entre duas respirações, houvesse um relato “destemporizado”, rebelde a outras urgências. É por meio desse formato, quem sabe, que a imortalidade da rotina e o senso de “enquanto” tenham maior chance de ser restabelecidos.
Esse artifício por si só não responderia pela graça e potência dos textos de AnaMi. Quando se está diante da acidez da morte não há espaço para truques, o que a tradição bíblica denomina de Verdade. A verdade não admite manhas nem astúcias: ou é ou é. Sagazmente, AnaMi acrescenta ingredientes poderosos ao embate assimétrico entre lucidez e consciência: a sensibilidade e a premência.
A sensibilidade deve ter lhe rendido a descoberta de ser uma escritora virtuosa, mas a premência, esta sim é um recurso poderoso!
Nos antigos anais dos rabinos há um alerta aos juízes para tomarem cuidado com os “prementes”. A necessidade inspira grande sabedoria a uma pessoa de quem se exige muito. Os sábios entendiam que, diante da relevância de sua urgência, mesmo uma pessoa simples ganhava uma perspicácia penetrante que nem os maiores eruditos estariam aptos a acompanhar. E isso perpassa todo o texto de AnaMi: um fulgor, um clarão de premência de tal monta, que certamente faz páreo à ofuscante visão da Verdade.
O efeito dessa luz contraposta retira o aturdir, o cegar por lampejo que costuma inviabilizar a visão. Os místicos chamavam isso de “luz dos cegos”, uma luz que serve não para ver para fora, mas para ver para dentro. Graças a ela é possível avistar algo tangível mesmo no mais absoluto breu.
Em minha formação, fui capelão em vários hospitais e por quatro décadas fiz parte de redes de atendimento e suporte paliativo. Nada é mais atenuante e analgésico do que as emoções. São elas que desarmam a solidão e resgatam a experiência do momento presente.
Muitos de nós levam uma vida rotineira e pacata, sem noção da própria finitude. AnaMi e suas emoções são um guia para resgatar a infinitude delirante do cotidiano sem abdicar da consciência e da racionalidade. Por isso sua obra é útil tanto a quem se encontra em processos de cura, mesmo do que não tem cura, quanto ao indivíduo em plena saúde. Nos dois casos, conhecer esta etiqueta de maior intimidade com a Verdade pode atenuar o sofrimento de quem sabe e de quem não sabe que sabe de sua finitude.
Algo que particularmente me toca é o jargão destituído de Deus e religiosidade, tão próprio do jornalismo. A objetividade e o compromisso com o instante não permitem os apostos, os encaixes que costumamos fazer de nossas crenças e ideologias em momentos graves e relevantes. Isso faz desse texto algo real, pleno da natureza do que é, permitindo familiaridade com o cenário da vida. Porque nada é mais tenebroso na enfermidade do que a distorção desse cenário. Estranhar-se em sua realidade é um exílio por demais doloroso. AnaMi recompõe o cenário da vida revisitando momentos reais. Apesar dos horrores da insensibilidade, da burocracia e dos formalismos para com o doente, ela nos ensina que é possível nos sentirmos em casa na vida, pelo simples fato de estarmos vivos.
A vida é, sim, a casa de todos nós e ninguém tem primazia. Isso porque a finitude é menos o prazo concedido do que a indefinição de quando a vida findará. O que retira AnaMi ou qualquer outro da categoria de terminal é que não há qualquer ordem ou senha estabelecendo a fila da impermanência.
Ao nos presentear com sua vulnerabilidade, AnaMi ensina a nos sentirmos legítimos na vida como em nossa casa, e não como cidadãos (vidadãos) de segunda categoria.
Diz a Ética dos Ancestrais: “Tudo está previsto, com exceção do temor aos céus!” Somos impotentes diante do destino, que é pura fatalidade. O que fará diferença é a maneira de encararmos nossa sina.
A verdade é esta: o presente é de quem respira. O futuro diz respeito ao temor que temos aos céus, à forma pela qual somos capazes de reverenciar em imaginário a vida.
Façam bom uso deste mapa trilhado por emoções que mostra como AnaMi reencontra seu lugar entre os vivos após sentenciada a juntar-se aos mortos. Os mortos não são os seus, os vivos sim! Seu retorno é a salvação de todos nós!
— Nilton Bonder,
rabino da Congregação Judaica do Brasil
A cura transcende a biologia
Introdução
Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma.
— Nilton Bonder
LOCKDOWN, 2020.
Primeiro dia de inverno.
O silêncio nas ruas e dentro de mim dizia: é o momento perfeito para iniciar esta história. Natureza sábia. Até ontem era outono e eu acompanhava pelo vidro da sala as últimas folhas caírem à espera da noite mais longa. Hoje, o sol tímido ilumina a parede em um ângulo diferente. Tentei abrir as janelas, mas o ar gélido entrou furioso. Talvez eu não estivesse preparada para receber os primeiros sinais da nova estação. Inverno é tempo de semear. O vento abre espaço para as sementes que graciosamente reiniciam seu ciclo de vida na terra.
Renovação.
Às vezes tenho a impressão de que vivo todas as estações em um único dia. Germinar, florescer, colher, morrer. Noites longas e dias curtos. Noites estreladas e dias ensolarados. Recolhimento e expansão. Calor. Frio. Fundo da caverna e valsa com as flores. Ciclos dentro de ciclos. Tudo conectado. Esta leitura pode chegar no meio do seu verão e aí, por alguns momentos, você vai sentir o inverno que vivo hoje. Se for primavera, então, fertilize-se. Posso sentir sua caminhada rompendo a camada de terra que te impede de ver a luz. Se eu chegar no seu outono, talvez estas folhas sejam as últimas que você precise deixar cair para que tudo reinicie.
Quando concluí meu primeiro livro, Enquanto eu respirar, publicado no verão de 2019 pela Editora Sextante, imaginei que seria o único e o escrevi com urgência. Uma entrega visceral, sem filtros, sem meias-palavras. Lembro que chorei copiosamente ao digitar a última frase do último capítulo. Era final de outono. Senti silêncio dentro de mim. Não havia mais nada a ser dito naquele momento. Hoje entendo perfeitamente: aquelas folhas precisavam cair para que eu fosse capaz de recomeçar. Minha amizade com a Renata, que eu conto amorosamente naquele livro, foi um desses ciclos perfeitos da vida. Ela chegou para plantar em mim o reencontro comigo mesma. Me levou até as profundezas da escuridão, onde senti medo, frio e a pior das solidões: aquela em que você está ausente de si. Imaginei que jamais veria a luz de novo. Houve um tempo em que me identifiquei com a dor, pois ela parecia mais confortável. Há algo de muito tentador em permanecer no fundo da caverna; ali, a meta é apenas sobreviver. Foi preciso muita coragem para mover as pedras e abrir o cadeado que me mantinha acorrentada ao meu próprio sofrimento. A chave estava o tempo todo em minhas mãos.
Quando vi o sol pela primeira vez foi difícil até manter os olhos abertos. Ainda tinha medo. Mas a Renata estava lá para ser primavera ao meu lado, e nada é capaz de conter uma semente que nasceu para ser flor. Nessa época aprendemos a dançar: com o tempo, com as possibilidades, com as estatísticas, com o medo, com a impermanência. Vivemos a fase solar do nosso ciclo. Colheita, Expansão, Plenitude. Chama ardente de vida pulsante em cada célula do nosso corpo. Chegamos preparadas ao outono e tudo parecia muito claro. Era tempo de despedida. As últimas folhas de ilusão iam caindo com uma beleza ímpar. Não era sobre fim, mas renovação. Vivi cada página com a mesma intensidade: era como se aquelas histórias precisassem nascer para o mundo para que pudessem “morrer” dentro de mim. Bem, eu vejo a morte de um jeito diferente de alguns imortais que não pensam sobre isso. E digo a você: tudo é parte de um ciclo perfeito.
Nestas páginas que escrevo hoje cabem velhas histórias que ainda vivem em mim e precisam cumprir seu caminho. Além de folhas novas que nasceram a cada ciclo em que estive presente. E, que fique claro, sigo sendo a menina com câncer que se sente curada do que importa. Cada vez mais. E o que é cura, afinal? Onde encontrá-la? O que ela significa?
O diagnóstico de uma doença grave como o câncer vem junto com uma necessidade premente de encontrar a tal da cura. Você não tem noção dos caminhos malucos que nos apresentam e de tudo a que as pessoas se submetem em busca de ostentar estas quatro letrinhas: CURA. Tem a comida, o óleo de gosto duvidoso, o comprimido com formulação semelhante a xampu, a maquininha de tortura que dá choque seis vezes ao dia, o tubo que você enfia no seu orifício mais reservado com o objetivo de limpar as entranhas. Curandeiros? Vixi, tem aos montes! Cada um com seu método infalível, único e garantido. Medita, toma suco verde, roxo, rosa. Intermediários com o divino, então, nem se fala. Um mais barbado que o outro. Cheira, fuma, bebe, mergulha: no gelo, na lama, no lodo, no rio. Promete uma, duas, três, vinte velas do seu tamanho. Sobe as escadas, as montanhas, desce ao inferno pra conseguir dinheiro para a medicação. Deus deve viver em burnout. Impossível lidar com tantas expectativas, trocas e exigências.
Já a medicina convencional segue um fluxo paralelo. Se há séculos os médicos apenas acreditavam ser grandes deuses, hoje têm certeza. A busca desenfreada pelo resultado perfeito e pela longevidade obteve um grande avanço e a ciência é, sim, uma dádiva sagrada. Mas quantas vidas ficaram pelo caminho? Atualmente, lotam-se cursos para profissionais de saúde com a proposta de ensinar “humanização”. Imagine isso, ensinar o humano a ser humano para que ele consiga cuidar de gente. A verdade é que muitos pacientes são tratados como pedaços de órgãos adoecidos. A frieza impera, como se só importasse a biologia de um corpo que precisa funcionar a qualquer custo. Tudo culmina no sonho da tal da imortalidade.
Ao longo de uma década de tratamento e ativismo na área da saúde, já ouvi e vivi as histórias mais tristes de negligência com o sofrimento humano. Nem sempre tem a ver com o acesso a grandes hospitais e medicamentos de última geração, mas com compaixão e humanidade. Em cinco minutos no corredor do hospital público mais lotado é possível oferecer mais cuidado do que na UTI do décimo andar do prédio espelhado da Zona Sul de São Paulo. E, caso você tenha a pretensão de viver muitos anos, talvez seja bom me ajudar a difundir essa ideia de que vale a pena humanizar a área da saúde. Somos todos pacientes em potencial. Pessoas que vivem o extremo de uma vulnerabilidade precisam desse olhar humanizado. Deveria ser uma condição sine qua non para a prática do cuidado.
A sociedade também impõe uma espécie de muro em torno dos pacientes graves. O câncer, em especial, é um grande tabu. O tempo passa, a ciência evolui, a medicina se atualiza e, ainda assim, o paciente raramente é encarado com naturalidade por familiares, amigos, sociedade, medicina. O silêncio só é quebrado por falas constrangidas sobre o cabelo que cai, mas cresce, ou sobre a receita da cura escondida numa planta qualquer, sem falar no discurso sobre transformar o paciente em um guerreiro. Não sei para vocês, mas guerra, para mim, remete à morte por motivos egoístas. Definitivamente nada a ver com alguém que enfrenta grandes desafios diários e é um vencedor apenas por seguir em frente nesta dimensão chamada vida.
Nosso grande compromisso nesta existência é evoluir como ser humano. Lapidar a si mesmo é a maior alquimia de todas. Eu tive um diagnóstico, mas não é preciso uma situação tão extrema para qualquer pessoa enfrentar questões existenciais que sempre culminam na pergunta: qual o sentido da vida?
Vejo determinadas demandas como uma grande armadilha que, no final das contas, só provoca respostas moldadas pela nossa própria necessidade de fingir ter tudo sob controle. Por exemplo: ser o melhor, ter um casamento perfeito e uma vida invejada. Quem vive uma grande perda, seja da própria saúde, seja de um ente querido, um emprego ou qualquer coisa que convide a um momento de encontro com a realidade do não controle irremediavelmente busca respostas. Na verdade, não se trata de perguntar nem de responder, e sim de ter uma consciência.
Não sou diferente. Um dia, minha certeza de que eu teria todo o tempo cronológico do mundo para viver derreteu. Isso trouxe sofrimento e também me jogou no mais profundo abismo das perguntas e até ciladas em busca de sentido. Andei por caminhos inimagináveis à procura de respostas. Da religião à filosofia. Da cúrcuma à ayahuasca. Da umbanda à meditação. Dos charlatões à medicina. Da terceirização à autorresponsabilização. Do externo ao interno. Do inferno ao céu.
Estava tudo na minha cara e não vi. Sim, e já quero compartilhar o principal spoiler deste livro. A resposta sempre esteve no espaço que antecede todas as perguntas.
Bem, não sou filósofa, intelectual, da área da saúde, tampouco tenho páginas e páginas de títulos acadêmicos. Sou uma mulher que está “desenganada” desde 2011, quando tinha 28 anos. A vida real apresentou-se crua em um laudo segundo o qual, a partir daquele ponto, não haveria mais tempo para distrações. E aqui estou, compartilhando com você o olhar de quem aprecia a paisagem do alto do desfiladeiro mais estreito da vida.
Este não é um livro com a vaidosa pretensão de esclarecer as suas questões existenciais: é um convite a experimentar a libertadora sensação de ser “desenganado”. Além das minhas histórias e das histórias das pessoas que me acompanham nessa caminhada, a cada ciclo divido com você palavras sábias do Felipe Rocha, terapeuta holístico e xamânico, estudioso das técnicas e ferramentas de cura dos povos nativos e fundador da comunidade terapêutica Xamanismo Sete Raios. Felipe é um amigo que me inspirou a buscar dentro de mim o sagrado da minha infinita essência.
Se posso te fazer um pedido, é: mantenha a mente aberta ao longo desta leitura; ela pode ser um desafio se você a encarar com julgamentos. Há relatos de experiências pessoais sobre uso de substâncias em contextos ritualísticos – e deixo aqui uma mensagem importante: esses relatos não visam incentivar o uso indiscriminado de nenhuma delas. Da mesma forma, trago experiências pessoais em religiões distintas. Não há qualquer julgamento ou incentivo à prática delas.
Acredite, o limiar da vida nos arremessa em buscas que nem sempre trazem boas respostas. Então, vou abrir as janelas. Respire. Contemple as histórias intensas que passam diariamente pela minha vida. Olhe-as de frente para ser capaz de enxergar a si. Emocione-se. Revisite o que há de mais humano em você. Isso é cura.
Ao concluir, se abra. Tem uma vida incrível lá fora para você viver de coração e olhos bem abertos. Boa leitura! Te vejo em breve, quando tudo isso for sobre nós, e não apenas sobre mim.
E, para manter o padrão, este livro contém uma playlist para antes, durante ou depois da leitura:
“All Related”, Nessi Gomes
“Blessed We Are”, Peia
“Simples Assim”, Lenine
“Oração ao tempo”, Caetano Veloso
“Remember”, Omkara
“Tempo perdido”, Legião Urbana
“Tempos modernos”, Marisa Monte
“O peso do meu coração”, Castello Branco
“Vuela con el Viento”, Ayla Schafer