Escritora se debruça sobre o realidade das mulheres, questiona estereótipos e aponta a pluralidade do feminismo, ainda estrangulado pelo patriarcado
Falamos em dez motivos, mas poderiam ser mais. Mas vamos a eles e, depois, a mais um pouco deles… porque, enfim, há muito mais de dez em “Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas”.
1 – Escritora e advogada, Manus parte de perguntas certeiras para contextualizar e compreender a condição feminina, apresentando-a como plural e, ainda assim, enredada por uma trama que insiste em repetir notas delicadas: “Por que ainda pensamos tantas vezes antes de dizer alguma coisa, especialmente quando o interlocutor é um homem? Por que ainda associamos casamento e filhos a uma única forma de felicidade?”. O Brasil de hoje – ou o mundo de hoje – mostra que as questões são tristemente atuais. O consolo é constatar que, para cada limitação ensaiada, há um manancial de resistência que se nutre do feminino.
2 – As mulheres são o centro dessa conversa da escritora com suas leitoras. Talvez sua finalidade não seja a de injetar autoestima, mas esse parece ser um efeito natural.
3 – Este é o quinto livro de Ruth Manus e nele estão explícitas qualidades já evidenciadas em títulos anteriores: o rigor da escrita está a serviço de uma leitura que avança sem empecilhos, flui; boa mesmo de ler. A escritora é clara em suas proposições e provocações, tornando a leitora cúmplice, jamais afastando-a do que escreve. Os textos aproximam. Se curtiu, confira “Um dia ainda vamos rir de tudo isso”, outro livro lançado pela Sextante.
4 – Embora, como já destacado, o público-alvo seja mulheres, não há nada no livro que cause repulsa em qualquer homem minimamente consciente. O que em outras palavras, pode ser entendido como: qualquer homem consciente de viver num mundo machista e que, em maior ou menor grau, se beneficia dessa configuração, seja na tranquilidade de ir e vir, nas condições melhores de trabalho e no menor peso para lidar com determinadas cobranças sociais. Ela mesmo frisa que “uma sociedade machista e patriarcal, na qual os homens ainda estão com o poder nas mãos, tem todo o interesse na fragilização da mulher”. É importante que homens e mulheres se situem nesse cenário.
5 – No artigo que abre o livro, Manus ataca a culpa, esse sentimento tão arraigado à vida das mulheres, presente como um eterno companheiro. Desde aí, como não poderia deixar de ser, ela aponta o problema, mas abre caminhos, uma marca de seus textos. Ela não adere à ingenuidade de quem ventila “as coisas estão melhorando bastante para as mulheres”, prefere pô-la em análise, lembrando a violência que acomete mulheres de diferentes realidades. A culpa, por sua vez, ela troca pela luta: “As coisas não estão melhorando. Somos nós que estamos lutando. São as mulheres que diariamente batalham pelos seus direitos, pela igualdade, pela segurança, pela liberdade. As coisas não melhoram sozinhas”.
6 – Em diversas passagens, o livro escancara obviedades que ainda cegam mulheres, reforçando um estereótipo que reduz seu tamanho na vida. “Sentir-se insubstituível é uma forma de prisão”, alerta a escritora. Em outro trecho, Manus ressalta que, caso tivesse que enfileirar por ordem de importância os assuntos dos quais têm de cuidar durante o dia, ela certamente estaria em último lugar. “Percebi que eu não estava cuidando de mim, porque eu confundia o que era eu com o que eram os meus projetos e os meus amores”. Adiante, explica que homens não são bebês e podem lidar com questões da vida adulta sem serem infantilizados. É verdade esse bilhete.
7 – É possível ser contundente sem perder a leveza. Manus mostra isso no livro.
8 – O mundo masculino é evidenciado no livro para contrapor um ideal de feminino que, essencialmente, reflete os anseios dos homens. A abordagem do outro serve como lembrete às mulheres de que “se você não nasceu homem, você já nasceu perdendo”. O papel secundário historicamente dado às mulheres, afastando-a do protagonismo da própria vida, ajuda a compreender por que é tão difícil para certas mulheres aceitar a importância que têm, ou ao menos a que deveriam ter.
9 – A escrita do livro é resultado de um exercício de empatia e sororidade, confirmado na presença de mulheres diferentes com as quais Manus trocou ideias e debateu questões. Outras tantas foram pesquisadas. Os textos, portanto, não são asfixiadas pelo uso de uma primeira pessoas onipotente – as impressões da escritora, costuradas aos apontamentos de outras mulheres, ampliam o poder de sua voz e as realidades por ela contempladas.
10 – “Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas” está alinhado ao feminismo. Embora haja muita desinformação sobre o movimento que, como qualquer outra fonte séria de pensamento, possui contradições, com lugares de fala, realidades díspares e expressões distintas dessas realidades, Manus faz questão de destacá-lo como necessário. Para ela, não existe empoderamento sem feminismo. “Como pregar o acesso das mulheres ao poder sem reconhecer que toda a evolução que tivemos até hoje foi graças aos diversos movimentos feministas que se espalharam pelo mundo?”, ela se pergunta. Em trechos assim, o livro também assume uma função pedagógica, importante numa sociedade fragilizada por constantes deturpações.
Lute como uma garota: cinco reflexões de Ruth Manus
1- “O feminismo quer mulheres livres. Livres para serem o que quiserem ser. O feminismo abraça cada uma de nós na nossa individualidade e nas nossas escolhas. A principal batalha feminista é pelo direito de escolha da mulher”.
2 – “Vamos refletir sobre essas coisas. Identificar quais são as amarras que nos prendem, mesmo quando são muito sutis. E, acima de tudo, entender que ser diferente é uma grande qualidade, nunca um defeito. Eu sempre penso na Barbie dentro da caixinha. Tão branca, tão loira, de cabelos tão longos e tão lisos e com olhos tão azuis, tão magra, com uma cinturinha tão fina, tão heterossexual, tão cisgênero, tão vaidosa, com sapatos de salto e roupas justas. Damos um recado tão pouco sutil às meninas quando lhes compramos essas bonecas, não é mesmo? As regras são claras. Essa é a meta. Esse é o modelo. Tudo o que fugir a isso é uma espécie de fracasso”.
3 – “Enquanto estivermos divididas, opostas, separadas, obviamente teremos uma força muitíssimo inferior à que teríamos se estivéssemos juntas. Sobretudo como uma categoria oprimida (ou grupo vulnerável), é essencial que mulheres unam forças para promover mudanças. Tenhamos em mente que, para aqueles que querem preservar o status quo, é muito mais interessante que nós, mulheres, estejamos desunidas, e nada conveniente que sejamos fortes e demos suporte umas às outras”.
4 – “Precisamos pensar, porque ainda dá tempo. Sempre dá tempo. Dá tempo de fazer novos planos, de nos dedicar a novos projetos, a sonhos verdadeiros que ficaram ali, quietinhos no canto, enquanto os falsos sonhos nos atropelavam com seus prazos peremptórios. Precisamos nos conhecer melhor e entender se a vida que estamos levando é a vida que vai fazer com que sejamos realizadas no futuro”.5 – “Parar de julgar. Parar de julgar. Parar de julgar. O feminismo é a busca incessante pela liberdade da mulher e pelo seu direito de escolha em todas as esferas da vida. Não adianta nos dizermos feministas e continuarmos apontando o dedo para cada mulher que fez escolhas diferentes das nossas”.