Introdução
De início é bom ter em mente e deixar claro que todos os problemas do Brasil – sociais, de desigualdade extrema – são oriundos de decisões políticas históricas, portanto, deliberadas. Uma situação construída a partir de opções políticas que, se fossem outras, poderiam ter nos levado a uma realidade diferente.
A partir desse pressuposto é possível começar a compreender o Brasil.
Que o poder econômico sempre determinou a política brasileira todos nós sabemos. Mas, nos dias em que vivemos, essa determinação chegou às raias da loucura.
A história do Brasil é um palíndromo perfeito, reportando de trás para a frente e da frente para trás uma mesma sequência de acontecimentos, assim como uma palavra palindrômica apresenta exatamente a mesma sequência de letras quando lida nos dois sentidos. A recorrência de certas práticas ao longo de nossa história revela um elo assustador e profundo entre os que aqui chegaram em 1500 e os que aqui hoje estão. Isso porque, em todo o seu percurso, “a realidade histórica brasileira demonstrou a persistência secular da estrutura patrimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista”. Um mesmo objetivo animava e anima o espírito dos agentes públicos de ontem e de hoje: a espoliação, a expropriação, o lucro, a exploração.
No Brasil, o estamento – que, segundo Max Weber, é uma teia de relacionamentos que constitui o poder – se renova num ciclo de 30 a 50 anos. Esse espaço de tempo corresponde precisamente ao período de renovação dos políticos no poder. Em geral os políticos entram para o estamento em torno dos 40 anos de idade. Passados 30 ou 40 anos, são forçosamente substituídos pela ação do tempo, e novos membros surgem com novos pleitos e novas demandas. Quase todas essas transições de três a cinco décadas ocorreram com abalos imensos, como um ciclone, um tsunami.
Desse modo, pode-se dizer que o Brasil sofre de uma espécie de psicopatia incurável. Cíclica, ela às vezes adormece, nos dá a impressão de ter sido extinta, mas sempre ressurge – como toda psicopatia – e é, invariavelmente, devastadora. O primeiro desses ciclos se dá entre a independência, em 1822, e 1850, com o fim do tráfico negreiro e o surto desenvolvimentista; o segundo, de 1851 até 1889, com o golpe militar que instituiu a República; o terceiro, de 1890 até 1930-1937, com o golpe militar que estabeleceu o Estado Novo; o quarto, de 1931 até 1964, quando um golpe militar impôs a ditadura; o quinto, de 1965 até 1988, com a abertura política e a redemocratização; e, por fim, o sexto ciclo, de 1989 até 2017, com uma crise política, econômica e ética sem precedentes.
As três partes deste livro fazem esse percurso por meio da seguinte periodicidade:
De 1500 a 1888, 388 anos nos quais predominou o trabalho escravo – e o mais absurdo é que o fim da escravidão só se deu por meio de uma ruptura drástica, não por um consenso de que a situação social da escravidão era uma insanidade, um atentado contra a humanidade (vejam só como chega às raias da loucura a defesa de certos interesses setoriais ou de classe no Brasil).
De 1889 a 1984, quando três golpes militares impuseram ao país mudanças abruptas, antidemocráticas, porque em todas as ocasiões o povo foi completamente ignorado, desprezado e tratado como incapaz de tomar decisões.
E, por fim, do período de redemocratização, de 1985 até 2017, quando várias crises convergiram para um desencontro e uma desesperança como nunca se viram no Brasil – crise política, crise econômica, crise institucional, crise ética, crise de representatividade – e expuseram ao mundo nossas vísceras, nossa incapacidade, nossa pobreza, nossa canalhice cotidiana.
Tais crises expuseram também o abismo que existe entre Estado e sociedade civil. Romperam as já tênues linhas que nos separavam da barbárie. Descobrimos, estupefatos, que não fizemos a passagem do estado de natureza para o contrato social e que vivemos, no fundo, numa lógica primitiva em que prevalece a luta de todos contra todos. Levaram-nos ou mantiveram-nos esse tempo todo nesse estado porque nele tudo é permitido, e os mais fortes – aqueles que têm ao seu lado o aparelhamento do Estado – se sobrepõem aos mais fracos: o povo, vítima desse estamento.
O que o país precisa para romper essa patologia cíclica é de um projeto de nação. Mesmo que as ideias de projeto e de nação possam parecer envelhecidas e antiquadas. Nesse sentido, a Operação Lava Jato é fundamental, porque ela se pôs, justamente em um momento de transição, entre a velha política brasileira e a sua renovação, interrompendo um ciclo reprodutor secular no Brasil. Daí estarmos vivendo um momento extremamente conturbado, turbulento, dividido entre dois mundos: “um quase definitivamente morto”– representante do atraso –, mas que luta com todas as forças para não expirar; e outro – que quer um país novo – “que luta por vir à luz” e sair das trevas.
Acabar com a corrupção e resgatar alguns valores perdidos no percurso, tais como ética e honestidade, é apenas o passo inicial. A partir daí outros deverão ser dados, alguns de curta e outros de longa duração, para projetar um horizonte e construir uma perspectiva para o presente e para o futuro. Embora cada país tenha sua especificidade, precisamos aprender com os outros – esta é a única vantagem do nosso atraso: a possibilidade de queimar etapas em direção a um país mais justo. Temos todas as condições para construir um grande país – o território, a riqueza natural, o povo –; o que nos falta é um projeto de nação.
Devemos fazer algumas perguntas apenas e ver se somos ou não capazes de respondê-las. Temos que criar alguns desafios e ver se somos ou não capazes de vencê-los. Precisamos definir metas e ver se somos ou não capazes de cumpri-las. Cabe a nós definir que país queremos e fazer com que ele aconteça.
Estamos em meio a mais um ciclone devastador. Porém, após o desastre, as perguntas que temos colocadas na mesa são:
Quem está disposto a construir um novo país?
Quem tem um projeto de nação para o Brasil?