Capítulo 1
Uma fazenda bela e misteriosa
Camille detestava psiquiatras. A nobre área da medicina não conseguia sensibilizar uma mulher que enfrentava o mundo exterior, mas tinha medo de entrar em contato com seu mundo interior. Sua mente era um cofre, tão sofisticada quanto fechada. Sua inteligência era extraordinária, tão complexa quanto difícil de lidar.
Ela acabara de sair do consultório de mais um profissional. Como sempre, foi embora confrontando-o, esbravejando, em eloquente crise de ansiedade. Dessa vez, no entanto, tinha sido diferente. A intelectual que deixava embasbacados psiquiatras, psicólogos, intelectuais e políticos com sua surpreendente capacidade de debater ideias saiu no meio da consulta inteiramente abalada. Recebera um diagnóstico que fez o mundo ruir aos seus pés.
A mulher rica e culta que tinha fobia social, que não andava sozinha nas ruas, que se recusava a ser o centro das atenções e detestava plateias, tornou-se atriz principal de um espetáculo público, uma peça que representava sua cálida e asfixiada emoção. Não se importava com mais nada. Raramente chorava e nunca deixava transparecer sua dor. Dessa vez, porém, chorou descontroladamente. Conheceu a linguagem das lágrimas, a mais universal e penetrante de todas as locuções. Sentou-se numa mureta que contornava um belo jardim onde cresciam margaridas, jasmins e violetas multicoloridas. Seu mundo, no entanto, era destituído de cores e de flores.
Os passantes interromperam sua marcha para ver o espetáculo. Rodearam-na. Atônitos, vislumbravam uma bela mulher em prantos, desesperada, sofrendo tanto que havia perdido os freios sociais. Alguns se emocionaram e se identificaram com ela. Cedo ou tarde, todos têm seus dias de desespero, e não poucos espectadores ali presentes já os tinham experimentado. Com as mãos cobrindo o rosto, Camille proclamava:
– Quem sou eu? Quem sou eu? É insuportável! Quem sou eu?
A plateia emudeceu diante dessas simples e tépidas palavras. As pessoas não sabiam o que dizer ou como intervir. Alguns ficaram com lágrimas nos olhos. Outros, que iam se reunindo à multidão, perguntavam entre si “o que aconteceu?”. Outros ainda indagavam “quem morreu?”. Momentos depois, animado por um ímpeto altruísta, um homem de meia-idade tentou ajudá-la. Pensando que ela tivesse rompido a conexão com seu passado e perdido a memória, tocou suavemente no seu ombro direito e perguntou:
– Moça… Moça, você precisa de alguma coisa? Você está com seus documentos?
Ela não respondeu. Parecia não estar ali. Os passantes não tinham ideia de quem se tratava. Alguns eram leitores dos seus livros, mas não conheciam seu rosto, já que raramente ela dava entrevistas. Não sabiam que a mulher em pânico costumava ser discretíssima, raramente falava de si, sobretudo com estranhos, embora falasse dos porões da sua história de forma subliminar, através dos personagens que criava. Para aquela mulher, as ideias eram mais importantes do que a imagem. Após poucos segundos, ela rompeu as amarras do silêncio. Ergueu seus olhos úmidos para as pessoas e, revelando uma face angustiada e inconformada, exclamou:
– Estou muito doente! Muito… Mas digam-me! Eu pareço oferecer algum perigo? – E, passando os olhos pela plateia, perguntou: – Coloco suas vidas em risco?
Perplexo e confuso, o homem que havia falado com ela se adiantou e respondeu:
– Não! Penso que não…
Outro homem, de cabelos grisalhos e aparência de médico, arriscou-se a perguntar:
– O que você está sentindo?
Camille não demorou a responder.
– Estou com câncer.
Uma senhora com lábios trêmulos, tentando consolá-la, interveio:
– Oh, minha querida. Eu também já tive, mas me curei.
Camille olhou fundo em seus olhou e comentou:
– Mas o meu é na alma…
Mais uma vez o burburinho da plateia cessou. E alguém fez duas perguntas impossíveis de responder:
– Como localizá-lo? Como extirpá-lo?
Diante das faces atônitas dos passantes, Camille cobriu novamente o rosto, inconformada. Momentos depois, suspirando e soluçando, ela se levantou e partiu. Deixou para trás as pessoas que assistiam ao seu caos sem saberem quem ela era e qual o seu drama. Apenas agradeceu-lhes, com acenos de cabeça.
Camille certa vez escrevera em um dos seus romances: A dor que eu vejo está na periferia do espaço, a dor que eu sinto está no centro do Universo. É maior do que você entende e muito maior do que explico. Nunca tais palavras foram tão verdadeiras em sua própria história. Para a plateia, ela era mais um ser humano ferido que atravessara seu caminho. Mas o mundo de Camille estava desabando. A tarde caía. A noite rapidamente revelou seu rosto.
Enquanto isso, a 200 quilômetros de São Paulo, numa deslumbrante fazenda, nuvens carregadas cobriram a lua. Raios cortavam como lâminas o breu da noite, regurgitando trovões ribombantes que pareciam gritar aos ouvidos dos homens e dos animais:
“Sois pequenos! Sois mortais!”
Assombrados pelo espetáculo de estrias de luzes e sons altissonantes, os pássaros encolhiam-se nos ninhos, os animais se abrigavam trêmulos sob os galhos das árvores e os homens se refugiavam calados sob seus cobertores. Foi uma noite de chuva torrencial na linda e misteriosa fazenda Monte Belo.
A tempestade insistia em se eternizar, mas, sem pedir licença, o sol convidou-se para a mesa daquela manhã. Reciclou a estética. Nuvens esparsas pincelavam a vasta tela do espaço azul-turquesa e cinza-claro. Segura diante dos embates da natureza, a estrela que rege a orquestra do dia acalmou os ânimos dos habitantes daqueles relevos com sua indecifrável luminosidade. Parecia bradar sem palavras:
“Aquietem-se! Angustiantes tempestades anunciam belos amanheceres.”
E sutilmente foi aparecendo como gema de ouro brindando a floresta, produzindo silhuetas vivas que dançavam como sombras sob a regência dos ventos. Numa euforia irrefreável, os pássaros começaram a assoviar para o espetáculo. Nascia um dia radiante.
Os animais saíam do abrigo das árvores sem delas se despedirem. Nenhum reconhecimento, nenhum agradecimento. Tal como os homens que nunca saldam as dívidas de quem os acolhe. Mas as árvores, de braços abertos, mais altruístas do que os humanos, nada lhes cobravam. Desprendidas, anunciavam com os suaves estalidos das folhas:
“Na próxima tempestade estaremos aqui!”
A fazenda Monte Belo cumpria mais uma jornada. Algumas lágrimas do céu ainda percorriam o contorno dos corpos das aves. Os bem-te-vis, os primeiros a despertar, tinham motivos irrefutáveis para emudecer, se enraivecer, protestar contra a cruel natureza. Ninhos derrubados, seus filhotes silenciariam o chilrear. Mas, com magia inexprimível, homenageavam a vida, cantarolavam com vigor, revelando uma transcendência e uma resiliência inexplicáveis. As rolas salpicavam sons sem alternâncias de notas, mas não menos arrebatadores do que os pássaros gorjeadores. As andorinhas, como acrobatas dos céus, felizes, viraram a página da noite aterrorizante, serpenteando performances com rara envergadura.
Não pensar tem seus privilégios: cada dia é um novo show. Pensar, um privilégio humano, traz à memória o passado. Nós nos tornamos uma história: ganhos inesquecíveis, perdas irreparáveis. A história engravida as tempestades mentais. As frustrações escrevem parágrafos; as perdas, capítulos; as mágoas, textos. Tênues gotas tornam-se torrentes, diminutas poças geram oceanos. Sofremos pelo futuro.
A fazenda Monte Belo tinha tanta terra quanto segredos. Havia 35 casas de colonos na propriedade, mas apenas 32 estavam ocupadas. Quarenta e cinco funcionários trabalhavam ali, dos quais 29 sangravam seringueiras, uma atividade em muitos casos financeira, social e ecologicamente correta. As folhas das árvores desprendiam- -se nos invernos e, para refazer os renovos, sequestravam o carbono com que os carros e a indústria poluíam o ar. Bem remunerados, os sangradores trabalhavam à sombra. Feriam delicadamente as árvores, que choravam generosas lágrimas brancas, o látex.
Os demais funcionários cuidavam da plantação de grãos e do gado. A fazenda tinha também reflorestamento, uma bela plantação de mogno africano, cujas árvores nos primeiros anos pareciam altíssimos cotonetes, por crescerem rapidamente sem ramificações, com hastes verdes escuras, devido às suas largas folhas.
Nos tempos antigos e áureos do açúcar e do café, 430 pessoas moravam ali; dois terços eram escravos. Aqueles solos testemunharam alegrias e muitos horrores. Os barões do café colhiam grãos em abundância, mas ideias com escassez. Os donos do engenho espremiam a cana da qual jorrava o melaço de doçura inigualável, mas sua indócil emoção não destilava generosidade. Mentes incautas negavam que a fina camada de cor da pele branca ou negra jamais deveria servir de parâmetro para discriminar seres da mesma espécie…
As lágrimas dos negros eram da mesma cor das dos brancos. Mas ninguém as observava. Seus pensamentos e imagens mentais eram confeccionados pelos mesmos inimagináveis fenômenos. Mas ninguém os avaliava. Onde o lucro cresce, decresce a razão, e a mente embriaga sua lucidez. A escravidão gerava lucros, era conveniente não pensar, sempre fora.
Escravos dilataram os bolsos de poucos senhores. Alguns arrancados dos braços de suas mães, outros capturados em terras longínquas, caçados como animais, vendidos como produtos, tratados como subespécie. A história transmitida nas escolas terá sempre uma dívida impagável com a crua realidade.
A teoria nazista já estava posta em prática séculos antes de Hitler e Goebbels. A diferença entre os escravos de Auschwitz e os escravos africanos era que os primeiros recebiam uma ração aviltante nas fábricas químicas, o suficiente para sobreviverem alguns meses, enquanto os segundos se transformaram no ouro negro das fazendas coloniais.
Riqueza e dor sulcaram os solos da belíssima fazenda. Mas o tempo da escravidão não cessou. No passado, algemava-se o corpo, hoje, algema-se a mente.
De repente, o som estridente deixou eufóricos os animais e os habitantes da magnífica fazenda. Um helicóptero bimotor de doze lugares, valendo nove milhões de dólares, descia no jardim da casa centenária.
Um piloto, um copiloto e alguns seguranças traziam um casal nunca visto naquelas bandas: milionários bem-sucedidos, discretos, bem- -vestidos. Desceu uma mulher sofisticada em todos os aspectos, do físico ao mental. Camille, acompanhada por seu marido, o banqueiro Marco Túlio. Eram os novos patrões.
Camille acreditava que num ambiente espaçoso e permeado pela natureza ela poderia ser livre. Sua emoção voltaria a respirar. Os sonhos são generosos; a realidade, nem sempre. Ela guarda suas surpresas.